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Conversa entre ladrões de galinha

- Os cara num trabaiam, disfrutam de privilégios, lascam a gente e ainda são sustentados cum dinheiro público.

- É revoltante, porisso deixei de lê notíças sobre demos e tucanos.

- São a merma coiza. Mas, tô falando é dos procuradores e juízes do Brazil.

- Pois acrescenta os empresáros qui vivem mamando nas tetas do governo e posando de defensor da iniciativa privada. Um bando de ladrão.

- Verdade!

Diálogo inspirado na charge do Jarbas publicada no Diário de Pernambuco, veja Aqui

*Ivo Anselmo Hohn Junior - de quem é a culpa por pedrinhas?

“A culpa é minha e eu a coloco em quem eu quiser.” Homer J. Simpson

O garoto jogava bola em um desses campinhos improvisados em terrenos baldios da periferia pobre de São Luís. Na verdade, uma grande turma de meninos felizes, peraltas, desses que se veem por aí. Na falta de praças, quadras ou ginásios, montavam as suas traves naquele espaço.
 
A maioria não frequentava a escola e os poucos matriculados já eram repetentes. Reclamavam da distância, mas pelo menos o recreio era longo, pois muitos professores faltavam. Podiam brincar nesse tempo livre e sem aulas. Era bola, chucho, papagaio, brincadeiras de criança…
 
Livros, o garoto não possuía. Não sentia muita falta; tinha mesmo dificuldade para ler aquelas histórias, apesar da enorme curiosidade em saber o que acontecia com os piratas, monstros e heróis das figuras. Seus pais não podiam lhe ajudar.
 
Aliás, seu pai andava nervoso, desempregado e fazendo bicos. O pior – mas o garoto não sabia – era a pressão daquelas gangues para que ele trabalhasse para o tráfico. A invasão onde moravam era dominada por grupos rivais que controlavam as bocas de fumo. Maconha e merla eram as mercadorias naquele tempo.
 
Seu time estava desfalcado, pois o melhor atacante andava enfermo. Sempre havia uma criança doente na vizinhança. Nem sequer desconfiavam – aqueles garotos – que o esgoto a céu aberto na porta das casas de taipa era uma das causas da derrota no último campeonato de periferia.
 
A mãe trabalhava como doméstica em casa de “branco”, sem carteira assinada. Levava horas para ir e voltar, com os ônibus sempre lotados.
 
Rezava para os filhos não adoecerem. É que sua patroa não iria gostar se tivesse que faltar dias seguidos para conseguir uma vaga na fila do posto de saúde.
 
Do outro lado da cidade, naquela mesma tarde abafada de São Luís, outro menino jogava futebol com os amigos. O campo era gramado, num dos bons clubes da cidade. Depois da escola e da aula de inglês, estavam liberados para jogar bola, brincar de chucho, empinar papagaios. Eram as brincadeiras de criança.
 
Eram felizes e peraltas. No bairro havia esgoto e água encanada (nem todo dia), mas as ruas eram esburacadas e a coleta do lixo era irregular. A praça estava abandonada há tempo, e os vizinhos cada vez mais reclamavam de assaltos. Seus pais não gostavam que brincassem na rua.
 
A família tinha suas dificuldades: o irmão mais velho fora preso dirigindo bêbado, mas o pai resolveu com dois telefonemas.
 
Eram garotos parecidos; mesma idade, a alegria e as fantasias e a inocência das crianças.
 
Os dois garotos viviam em mundos bem distantes, porém afastados por poucos quilômetros.
 
Certa vez, encontraram-se na praia.
 
Um jogava bola com os amigos; o outro acompanhava parentes que admiravam o pôr-do-sol na Ponta D’Areia. Nunca fora àquela praia; não era frequentada por seus amigos. Todas eram meio sujas, mas aquela parecia mais.
 
O garoto resolveu chamar o estranho para completar seu time. Ganharam a partida, riram, brincaram de chucho, empinaram papagaios… Descobriram que dividiam o mesmo sonho de jogar na seleção brasileira.
 
O convite para jogar videogame no apartamento foi aceito. Porém, o pai zeloso chamou de volta o filho. Era hora de ir e nada de convidar aqueles meninos para casa. Poderiam ser perigosos.
 
O garoto da invasão não teve a força do pai. Começou fazendo pequenos serviços para os traficantes, que já comercializavam o crack. Cresceu e ganhou a confiança do líder. Pouco tempo depois, era dono de suas próprias bocas.
 
Fora isso, a invasão agora era um bairro. Ainda sem esgoto, escolas precária e posto de saúde lotado.
 
O menino do apartamento fora nomeado por um político, amigo da família, para um cargo público. Nem precisou fazer concurso. Seu pai andava nervoso com uns problemas de sonegação fiscal e licitações. Contudo, seus amigos influentes tranquilizavam-no.
 
Nos últimos meses, já homem feito, horrorizado com os atos de violência nas ruas de São Luís, evita sair de seu condomínio. O medo domina a cidade e impõe o toque de recolher. Após assistir ao vídeo com presos decapitados na Penitenciária de Pedrinhas, comentou em uma rede social: “bandido bom é bandido morto”.
 
Não reconheceu o garoto da praia entre os decapitados. Aquele dia, com o novo amigo, apagou-se da memória.
 
Este relato é real. Ocorre em qualquer cidade brasileira, pois é o enredo de nossas relações sociais. Um dos garotos pode ter sido decapitado ou ser um dos 62 mortos na Penitenciária de Pedrinhas. Ou ainda está lá dentro, rezando para não morrer em breve?
 
Obviamente, nem todos os garotos seguem esse roteiro. Mas quais as oportunidades reais apresentadas aos dois?
 
A atitude mais comum nos momentos de crise é distribuir culpas. Seja por projeção freudiana dos erros e falhas, seja por puro cinismo, joga-se a culpa de nossos fracassos nos outros.
 
A morte trágica de Ana Clara e as barbaridades em Pedrinhas. Qual nossa culpa?
 
Os presídios brasileiros, entre eles Pedrinhas, sempre estiveram à vista do Executivo, do Legislativo, do Ministério Público e do Judiciário. Por que deixamos chegar a esse ponto? O que estamos fazendo para enfrentar a questão, além de projetar culpas?
 
Os Executivos negligenciam os problemas carcerário, educacional, e de saúde, saneamento, mobilidade urbana e segurança.
 
Nossa Assembleia Legislativa ainda não constituiu CPI a fim de apurar gestões antigas e atual no sistema penitenciário.
 
O Judiciário – moroso e burocrático – precisa mudar. Conduzimos da melhor forma os processos que apuram desvios de recursos públicos? Julgamos com idêntico rigor o assaltante, o corrupto e o sonegador?
 
Verbas desviadas da educação retiram daquelas crianças da periferia as oportunidades de vida digna e de formação para o mercado de trabalho. O dinheiro apropriado da saúde impede a execução de políticas públicas de prevenção e de tratamento de dependentes químicos. Desvio de dinheiro público, portanto, custa caro. A violência urbana é um dos preços.
 
Dividimos a cidade em mundos estanques, carregados de intolerância e de incompreensão. A barbárie em Pedrinhas é subproduto de comportamentos violentos em toda a sociedade: agressões contra mulheres, maus tratos contra crianças, comportamento no trânsito. Atos que se tornaram cotidianos e ficam impunes. Alguns celebram as decapitações, pois são “bandidos a menos”. O mal banalizado, advertiu Hannah Arendt.
 
Um garoto foi degolado. O outro está com medo. Ana Clara morreu. Sua mãe, sua irmã e Márcio da Cruz, que tentou salvá-las, lutam pela vida. Querem voltar para casa, ali na periferia.
 
Um mundo tão distante a poucos quilômetros. Sem rede de esgoto, praças, educação, saúde…
 
Antes de projetarmos nossas culpas nos outros, vale lembrar Nietzsche: “Aquele que luta com monstros deveria olhar para si mesmo para não se tornar um monstro. E quando você olhar para um longo abismo o abismo também deve olhar para você”.
 
 *Juiz federal e professor universitário

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


Esse horror na penitenciária do Maranhão é apenas um exemplo extremo do descaso com que são tratados os apenados no Brasil. Em geral as prisões brasileiras são sucursais do inferno, e tem sido sempre assim, não importa quem governe. O que leva a pensar se não existe, por trás da insensibilidade hereditária, outra razão para o horror. Verbas para o sistema penitenciário estão tradicionalmente entre as últimas prioridades do país, o aumento da criminalidade lota prisões inadequadas, esquecidas pelo poder público, mas não é só isso.

Haveria outra lógica, inconsciente mas não menos culpada, justificando o descaso. Chamar as prisões de infernos, como é comum, nos dá uma pista do que seja essa outra lógica. De acordo com a cosmogonia cristã, o inferno é para onde vão os pecadores — para sempre. Pecadores não merecem perdão nem compaixão, seu sofrimento é contínuo e eterno.
Existiria a convicção, nunca reconhecida mas prevalente, de que bandido tem que sofrer mesmo, que deveria ter pensado no que o esperava no inferno da prisão antes de cometer seu pecado, e que a sociedade não lhe deve a consideração que daria a um animal.


Qualquer discussão sobre direitos humanos sempre empaca na questão dos limites de consideração que merece um criminoso. É comum acusarem os que se preocupam com os direitos humanos de qualquer humano, mesmo os criminosos, de ignorarem os direitos humanos das suas vítimas. O que é um falso silogismo.
Todo humano é humano antes de ser qualquer outra coisa, inclusive um monstro. Na questão de como castigar o criminoso é que seguidamente se sente, disfarçada ou não, a nostalgia da velha e boa, e acima de tudo simples, cosmogonia: o céu para os bons, o inferno e todas as suas agonias para os maus. Presos amontoados, matando-se uns aos outros — é pena, mas quem mandou serem maus?
Penitenciárias superlotadas e violentas não são vergonhas só brasileiras, claro. O problema de como alojar apenados, tratá-los como gente e se possível reabilitá-los é internacional. Mas as cenas da barbárie no Maranhão mostraram um grau de selvageria provocado pelos anos de indiferença que espantou o mundo. Chegamos a isto. Somos os campeões do descaso e das suas consequências.