Um remédio mais radical
Pensando bem, de cabeça inchada mas fria, o contrário seria pior: ganhar dentro e perder fora de campo. Perdemos a Felicopa, mas realizamos a melhor das Copas — a Copa das Copas, como a presidente Dilma prometia e a gente ironizava. Nós, jornalistas, somos mesmo profetas do passado, quase nunca acertamos o futuro.
Esperávamos o sucesso nos gramados, e anunciávamos o caos nas ruas, aeroportos e portos. Erramos, embora se saiba que as obras ficaram inacabadas, assim como outros legados de infraestrutura.
Mas no momento o que interessa é que recebemos o elogio quase sem restrições dos colegas estrangeiros, o reconhecimento das delegações adversárias à nossa hospitalidade, à organização, à tolerância bem-humorada para com as provocações dos espaçosos hermanos, admitida até por eles mesmos.
Tudo isso foi um bálsamo para aliviar o que a psicanálise chama de “ferida narcísica”, que é quando a autoestima chega ao baixo nível a que chegou a nossa após as duas derrotas.
Contribuiu para a depressão nacional a interpretação ao pé da letra de Nelson Rodrigues. A seleção, muito menos a atual, não é a pátria de chuteiras, não representa a pátria sem chuteiras.
Isso foi uma hipérbole do genial cronista, que um dia escreveu que toda unanimidade é burra e hoje, por ironia, aceita-se unanimemente o que escreveu ou disse. Nessa linha, para quem gosta de alegorias e símbolos, a despedida dos brasileiros foi com lágrimas, enquanto a dos argentinos, sempre mais dramáticos, foi com os vômitos de Messi.
A propósito, como torci pelos alemães, fui cobrado por não ter sido movido pelas razões geopolíticas, e sim pela rivalidade futebolística. Tive que dizer que adoro o tango, reverencio Jorge Luis Borges, curti os filmes “As nove rainhas”, “O segredo dos seus olhos” e “O filho da noiva”, mas — e talvez aí esteja o principal motivo de uma certa animosidade — tenho inveja do nosso vizinho por ser apenas bicampeão do mundo em futebol, mas penta em Prêmios Nobel. Eu trocaria duas de nossas honrosas taças por pelo menos uma das cinco deles, a da Paz, já que têm duas só nessa categoria.
Enfim, depois da overdose desses últimos 30 dias, acho que vou adotar uma dieta detox, o sistema de alimentação que consiste em ajudar o corpo a eliminar toxinas. Só não recomendo o mesmo para o futebol brasileiro porque o grau de intoxicação em que se encontra o organismo em causa, a começar pela CBF, não se resolve com demissão de comissão técnica — necessita com certeza de um tratamento demorado e bem mais radical.
Zuenir Ventura é jornalista
O Anti-Nelson Rodrigues é uma das últimas peças de Nelson Rodrigues. O nome extravagante tem um motivo óbvio: o final é feliz.
Um beijo cinematográfico sela a história: os dois protagonistas estarão juntos para sempre, como num conto de fadas.
Isto é o anti-Nelson Rodrigues: suas peças jamais terminaram bem.
Fora do terreno da dramaturgia, temos hoje no Brasil o anti-Nelson Rodrigues. Paradoxalmente, é alguém que se considera um discípulo apaixonado de Nelson Rodrigues e o cita obsessivamente.
É Arnaldo Jabor.
Jabor é o anti-Nelson Rodrigues porque faz exatamente o oposto daquilo a que o maior dramaturgo brasileiro se dedicou com tamanho empenho.
Nelson Rodrigues gastou boa parte de seus incontáveis artigos nos jornais identificando, e combatendo, uma patologia nacional.
Ele dizia que o brasileiro era um Narciso às avessas, alguém que cospe na própria imagem.
Para ele, o futebol retirou o brasileiro da sarjeta emocional em que se arrastava desde sempre. O primeiro título mundial, em 1958 na Suécia, fez o brasileiro finalmente se orgulhar de seu país, e de si mesmo.
Isto, sabia ele, era fundamental para a construção do país. Você não constrói nada – uma família, uma empresa, muito menos um país – sem que as pessoas sintam respeito por elas mesmas e pelo grupo a que pertencem.
O anti-Nelson Rodrigues faz o oposto.
Em seus artigos e comentários no rádio e na tevê, Jabor se esmera em depreciar o Brasil e os brasileiros.
Numa fala na CBN que viralizou na internet, e já é um clássico das grandes asneiras da mídia, Jabor disse algum tempo antes da Copa que o Brasil daria um vexame mundial.
Nossa incompetência para organizar um evento de tal envergadura ficaria brutalmente exposta, segundo ele.
Veio a Copa e ela foi o anti-Jabor.
No mesmo texto em que vaticinou o apocalipse futebolístico, ele disse que o Brasil não é sequer o terceiro mundo. É o quarto.
Os ouvintes e leitores de Jabor são regularmente massacrados com a mensagem de que o país deles não presta – e nem eles.
Razões objetivas para detestar o Brasil ele não tem. Em que outro país teria o espaço na mídia que o Brasil lhe oferece? Em que outro país faria palestras a 20 mil reais ou mais a hora?
O Brasil é uma mãe amorosa para Jabor. E Jabor devolve o amor com desprezo. Ele lembra, neste sentido, o Oswaldinho de o Anti-Nelson Rodrigues. A mãe o adora, e ele a despreza com ferocidade. “A senhora sempre liga na hora errada”, grita Oswaldinho ao telefone numa cena à mãe rejeitada.
Por que tanto ódio?
É alguma coisa que só o próprio Jabor pode responder. Eis um homem atormentado, você logo percebe.
Teria sido o fracasso no cinema o responsável pela raiva que inunda Jabor? Só ele sabe.
O que ele talvez não saiba é o mal que, como Anti-Nelson Rodrigues, faz aos que o ouvem no rádio, o lêem nos jornais e o vêem na tevê.
Jabor projeta sobre eles, impiedosamente, toda a sua amargura, todas as suas frustrações, todo o seu rancor.
Os que hoje o levam a sério um dia, caso acordem, podem desejar algum tipo de indenização por terem sido devastados numa coisa tão importante como o respeito por si mesmos.
É uma conta que jamais poderá ser paga – nem pelo anti-Nelson Rodrigues que atende por Jabor e nem por ninguém.