Fernando Henrique ajudou as grandes empresas de mídia a se colocarem no papel de vítimas
FHC foi um grande presidente, já disse algumas vezes. E, para mim, ele costuma ser um exemplo de serenidade no debate de ideias. Não se comporta como se estivesse numa arquibancada, entregue a gritos e insultos.
Isto posto, o que ele disse ontem num encontro da Sociedade Interamericana de Imprensa, a SIP, entidade que congrega as grandes empresas de mídia das Américas, pode ser classificado como um amontoado de bobagens. Elas não estão à altura do sociólogo brilhante que é FHC.
O pecado original dele foi dizer exatamente o que os sócios da SIP gostariam que ele dissesse. A mídia tradicional foi colocada por FHC num indefensável papel de vítima na América Latina.
FHC parecia se referir à Venezuela, ao Equador e à Argentina. Mas o Brasil poderia se enquadrar tranquilamente em suas simplificações rasteiras.
“Estão inventando uma espécie de democracia autoritária: você ganha pelo voto e governa atacando a oposição”, disse FHC.
Primeiro, não se conhece caso de quem, ganhando pelo voto, governe defendendo a oposição. Mas não é isso o mais importante.
De onde vieram as vitórias nas urnas dos governos de esquerda da América Latina? Essencialmente, da abjeta iniquidade social que vigorava, aliás vigora, em tantos países.
A grande imprensa, neles, sempre apoiou o status quo, quer dizer, a divisão fratricida das riquezas nacionais: poucos ricos e muitos miseráveis. As corporações de jornalismo representaram, sempre, a voz e o interesse do assim chamado 1%. Nada a estranhar: os donos pertencem ao 1%.
Era um situação politicamente insustentável. A iniquidade não se sustenta a longo prazo. A paciência da voz rouca das ruas tem limites. A cabeça separada do corpo de Luís 16 é apenas um exemplo disso.
Perdido o poder em países como a Venezuela, o Equador e a Argentina, a grande imprensa adotou uma estratégia de ataque sem limites. Chávez era chamado de macaco por jornalistas venezuelanos. No Equador, o presidente Rafael Correa, chancelado nas urnas duas vezes e com o maior índice de aprovação entre os presidentes das Américas, 80%, foi tratado recentemente, num artigo que li na mídia local, como o “Grande Ditador”.
A principal emissora de televisora da Venezuela foi adiante. Participou ativamente de uma conspiração para derrubar Chávez, e disso que resultou um golpe que durou 48 horas em 2002. A mobilização da sociedade – que apoia Chávez, gostemos ou não – devolveu-o ao Palácio de Miraflores.
No passado, incluído o Brasil, em 1964, os donos das grandes empresas de jornalismo apoiaram golpes de Estado que destruíram democracias e arrancaram do poder governantes eleitos pelo povo.
Dos golpes, resultaram ditaduras militares que, do ponto de vista econômico, funcionaram como babás dos ricos e das grandes corporações.
No Brasil, o regime de 1964 proibiu o direito de greve, a única arma dos trabalhadores para reivindicar melhores condições em situações extremas. A estabilidade no emprego foi eliminada e, com ela, uma conquista trabalhista que oferecia aos empregados uma compensação em caso de demissão.
A educação pública – a grande arma de mobilidade social, pois oferece aos filhos dos pobres a chance de disputar carreiras em condições de igualdade com os demais – foi devastada.
Ideologicamente, a iniquidade no governo militar foi defendida com uma frase cínica do homem forte da economia, Delfim Netto: “É preciso crescer para distribuir o bolo”.
Há um consenso, no mundo moderno, de que o combate à desigualdade social é imperativo. A alternativa é um caos social que não interessa a ninguém – nem aos plutrocratas.
O movimento Ocupe Wall St é um reflexo disso. A eleição do socialista François Hollande, na França, é, também, um sinal dos tempos. A iniquidade tem um papel vital na campanha de Obama na reeleição: ele bombardeia a informação de que seu oponente, Romney, não paga os impostos que deveria. Obama repete incessantemente também que Romney só se interessa pelos ricos como ele próprio.
Este é o mundo moderno.
A sensação que fica é que o SIP e as grandes corporações de mídia na América Latina estão absolutamente descoladas deste mundo. Vivem num Antigo Regime que, para elas é bom, mas para a sociedade, como um todo, não.
Fernando Henrique defendeu este mundo velho ontem, e, como seu admirador, lamento isso.
Paulo Nogueira