O jornalista Luís Cláudio Cunha - autor do livro “Operação Condor: o sequestro dos uruguaios, que trata do cado dos estudantes Lílian Celiberti e Universindo Díaz, que evidenciou, pela primeira vez, há 30 anos, a cooperação entre as forças de repressão política no Cone Sul – publicou um longo e muito interessante atigo sobre a questão da revisão da Lei da Anistia, no Observatório da Imprensa.
Embora recomende sua leitura de todo o texto, que leva o título de Quem tem medo da verdade , dele destaco um trecho que impressiona e faz pensar:
Lula, Jobim e os ministros militares poderiam ganhar alento na figura nobre de Martín António Balza, um general de porte altivo e fala serena, que comandou o Exército da Argentina de 1991 a 1999, durante os dois mandatos do presidente Carlos Menem. Vinha da Artilharia com especialização em guerra de montanha. Como tenente-coronel, participou em 1982 da Guerra das Malvinas comandando um grupo de artilharia. Foi preso pelos ingleses e, pela bravura que os generais de Buenos Aires não tiveram, recebeu a Medalha de Mérito do Exército.
Seu ato mais notável, no entanto, foi a espantosa aparição que fez na noite de 25 de abril de 1995 em Tiempo Nuevo, o programa de entrevistas mais importante da TV argentina, apresentado pelo jornalista Bernardo Neustadt. Com o uniforme cáqui de comandante e os cabelos brancos aos 61 anos, Balza iniciou um inesperado mea-culpa que emocionou o país, ainda traumatizado pelos 18 mil desaparecimentos oficialmente reconhecidos (30 mil para entidades de direitos humanos) nos anos da “guerra suja”, entre 1976 e 1983.
Tirou um papel do bolso e, com voz firme, carregada de convicção, leu um texto que poderia ser a leitura de um general sobre o Brasil. Fala Balza:
“Quero iniciar um diálogo doloroso sobre o passado, um diálogo doloroso que nunca foi mantido e que se agita como um fantasma sobre a consciência coletiva, voltando estes dias irremediavelmente das sombras onde ocasionalmente ele se esconde. Nosso país viveu a década de 70, uma década assinalada pela violência, pelo messianismo e pela ideologia. Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira. Sem eufemismos, digo claramente:
“Delinque quem vulnera a Constituição nacional. Delinque quem emite ordens imorais. Delinque quem cumpre ordens imorais. Delinque quem, para cumprir um fim que crê justo, emprega meios injustos e imorais. A compreensão desses aspectos essenciais faz a vida republicana de um Estado. Compreender isto, abandonar definitivamente a visão apocalíptica, a soberba, aceitar o dissenso e respeitar a vontade soberana…
“Esse é o primeiro passo que estamos dando há muitos anos para deixar o passado para trás, para ajudar a construir a Argentina do futuro, uma Argentina amadurecida na dor, que possa chegar algum dia ao abraço fraterno. Se não pudermos elaborar a dor e cicatrizar as feridas, não teremos futuro. Não devemos mais negar o horror vivido, e assim poder pensar em nossa vida como sociedade que avança, superando a pena e o sofrimento.
(…)O histórico depoimento do general Martín Balza produziu um efeito profundo no país e nas Forças Armadas argentinas, lembra o jornalista brasileiro Flávio Tavares, que foi correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires nos anos de chumbo:
“Sem que o próprio presidente Carlos Menem soubesse, o general Balza fez o mea-culpa e iniciou o processo de sinceramiento, como se chama na Argentina a essa catarse da instituição militar. Com isso, libertou milhares de oficiais das Forças Armadas do pesadelo de terem de assumir como próprios os delitos cometidos por uma minoria no Exército, na Marinha e na Aeronáutica.
“Esse processo de sinceramiento, a decisão de nada ocultar, reaproximou as Forças Armadas e a população, suplantando desconfianças e temores. Recordo ainda que, após a entrevista de arrependimento de Balza, uma jornalista argentina – com familiares assassinados pela ditadura – aproximou-se sorrindo, estendeu a mão e lhe disse:
– Pela primeira vez posso apertar a mão de um general sem ter medo ou culpa.”
Um diálogo tão doloroso, numa nação tão machucada como a Argentina, mostra que o tema da anistia e do perdão depende, às vezes, da palavra certa e muito da vontade política. E precisa ainda mais de coragem, que até agora não irrompeu no Alto Comando do Brasil. Não é difícil imaginar o efeito regenerador que uma declaração do general Enzo Peri, com este conteúdo, teria na história brasileira, reconciliando militares e suas vítimas pelo simples reconhecimento da culpa. É um gesto penoso, resignado, contrito, mas de insuperável grandeza. É difícil e ao mesmo tempo simples. Portanto, possível.
Quando assumiu o posto de ministro da Defesa, num momento em que o país vivia o apagão aéreo que convulsionava os aeroportos, Nelson Jobim fez uma conclamação que impressionou pelo arrojo, pela determinação:
– Aja ou saia, faça ou vá embora!
O Brasil gostaria de apertar a mão dos seus generais, sem medo ou culpa.
Basta agir e fazer, ministro Jobim! Ou, então, saia. Vá embora.