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Manual do perfeito midiota XXVI

Entenda como é o processo de formação do midiota
por Luciano Martins Costa

Sabe como funciona?

Um articulista ouve uma fonte e, sem checar a veracidade do fato, publica que determinada autoridade repassou propina de uma empresa para pagar o cabeleireiro.

A pessoa acusada não é ouvida.

O texto é impulsionado para as redes sociais pelo sistema de tecnologia multiplataforma da empresa de comunicação, e quando a pessoa atingida reage, demonstrando que se trata de uma mentira, você já leu no Facebook e aquele anão moral que apresenta um noticiário na emissora de grande audiência faz piadinhas a respeito do assunto.

Algumas horas depois, a pessoa cuja honra foi atingida anuncia que vai entrar com uma ação na Justiça, e o veículo posta uma nota minúscula apresentando o que se chama de “o outro lado”.

Mas você não lê o “outro lado”, porque a mídia tradicional já escolheu um lado para você há muito tempo. Além disso, a versão original parece mais de acordo com o que você pensa.

Esse é, basicamente, o processo de formação do midiota: dá-se a ele a ração diária de meias-verdades, e ele acha que se tornou uma pessoa bem informada.

E, como se sabe, duas meias verdades costumam compor uma mentira inteira.

Daí, o midiota vai conversar com outros midiotas, que confirmam suas convicções, e assim se consolida a visão de mundo que acaba por determinar muitas das decisões que toma no dia-a-dia.

É dessa forma que você passa ao largo das questões nacionais mais importantes.

Não se pode acusar um midiota de desonestidade intelectual, porque para que isso se configure, é preciso que haja alguma atividade intelectual.

E, como já demonstraram importantes pensadores consagrados, o que se passa, na comunicação de massa, é um processo de convencimento baseado na repetição de ideias, sem necessariamente haver um vínculo delas com a realidade.

Essas mensagens são mais efetivas quanto menos reflexão crítica for produzida pelo receptor.

A narrativa e o discurso da mídia tradicional no Brasil não se vinculam há muito tempo aos pressupostos do jornalismo de qualidade.

Tudo isso se presta a um objetivo: a manipulação.

Assim, com os olhos vendados, você é levado a apoiar políticas públicas que, no fim das contas, serão contrárias ao seu interesse.

Por exemplo, a pauta do Congresso Nacional se encheu de propostas que haviam sido engavetadas, algumas das quais ameaçam remeter o arcabouço legal do País a um atraso de décadas.

Direitos arduamente conquistados podem ser relativizados, ou, como gosta de dizer a mídia, “flexibilizados”.

O bombardeio de notícias negativas serve para convencer você de que, infelizmente, essa é a única maneira de combater a crise econômica.

E você acaba agindo contra seus próprios interesses.

No tempo em que os grandes jornais ainda competiam entre si, ou seja, antes de se juntarem numa espécie de partido político informal, o antigo “Estadão” divulgou uma série de anúncios para dizer que a concorrente, a Folha de São Paulo, enganava seus leitores.

Vale a pena ver de novo.

Só que agora vale para todos eles.
na Revista Brasileiros

Manual do perfeito idiota, por *Luciano Martins Coelho

O midiota vai continuar a repetir o mantra que a máfia midiática lhe oferecer, até quando ela decidir mudar

O ano de 2015 terminou na ocasião esperada, o último segundo do dia 31 de dezembro, e você repetiu aqueles votos de “feliz ano novo” para quem estava ao alcance da sua voz ou do seu celular. Mas abre os jornais e as revistas semanais de informação ao longo da primeira semana do novo ano e se depara com o mesmo discurso apocalíptico que conduziu suas emoções nos últimos 12 meses.

Imagina, então, que esse é um daqueles anos que não acabam, segundo a linguagem banal da imprensa. Como se sabe, esse é um dos clichês adotados por aí desde que o jornalista e escritor Zuenir Ventura publicou, em 1988, o livro intitulado 1968 – O Ano Que Não Terminou.

Teria sido 2015 um “annus terribilis”, como o de 1994 para a rainha Elizabeth da Inglaterra, que usou a expressão para se referir ao período em que sua real família foi sacudida por grandes escândalos?

Se você for um midiota em busca da perfeição, sim, pode sair por aí, alardeando que o terrível ano de 2015 só vai terminar quando a presidente eleita em 2014 for sacada do Palácio do Planalto. Afinal, você está convencido de que foi ela quem derrubou a Bolsa de Pequim.

Aliás, uma das características da condição de midiotice é essa paranoia que se manifesta em visões como a daquele colunista de Veja, para quem o governo toma decisões unicamente com a intenção de provocá-lo.

Há muitos estudos interessantes sobre a narrativa do apocalipse, mas você pode encontrar os melhores exemplos exatamente na imprensa tradicional, especialista em fabricar profecias catastróficas.

Não é difícil imaginar como essas profecias têm o condão de se autorrealizar. Dou um exemplo simples: você vai às reuniões do condomínio e passa metade do tempo falando de crise. O síndico e os membros do conselho fiscal fazem a mesma coisa. Então, chega a hora de fazer as projeções para o ano seguinte. E você se surpreende com um aumento absurdo na taxa do condomínio?

Mas é difícil enxergar essa relação entre o bombardeio de informações negativas e a concretização de maus resultados econômicos. É preciso ler mais do que a mídia hegemônica. É preciso consultar os meios de comunicação que propõem mais reflexões do que emoções, mas quem é refém desse movimento condicionante da imprensa dominante – a quem chamamos de midiotas – não consegue romper esse círculo.

Hanna Arendt explicou como se dá esse movimento, em suas reflexões sobre o nazismo na Alemanha e a supressão das liberdades civis no antigo regime soviético, em sua obra intituladaOrigens do Totalitarismo.

O grande perigo de ficar obcecado com as narrativas apocalípticas é aquele vislumbrado por Friedrich Nietzsche: “Não se deve olhar por demasiado tempo para o abismo, porque eventualmente o abismo pode olhar para você”.

Se você vasculhar o noticiário desta primeira semana de 2016, vai encontrar aqui e ali dados interessantes sobre a condição do Brasil como um dos principais destinos de IDP - Investimento Direto do País – e de uma melhoria considerável na balança comercial. Sejam quais forem as causas apontadas pelos especialistas, o que você dificilmente vai achar é uma análise abrangente, que lhe permita entender as características do momento econômico.

Outro assunto que você não vai encontrar na mídia hegemônica é um debate satisfatório sobre a proposta de recriação da CPMF. Mas também não precisa: você é contra, certo?

Outra coisa, que não tem nada a ver com economia: de repente, você se pegou de antipatia por aquele bon-vivant chamado Chico Buarque, não foi? E não é pelo fato de que sua mulher, sua filha e até sua mãe ainda acham lindos aqueles olhos verdes no meio de tantas rugas. É porque ele pensa diferente de você sobre quase tudo, certo?

Então, fique tranquilo: essa intolerância com as divergências é uma das garantias de que você segue sendo um midiota quase perfeito.




Para ler: Origens do totalitarismo – Hanna Arendt.

*Jornalista, mestre em Comunicação, com formação em gestão de qualidade e liderança e especialização em sustentabilidade. Autor dos livros “O Mal-Estar na Globalização”,”Satie”, “As Razões do Lobo”, “Escrever com Criatividade”, “O Diabo na Mídia” e “Histórias sem Salvaguardas”