“O impossível” (1940), de Maria Martins
As pessoas mais felizes, as que vivem no presente e aproveitam cada minuto, são as que menos têm medo da morte.
As pessoas que mais escuto falar em medo da morte são sempre aquelas que mal vivem.
Quem viveu quarenta anos felizes, lindos e intensos não tem medo de morrer, pois sempre terá tido quarenta anos felizes, lindos e intensos.
Quem viveu setenta anos de freio puxado, eternamente adiando sua gratificação, sonhando sempre com um futuro que nunca chega, essa pessoa se péla de medo de morrer, pois a morte é justamente a negação concreta do futuro lindo que ela sempre se enganou que teria.
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Antes de irmos mais longe: muita gente confunde “ter medo de algo” com “não querer que algo aconteça”, mas são coisas bem diferentes. Por exemplo, ninguém quer morrer em desastre de avião mas nem todo mundo tem medo de avião.
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Eu não tenho medo de morrer. Minha vida foi linda e foi vivida intensamente, nos meus termos, do meu jeito. E o futuro, bem, o futuro nos reserva a todos a velhice, a decadência física, a dor, a solidão, a morte. Quem teve um bom passado e vive intensamente o presente não tem nenhum amor pelo futuro.
Quem tem mais medo de morrer são justamente aquelas pessoas que tiveram passados chatos e vivem presentes frustrantes, que depositam todas as suas esperanças em um futuro mítico, onde se mudarão para a casa dos sonhos, encontrarão o príncipe encantado, se aposentarão do trabalho chato, conseguirão escrever aquele livro… e aí tudo ficará bem, todas as promessas se realizarão, o futuro… finalmente… acontecerá em toda a sua plenitude!
Para elas, morrer não é somente o fim de um presente feliz (algo já desagradável em si), mas a negação de todos os sonhos que fariam seu presente tedioso valer a pena.
A morte, se acontecer antes do futuro prometido que lhes daria sentido à vida, roubaria suas próprias vidas de sentido.
Daí, tanto medo de morrer.
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Guimarães Rosa sofreu um ataque cardíaco enquanto escrevia Grande Sertão: Veredas, um dos maiores monumentos da língua portuguesa. Depois de finalmente publicar o livro, em 1956, nunca mais empreendeu nada de peso, por medo de deixá-lo inconcluso.
Sua produção depois disso fica mais fraca, sem ambição: nada no nível de Sagarana ou Corpo de Baile, as obras anteriores ao seu grande romance.
Finalmente, como tinha previsto, morreu de ataque cardíaco em 1967.
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Algumas pessoas duvidam que não tenho medo de morrer. Dizem que é claro que todo mundo tem medo de morrer! Óbvio! Como não?
Tenho vontade de abraçar essas pessoas. De lhes dar consolo e carinho. Porque, para elas, esse medo existencial é tão vasto e profundo, tão entranhado e constitutivo, que nem mesmo conseguem conceber a vida sem isso.
Que horror viver cheio de tanto horror.
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Algumas pessoas justificam seu medo da morte por causa da prole. É como se elas mesmas não fossem razão suficiente para permanecerem vivas:
“Não posso morrer… O que seria dos meus filhinhos??!!”
Ou como se ter filhos de algum modo significasse que sua sobrevivência era mais importante que a dos outros pobres mortais:
“Me deixem entrar no último bote! Tenho três filhinhos pequenos!”, etc.
Ou como os filhos finalmente justificassem seu terror e os deixassem livres para chafurdar à vontade nos seus medo existenciais:
“Sim, tenho medo-pânico da morte… Fico acordado à noite pensando em como morrer deve ser apavorante… Mas não é por mim, sabe? É pelo Paulinho e pela Julinha!”
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Já eu não tenho filhos. Não tenho nem funcionários, sócios, associados. Ninguém depende de mim. Nem mesmo o Oliver, meu cachorro, que seria disputado à faca por umas três amigas.
O mundo não precisa da minha presença. O mundo não sentiria minha falta. (Nos comentários, muita gente vai concordar e até vibrar.) Tudo continuaria igual, a terra ainda girando, nenhuma criança morreria de fome.
Existe nisso uma enorme alegria, uma grande liberdade, um profundo alívio.
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