"Quando o verde dos teus óio se espaiar na prantação, eu te asseguro, não chore não, viu?, que eu vortarei, viu?, meu coração1 - Estes são alguns dos versos mais belos que já foram criados na língua portuguesa" – Sérgio Vaz
"Foi Tárik de Souza que me deixou clara a noção de que a música popular brasileira descende de três grandes vertentes: Noel Rosa, o samba urbano, metropolitano, Zona Norte do Rio de Janeiro; Dorival Caymmi, cuja obra abrigou as canções regionais, praieiras, nordestinas, e também as canções urbanas, Zona Sul, que prenunciavam a bossa nova; e Luiz Gonzaga, o cara que ensinou ao Brasil que existia o Nordeste" - Sérgio Vaz
Do encontro de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira
saíram algumas das mais belas canções já feitas neste país.
Humberto Cavalcanti Teixeira nasceu em Iguatu, interior do Ceará, em 1916. Se os caprichos do destino não o houvessem feito conhecer Luiz Gonzaga do Nascimento, nascido em 1912 em Exu, Pernambuco, muito provavelmente ele teria sido, ainda assim, um personagem importante da música brasileira. Era um compositor e letrista de talento. Tem obra vasta, forte, ele próprio, sozinho.
Mas o fato é que quiseram os tais caprichos do destino que ele viesse a conhecer, em meados dos anos 40, já no Rio de Janeiro, então a capital, a única metrópole e o centro irradiador de cultura para o país inteiro, o tal Luiz Gonzaga.
Numa entrevista gravada, sabe-se lá quando, Humberto Teixeira lembrou que Iguatu, no Ceará, fica perto de Exu, em Pernambuco, e que o encontro entre ele e Luiz Gonzaga teria mesmo que acontecer. Numa belíssima sacada, o diretor Lírio Ferreira mostra no seu filme essa frase enquanto vemos um mapa do Brasil: de Iguatu para Exu e daí para o Rio de Janeiro, é uma linha reta.
O filme “O Homem que Engarrafava Nuvens” retrata a vida e obra do compositor pernambucano, eterno parceiro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira
Por que as pessoas se encontram?
O acaso. As coincidências. O destino. O que os deuses decidiram. Tudo isso, ou nada disso. Ira Gershwin encontrou George porque eram irmãos. Paul encontrou John porque moravam na mesma cidade. Tom encontrou Vinícius também porque moravam na mesma cidade, a capital federal, a única metrópole do país, em que as pessoas bem de vida e de talento se concentrava em três ou quatro bairros contíguos.
Encontraram-se no Rio, uns 20 anos antes de Tom encontrar Vinicius, o cearense doutor, e o pernambucano de origem mais humilde, sanfoneiro, musicalidade saindo pelos poros.
Do encontro de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira saíram algumas das mais belas canções já feitas neste país, cuja principal riqueza, sei disso faz tempo, é a música popular. Saiu um fenômeno cultural – foi por causa de Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira que pela primeira vez um ritmo, uma tradição nordestina conquistou essa tralha imensa chamada Brasil, para usar uma expressão de Chico Buarque, ele mesmo presente no documentário cantando “Kalu”, uma canção só de Humberto Teixeira, sem Luiz Gonzaga.
A dupla criou um fenômeno cultural
que se espalhou pelo país inteiro – e por muitos outros países
Estou hoje com 62 anos; só fui entender a grandeza, a genialidade de Luiz Gonzaga quando já tinha passado dos 20. Este é um país jovem, e de memória pequeníssima – ou nenhuma. Metade dos brasileiros nasceu na era do funk, do rap, do hip-hop.
Apenas cerca de um quarto, talvez um quinto dos brasileiros se lembra dos tempos em que o Rio de Janeiro era a única caixa de repercussão, de reverberação de cultura – os tempos da Rádio Nacional, da Revista do Rádio.
Por causa de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o baião virou mania nacional e, também, internacional.
Os caras que ensinaram ao Brasil que existia o Nordeste
Quer saber? Na minha opinião, foda-se o reconhecimento internacional. Para mim, não importa nada se o baião teve aplausos na Itália, nos Estados Unidos.
Importa, isso sim, que o país inteiro curtiu o baião. Foi um imenso fenômeno cultural: pela primeira vez, o Brasil do Sudeste, do Sul, reconhecia e aplaudia e aprovava como sua a música do Nordeste.
Quando era bem jovem, eu lia Tárik de Souza com o respeito com que os muçulmanos leem o Corão. Foi Tárik de Souza que me deixou clara a noção de que a música popular brasileira descende de três grandes vertentes: Noel Rosa, o samba urbano, metropolitano, Zona Norte do Rio de Janeiro; Dorival Caymmi, cuja obra abrigou as canções regionais, praieiras, nordestinas, e também as canções urbanas, Zona Sul, que prenunciavam a bossa nova; e Luiz Gonzaga, o cara que ensinou ao Brasil que existia o Nordeste.
Às vezes, em termos de costumes típicos, de cultura popular, de música, parece que o Nordeste é maior do que o Brasil.
Depois que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira ensinaram ao Brasil (e ao mundo, mas o mundo que se dane) como se dança o baião, a cultura deste país, e o próprio país, jamais foram os mesmos.
Metade, ou mais da metade da música brasileira vem de origens nordestinas, se entendermos a Bahia como Nordeste.
Mirtão gravou, com sua voz de sino de cobre de igreja histórica das Gerais, junto com Gonzagão a canção “Légua Tirana”, Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. (Fizeram juntos também outro dueto extraordinário, de doer o coração, em “Luar do Sertão”, no disco de 1971 em que Gonzagão comemorava alguma data importante de sua carreira, não me lembro qual.)
Então, depois de romper a parceria com Lua…
Pois então, depois de romper ou ter tido rompido a parceria com Lua, Humberto Teixeira compôs “Kalu”, que foi um imenso sucesso.
A gravação de Chico de “Kalu” é belíssima. Chico é um grande cantor. Chico é grande em tudo o que faz – menos quando fala de política.
Com uma coragem absurda,
a filha mostra imensa distância entre o artista e o homem
'Kalu, Kalu, tira o verde desses óis de riba d’eu' - outro verso antológico, brilhante, genial.
***
De uma forma extremamente corajosa, Denise Dumont expõe a imensa distância entre o Humberto Teixeira artista e o Humberto Teixeira pessoa.
Denise, parece, passou muitos anos sem ver sua mãe, nascida Margarida Pollice no rico interior paulista, que, em sua carreira como atriz de cinema, entre 1951 e 1954, usou o pseudônimo Margot Bittencourt, e, nos últimos anos de vida, assinava-se Margarida Jatobá, por ter sido casada com Luiz Jatobá.
Pois então Denise reencontrou a mãe para entrevistá-la para o documentário que vinha produzindo. Margarida morava em Nova York fazia anos. A entrevista, no amplo apartamento da velha senhora, é o ponto mais emocionante do filme. É visível que Margarida não se sente inteiramente à vontade para falar do ex-marido diante da câmara. Chega a perguntar para a filha se está tudo bem, se deve mesmo falar tudo, e Denise a incentiva a falar, se abrir. Diz a ela que todas as pessoas que havia entrevistado até então sobre o pai só tinham elogios a ele, o grande músico; mas que queria saber da pessoa do pai.
- "Era um nordestino do interior, macho", define Margarida.
Um machista, retrógrado, possessivo, conservador até a medula. Esse é o retrato que Denise Dumont descobriu do pai, e que tem a coragem de revelar.
Coragem. Sobra coragem a essa moça.
A uma determinada altura, Denise Dumont, sendo filmada, faz para a mãe a pergunta para a qual ainda não tinha tido resposta na vida:
- “Como é que acabou ele ficando comigo e você deixando isso acontecer?”
Quase tão ruim quanto um traficante de escravos – mas que maravilhoso compositor
Sempre achei que a vida pessoal do artista não tem muito a ver com sua obra. Um sujeito pode ser egoísta, vaidoso, até mau caráter, e ser capaz de criar belas obras. Pode até traficar escravos e ser grande poeta, como prova Rimbaud. Dizem que Erza Pound simpatizava com o naz-fascismo, e no entanto era um grande poeta.
Humberto Teixeira não foi um bom pai, um pai presente, amigo. Ao contrário. Ao descobrir que Denise estava fazendo usa primeira peça teatral, aos 16 anos de idade, foi ao teatro com um oficial de justiça, para proibi-la de continuar atuando: moça decente não trabalha em teatro.
Era um machista, retrógado, possessivo, conservador – e, pior do que tudo isso, um pai ausente.
E, no entanto, que grande compositor.
Denise Dumont, filha de Humberto Teixeira
Que belo, maravilhoso filme.
Anotação de Sérgio Vaz em fevereiro de 2012