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AIDS

[...] Mãe do compositor Cazuza conta em seu novo livro como reuniu forças, após a morte do filho, para fundar a Sociedade Viva Cazuza, que há mais de vinte anos cuida de crianças com Aids
AMOR Lucinha cercado pelas crianças atendidas na Sociedade Viva Cazuza
“Quem já perdeu um filho vai me entender”. É com essa frase que Lucinha Araújo, 75 anos, mãe de Cazuza, expõe de maneira inconteste a dor que ainda sente pela perda do filho. A mesma frase serve para explicar a luta que ela travou contra a doença por meio da Sociedade Viva Cazuza, que há 21 anos atende crianças e adolescentes portadoras do vírus HIV

O começo foi difícil. Lucinha diz que, quando Cazuza morreu, em 7 de julho de 1990, o primeiro sentimento foi o de querer tirar “essa doença”, como ela costuma se referir à Aids, de seu pensamento. Mas não conseguiu. “Fui contagiada pela Aids”, diz, em tom de brincadeira, para explicar sua opção por cuidar e dar apoio a quem sofre com a doença. Atualmente, 25 internos vivem na Sociedade Viva Cazuza, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. É essa história, mais precisamente a busca por uma razão para seguir a vida, que ela conta em seu terceiro livro O tempo não para – Viva Cazuza (Editora Globo 250 páginas, R$ 39,90) escrito com a colaboração de Christina Moreira da Costa, coordenadora de projetos da Sociedade Viva Cazuza. O livro ainda tem um motivo nobre: levantar fundos para a instituição, que se sustenta basicamente com os direitos autorais do legado deixado pelo poeta. 

A publicação também traz depoimentos inéditos de amigos de Cazuza, como Frejat, parceiro constante do artista em suas canções, a comadre Sandra de Sá (o compositor é padrinho do filho da cantora), Serginho Dias, a única pessoa com quem Cazuza teve uma relação amorosa duradoura, Ney Matogrosso e Ezequiel Neves, amigo e produtor musical de Cazuza, morto em 7 de julho de 2010, exatamente vinte anos após a morte do amigo. “Não gosto de Deus, tenho muita raiva por ele ter levado Cazuza antes de mim”, escreveu Neves, antes de morrer. 

Em entrevista a ÉPOCA, Lucinha falou sobre a falta que sente do filho e revela que já recebeu centenas de cartas psicografadas supostamente ditadas por Cazuza. “Nenhuma me tocou, nenhuma eu senti que era o Cazuza”, diz. 



ÉPOCA - No início do livro, você diz que a perda do Cazuza ainda é muito difícil para você e que a maneira que encontrou para superar isso é inventar motivos para seguir em frente. Esse livro também tem essa função? 

Lucinha Araújo
 – Sim. Esse livro encerra uma trilogia. O primeiro (Cazuza, só as mães são felizes) fiz porque tinha uma necessidade de botar para fora tudo o que estava engasgado. As pessoas conheciam aquele lado maluco do Cazuza. Mas ele não era só aquilo. Uma pessoa nunca tem um lado só. Mostrei o lado doce, de bom filho, de bom amigo... Passei a limpo nossas vidas. O segundo (Cazuza, eu preciso dizer que te amo) era para passar a carreira dele a limpo. É um livro muito gostoso de ler, traz depoimentos maravilhosos dos amigos dele. Esse novo livro é para mostrar como eu passei esses 21 anos sem ele. 
ÉPOCA - Ao mesmo tempo em que isso te ajuda, você abre mão da sua intimidade e conta sua história, fatos do seu casamento. Como aprendeu a lidar com isso? 

Lucinha –
 Eu sou assim. Minha vida é um livro aberto. Nisso eu e Cazuza somos muitos parecidos. É claro que não vou fazer inconfidências, falar nada que o meu marido não queira. Mas eu não tenho nada a esconder. Para mim é um ‘lavar a alma’. Minha alma é tão castigada pela perda do meu filho... Quem já perdeu um filho vai me entender. Há também a questão financeira. Esses livros me ajudam a manter a Sociedade Viva Cazuza. 
ÉPOCA - No livro você conta ter visto Cazuza e que ele está sempre com você... 

Lucinha –
 Isso desde o dia me que ele morreu. Quando ele estava bem doente, ele me dizia “Mãe, aconteça o que acontecer, estarei sempre ao seu lado”. Claro que ele estava falando da morte, mas eu não queria entender. Sempre tive a esperança que ele melhorasse. Depois que ele morreu, que comecei a sentir a presença dele, foi que entendi o que ele quis dizer. Ele não era bobo, sabia muito bem o que ia acontecer. A boba era eu. Eu não acredito em espíritos, em reencarnação. Nada disso. Já recebi centenas de cartas psicografas e nenhuma me tocou, nenhuma eu senti que era o Cazuza. Acho que se um dia for realmente dele, e eu espero que isso aconteça, eu vou saber que é ele. Tem coisas que só eu e o Cazuza falávamos, que nem o pai dele sabe. Tomara que eu ainda esteja viva para receber uma mensagem do Cazuza. Peço isso todo dia! 
ÉPOCA – No livro você diz que reencontra seu filho nas crianças da Viva Cazuza. Mas, vez ou outra, você já deve ter reencontrado o sofrimento que Cazuza também viveu por causa da doença. Como você lida com isso? 

Lucinha –
 A melhor coisa que fiz na vida foi abrir a Viva Cazuza. Não teria análise que compensasse isso. Hoje a Aids está muito diferente. Com os remédios novos, as pessoas convivem muito bem com a doença. Nossas crianças são saudáveis. Elas têm doenças comuns. Uma teve dengue agora. Os pequeninhos sofrem mais com essa mudança de tempo. Mas aquele sofrimento do meu filho, graças a Deus, eu nunca vivi novamente. Eu escolhi trabalhar com crianças por isso. Fui covarde. Não queria ver um vídeo tape da minha vida. 
ÉPOCA - Você em algum momento fez ou faz alguma preparação emocional ou espiritual para encarar o trabalho na Viva Cazuza? 

Lucinha –
 Nunca. Quando o Cazuza morreu, eu queria fugir dessa doença. Não queria ouvir falar dela. Na época, o Betinho telefonou para o João (Araújo, marido da Lucinha e pai de Cazuza) para me convidar para trabalhar com ele e eu não quis. Mas a Aids é uma doença tão maldita que você acaba se envolvendo por ela. Tentei fugir, mas não consegui. Nunca mais consegui botar a cabeça no travesseiro e dormir sem pensar que essa doença existe. A Aids contamina. Mas eu fui contagiada pela Aids (risos). Minha vida é: 50% na minha casa, no meu casamento e o restante é aqui, na Viva Cazuza. 

A capa do novo livro de Lucinha Araújo
ÉPOCA - No livro você fala sobre a rejeição das famílias com as crianças com Aids. Qual o conselho que você dá para essas mães? 

Lucinha –
 Eu trabalho com população carente. A condição para vir para cá é ser carente sócio-econômico e HIV positivo. Tenho que dar um desconto. Não posso querer que essas famílias tenham a mesma cabeça que eu e o João tivemos. O ambiente é totalmente diferente. Eu sempre digo que um vidro de remédio vale tanto quanto o beijo de uma mãe. Não abandonem seus filhos! O amor é um remédio tão bom quanto o AZT. 
ÉPOCA - Nesses anos todos de apoio aos portadores de HIV, você descobriu qual a melhor maneira de tentar acabar com o preconceito com os soropositivos? 

Lucinha 
– Eu trato preconceito com força bruta. Qualquer tipo de preconceito me dá nojo, seja social, de cor, de religião... Eu sou destemperada. Não levo desaforo para casa. Aqui (na Viva Cazuza) o preconceito diminuiu muito desde que começamos. Acho que as pessoas sabem que se tiver preconceito eu vou botar para quebrar. Tem um menino que mora aqui conosco que namora uma menina do colégio em que estuda. Os pais dela sabem que ele é HIV positivo. A Aids está aí há 30 anos. Já está na hora das pessoas saberem que doença é essa, como se pega, como não se pega. Isso ajuda a diminuir o preconceito. 
ÉPOCA - Como você tem conseguido manter a casa? 

Lucinha -
 Vivemos basicamente dos direitos autorais do Cazuza. Mas, em tempos de internet e pirataria, esse dinheiro caiu bastante. Vivemos apertados. A venda desse novo livro deve nos trazer um alívio. Espero que ele venda bem. O poder público já me ajudou mais, depois sumiu. O prefeito Eduardo Paes (do Rio de Janeiro) prometeu me ajudar a partir do mês que vem. É assim que sobrevivemos. Não tenho medo de trabalhar e nem de levar “não”. 
ÉPOCA - Você já declarou que ouve bastante os discos do Cazuza. Tem alguma música que te toca mais?

Lucinha – 
Depende muito do meu estado de espírito. Atualmente eu gosto de Um trem para as estrelas. Nem foi muito famosa, mas a letra é divina. E a música é do Gilberto Gil. Não tinha como não ser boa. 
ÉPOCA - Qual música você indica para quem quer conhecer quem era o Cazuza? 
Lucinha –
 Exagerado. Não é autobiográfica, ele fez para o Ezequiel Neves (produtor musical), mas virou o cartão de visita dele. 
ÉPOCA - Ainda há material inédito do Cazuza? 

Lucinha –
 O que eu tinha eu já publiquei. Recentemente, eu e o João cedemos uma letra que Cazuza fez chamada Qual é a cor do amor para O Estado de S. Paulo fazer um concurso. Eles querem que as pessoas façam a música para essa letra. Eu adorei a ideia. 
ÉPOCA - Você acha que falta um Cazuza na música brasileira? 

Lucinha –
 O Cazuza deixou um buraco que ainda não foi preenchido. Ele e o Renato Russo. A diferença era que o Cazuza era geneticamente alegre e o Renato geneticamente triste. Mas eles se completavam. Quando o Renato surgiu, ele disse “Agora preciso caprichar. Apareceu um cara melhor que eu”.