Você reclamando de barriga cheia...

Dilma contra os que querem a recessão

Vão numa linha correta os dois pacotes econômicos lançados nesta 4ª feira (ontem) pelo governo da presidenta Dilma Rousseff. O primeiro, anunciado pelo Banco Central (BC),  combina uma injeção de mais R$ 25 bi no sistema de crédito bancário com afrouxamento dos controles para a concessão de empréstimos e normas voltadas para o financiamento de imóveis e veículos.

O segundo é a série de providências detalhadas pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, que desburocratizam o cipoal de documentos ainda necessário para obtenção de financiamento habitacional e agilizam a concessão do crédito à casa própria.

Além do efeito prático dos dois pacotes, o melhor é que com eles a presidenta Dilma, em bom momento, sinaliza que seu governo segue com coerência a política econômica adotada desde sempre e resiste aos apelos dos fundamentalistas do PSDB, do mercado e mesmo dos assessores econômicos da agora candidata a presidente da República, Marina Silva, que pregam um choque recessivo pós-eleição.

Oposição é que quer um choque e tarifaço pós-eleição

Toda a op0sição quer corte de gastos, aumento de juros, reajuste de tarifas públicas e aumento do superávit, o que levaria nossa economia à recessão e ao desemprego. Com essas medidas de agora, a presidenta Dilma sinaliza claramente que não há o menor risco, nem possibilidade de seu governo adotar medidas nessa linha.

Pelo contrário, fica evidente que a política econômica mestra vai continuar a buscar sua sustentação e apoio no mercado interno, nos investimentos do pré-sal e nas concessões públicas, até porque a inflação está caindo e os problemas maiores do país são manter o crescimento do emprego e da renda, buscar expandir seu mercado externo e suas exportações e diminuir suas importações – começando pela produção de mais óleo e gás no pais e mais refino da gasolina e demais combustíveis.

Com este horizonte, evidencia-se que reduzir os custos diretos e indiretos da economia tem sido uma obsessão do Governo. Tanto pela via das desonerações e da redução de impostos, quanto pela garantia do crédito para investimentos com a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP)  do BNDES, mais os investimentos em educação e inovação e, de novo, na infraestrutura em geral.

Com baixo crescimento deprimir a demanda interna é uma insanidade

Num momento de baixo crescimento internacional, deprimir a demanda interna via choque de juros e corte de gastos, como querem tucanos e o pessoal de Marina Silva é uma insanidade. Precisamos é precisamos e impulsionar nosso mercado interno com toda força no investimento em infraestrutura econômica e social. Como demonstra o 1º pacote divulgado pelo BC ontem, há margem para crescimento do crédito e nossa divida interna está sob controle, assim como os gastos públicos.

Já sem crescimento – como defende o pessoal da oposição – não há saída já que caem a arrecadação, os investimentos, os gastos públicos e só se aumenta a dívida interna. Passada a eleição, o que o país precisa de fato fazer é rever sua política de juros e cambial, onde temos pouca margem de manobra mas precisamos atuar e agir.

Aí, além disso, fazer as reformas política e tributária, e tomar medidas gerenciais-administrativas para garantir um bom ambiente de negócios e uma gestão pública eficiente e transparente, e tomar medidas microeconômicas – como as que o governo acaba de anunciar – para melhorar nosso sistema de regulação e garantias do crédito no pais

O novo governo, a presidenta Dilma Rousseff, num 2º mandato precisa incorporar o país e a sociedade no ministério, para sustentar um novo ciclo de desenvolvimento. E é só acompanhar a presidenta no que fala e faz: ela se compromete exatamente a isto, a mobilizar a sociedade para sustentar as reformas que o país exige e necessita para viabilizar uma revolução educacional, tecnológica, urbana e nos serviços públicos que o país exige.

Marina vai fazer campanha em jatinho da nova ou da velha política?


Passei algumas horas a levantar um assunto sobre o qual não publiquei nada ainda por tratar-se de algo que, sem certeza absoluta, a gente não fala nem na base do "talvez".

Foi a partir da coluna de Mônica Bergamo, na Folha, que dá o pontapé inicial num noticiário extremamente pesado.

O da propriedade do avião que vitimou Eduardo Campos.

Não vou fazer juízo de valor, apenas republicar o que a Bergamo divulgou, de manhã.

Um grupo de empresários de Pernambuco deve divulgar uma nota ainda nesta quinta assumindo que estava comprando a aeronave em que o presidenciável Eduardo Campos viajava.

Desde o acidente, na semana passada, em Santos, o nome do operador do avião está envolto em mistério. A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) abriu investigação para descobrir o verdadeiro dono da aeronave.

O avião, de prefixo PR-AFA, está em nome Cessna Finance Export Corporation, mas era operado pelo grupo Andrade, do setor sucroalcooleiro em Ribeirão Preto (SP). Ele foi colocado à venda por cerca de US$ 7 milhões.

Um empresário pernambucano, João Carlos Pessoa de Melo, procurou a corretora que representava a Andrade, em maio, e assinou compromisso de compra do avião.

Ao mesmo tempo, uma outra empresa, a Bandeirantes Companhia de Pneus, assumiu o leasing frente à Cessna. Oito prestações já teriam sido pagas pelo grupo de empresários. O valor seria abatido no final da operação de compra e venda.

O grupo pernambucano não quis falar com a Folha. O advogado Ricardo Tepedino, da Andrade, confirma as informações. E diz que elas já foram encaminhadas à Anac.

A Folha, porém, já foi adiante e em reportagem de Mauro César Carvalho levanta a suspeita:

"O avião pertencia ao grupo Andrade, dono de usinas de açúcar na região de Ribeirão Preto, que está em recuperação judicial, e só poderia ser vendido com autorização judicial"

Daí em diante ,  o caso vira um embrulho onde se suspeita de uma operação fictícia, destinada a fraudar credores da Andrade.

Mas também na ponta "compradora", os personagens são nebulosíssimos.

""O avião Cessna foi vendido a João Carlos Lyra Pessoa de Mello Filho e Apolo Santana Vieira, ambos de Pernambuco, segundo documento do grupo Andrade enviado à Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e revelado pela coluna Mônica Bergamo, da Folha. Mello Filho é usineiro e era amigo de Campos, segundo a Folha apurou."

João Paulo Lyra Pessoa de Mello (ou seu filho, como a matéria induz a crer) era um personagem metido em problemas por convênios com o Ministério da Ciência e Tecnologia, que foi ocupado por Eduardo Campos e, depois, por seus indicados do PSB. Foi com um indicado de campos, Sérgio Resende, que uma ONG ligada a ele firmou dezenas de convênios, segundo o Estadão.

Da mesma forma, um  João Paulo Lyra Pessoa de Mello e seu irmão Eduardo, usineiros em Pernambuco, foram condenados em 2011 por assassinar um rapaz, Alexandre dos Santos Correia, numa boate do Recife, crime ocorrido em 1999. Não sei se foram inocentados em segunda instância, após o Tribunal do Júri lhes dar penas de 14 e 15 anos.

Exceto se for o caso de homonímia, o que desde já deixo ressalvado, apesar de incrível, a coisa vai dar panos para manga.

O outro comprador do avião, Apolo Santana Vieira já foi denunciado pelo Ministério Público Federal  por fraude na importação de pneus chineses em Pernambuco.

Ramo em que opera também a  tal Bandeirantes que teria feito o leasing do avião. A Bandeirantes tem capital registrado de R$ 2 milhões, incompatível com a compra de um jato de US$ 7 milhões.

O caso é tão escabroso que tem cara de ter brotado, como o caso Lunus, de algum "saco de maldades".

Portanto, é preciso muito cuidado para não acusar quem não pode se defender ou dar explicações.

Mas é também impossível que um acidente com tamanha repercussão não vá ser investigado também no que diz respeito aos donos do avião.

Até porque, dias atrás, a Folha publicou que a própria vítima havia aprovado a operação de compra do avião.

Esperemos para ver aonde vai a apuração da Folha. Peço que, nos comentários, ninguém se precipite ou acuse sem provas.

O melhor, nestas horas, é esperar a verdade sem histeria, com respeito, mas também sem encobrimentos.

Papo de homem

“Sempre que vejo alguém falando em “caráter”, meu senso-aranha dispara. É uma palavra bem bonita e forte, tipo um porrete. Boa de se usar em discussões morais, mas me parece bem desconhecida — em profundidade — para a maioria de nós.

O que seria ter caráter, em sua visão? Quando se tem caráter é possível perdê-lo? Há situações em que temos caráter e outras em que não? Isso nos torna possuídores de meio caráter ou de nenhum caráter?

É possível recuperar o caráter perdido?”

Como a maioria dos conceitos mais importantes, precisamos diferenciar um pouco o sentido técnico do sentido da fala ordinária — e onde eles confluem.

Na fala cotidiana, “ter caráter” é não ser sacana, duas caras. Enfim, ser ético. Mais do que isso, o ser de forma relativamente consistente, ao longo do tempo e de uma forma relativamente previsível. É quase idêntico a “digno de confiança”.

No sentido técnico, há três formas de pensar a ética. As duas que não se focam tanto em caráter são a consequencialista, embasada em pensar as consequências das ações, e a deontológica, embasada em deveres e seguir regras.

Escola de Atenas, afresco do pintor Rafael. Ao centro, Aristóteles segurando "Ética a Nicômaco", sua principal obra sobre Ética.
Escola de Atenas, afresco do pintor Rafael. Ao centro, Aristóteles segurando “Ética a Nicômaco”, sua principal obra sobre Ética.
A forma clássica, grega e de boa parte da filosofia romana também, é a “ética de virtudes”, e é dela que o conceito de caráter vem. Nessa ética, focamos a formação do indivíduo e o indivíduo como uma totalidade, e daí a fonte da ação virtuosa seja fazer presença significativa em uma comunidade, e óbvio, encontrar sentido para si próprio.

É se comportar de forma a se conseguir viver com as próprias ações, tanto no sentido de olhar para si próprio quanto no de encontrar respaldo e “controle de qualidade” das ações em meio a uma comunidade.

Tradicionalmente as grandes escolas de pensamento ético (antiga, Kant, utilitarismo etc.) seguem principalmente uma destas três veias e lidam com seus próprios problemas com relação a pensar as ações humanas. São três formas de pensar valores:

em termos do indivíduo, da pessoa que carrega a ação;
em termos da própria ação e prescrições;
em termos, principalmente, das consequências da ação.
Talvez não seja necessário distinguir dessa forma, mas na filosofia não surgiu ainda um sistema ético coeso e amplamente aceito que unifique estas três perspectivas.

Portanto, ter caráter é, em certo sentido, agir de forma íntegra. Parece outra palavra-chavão? Pois o que se quer dizer por “integral”?

Exatamente que leva em conta uma totalidade, a saber, a totalidade de uma história pessoal, de todos os âmbitos da vida (carreira, relacionamentos etc), de uma inclusão em um contexto social. As ações da pessoa surgem de um agente que se formulou integralmente no mundo, que tem uma certa perspectiva ou eixo, um horizonte.

O que seria o oposto disso? Por quaisquer motivos: confusão, falta de reflexão, contingências etc, agir como um “coadjuvante” da própria vida, um personagem mal formado, vamos dizer assim (e não é surpresa que, em inglês, character seja uma palavra que indica um personagem de peça ou filme, o caráter moral, e algo como “ele é uma figura”, “he is a character” — tem um caráter inusitado).

É agir em escopos restritos, arbitrária ou aleatoriamente, porque só se consegue se pensar a si próprio dentro desses âmbitos limitados.

Então se fala em uma pessoa não ser autêntica, ser dúplice, duas caras: isso pode querer dizer que ela é simplesmente mentirosa, falsa, enganosa. Mas também pode querer dizer que ela não se porta de forma coerente com aquilo que ela mesma expõe, o que algumas vezes se vê acontecer em um só parágrafo escrito — e não que o parágrafo se contradiga em sentido implícito e explícito, o que é bem mais comum, ou apenas adulando e atacando ao mesmo tempo, o que é gosmento.

Mais que isso, algumas vezes se vê a pessoa seguindo simultaneamente duas estratégias contraditórias entre si, o que indica claramente que ela só “quer te pegar” de algum jeito, e não está argumentando com o fim comum de entender e resolver questões. E algumas vezes, se você expõe isso, surge a “sem-vergonhice”, isto é, a pessoa reconhece a falta que cometeu, mais que isso reconhece que é uma falta e que cometeu, mas diz “e daí”.

Então essas palavras “integridade”, “coerência”, “consistência”, “vergonha”, “face” (que é um conceito asiático apropriado pela sociologia) fazem parte do conceito de caráter. Em um sentido oposto, caráter e o conjunto de virtudes que a pessoa exerce consistentemente no mundo: coragem, perseverança, paciência etc.

Quando estamos falando do mundo atual, é correto trabalhar com a expectativa de que as pessoas não tenham caráter. Isto é, o conceito de caráter funciona quando conhecemos a pessoa. Entre desconhecidos, podemos usar outros critérios éticos, e pelo menos devemos criar mecanismos de accountability para que as ações tenham responsáveis.

Assim, em um mundo em que você conhece o político como uma celebridade distante, de história cuidadosamente fabricada pela indústria de relações públicas, não faz nem sentido exigir caráter de um político.

globo__bem-amado Paulo Gracindo Cedoc__gallefull
Odorico Paraguaçu
Na verdade, é uma armadilha absurda de nossa era, porque as pessoas ainda esperam caráter de pessoas públicas, em uma sociedade que contém milhões de pessoas — e nos são vendidos ideais de caráter. Nesse caso, efetivamente, o melhor seria não esperar o caráter, mas criar mecanismos, isto é, transparência radical, que permitam uma avaliação independente de uma imagem carismática criada pela publicidade. Esperar caráter, trabalhar com caráter nesse âmbito, só nos faz perder tempo.

Já nos micro-âmbitos, na família, no trabalho, assim por diante, o caráter continua valendo, e segue sendo o mais importante.

O caráter é construído, é uma mistura de hábitos próprios com a percepção dos outros, e fruto de uma vida examinada. Então a pessoa pode cometer grandes erros e não perder o caráter. Mas, por outro lado, uma vez que ele tenha sido manchado, recuperar é muito difícil.

Também não é fácil desenvolver o caráter, porque no início de nossa vida não temos tanto controle, e algumas vezes nenhum, sobre nossas circunstâncias e os exemplos e a educação que recebemos, e elas são elementos cruciais. Se a pessoa se descobre no meio da vida sem ter vivido uma vida examinada até então, é muito difícil começar do nada, quebrar hábitos velhos e desenvolver virtude.

Não é impossível, e todo mundo adora uma história de superação em meio a adversidade, mas provavelmente não é tão comum.

Por isso o caráter é uma forma tradicional de pensar a ética, e tradicional aqui com tudo de positivo e negativo que essa palavra acarreta. É mais lento que a nossa época permite, mas, por outro lado, permanece com seu valor exatamente por isso.

Então o caráter é a construção do agente ético através da vida examinada, ele pode ser obtido e perdido, mas é uma tarefa a tão longo prazo e envolve tantos hábitos arraigados que isso é incomum. Ele é integral, isto é, envolve todas as ações e todos os domínios da vida. Ainda assim, ele pode ser ferido ou incrementado.

O caráter não é tão importante do ponto de vista do julgamento ético dos outros, o que, de fato, é o menos relevante. Ele é importante no próprio cultivo ético.

Um exemplo clássico que contrasta as três visões da ética é o do amor por um filho.

Father and Son on Subway, 1958

Amamos um filho por dever, como era a prerrogativa de Kant? Ou o amamos com vista a fins, porque isso é melhor para todos, e assim por diante, como um utilitarista pensaria?

Não. O argumento essencial da ética de virtudes/caráter é que só amamos um filho porque isso faz parte de nossa constituição. E claro, podemos discordar que amar um filho seja uma ação, então pensemos todas as ações individuais ligadas ao amor filial.

Quando ele está com febre, o levamos no médico porque temos uma obrigação moral, um dever? Ou o levamos no médico porque queremos que ele melhore?

Claro que essas duas coisas também, mas o levamos ao médico essencialmente porque somos essa pessoa que se importa com ele.

Eduardo Pinheiro
EDUARDO PINHEIRO
Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.



O Psdb no divã

por Ilimar Franco - O Globo

Marina Silva (PSB) está arrebatando os votos da juventude e dos setores médios, que antes estavam com Aécio Neves. O desempenho do governo Dilma melhora a cada pesquisa. Para enfrentar essas dores de cabeça, o PSDB convocou reunião de emergência para ontem à noite em São Paulo. O temor é com o risco de Aécio deixar de ser o veículo do voto de oposição nas cidades grandes e médias.

Foram convocados para a reunião reservada o ex-presidente Fernando Henrique, o governador Geraldo Alckmin, o prefeito ACM Neto, o vice Aloysio Nunes Ferreira, o ex-governador José Serra e o presidente do DEM, José Agripino. Os tucanos tentam manter a tranquilidade, mas admitem que vivem momentos difíceis.

Torcem para que a largada de Marina e a melhora de Dilma não sejam consistentes. E já temem o efeito da diferença “brutal” do tempo na TV em favor da presidente. Há um risco de Aécio desidratar nos grandes centros. Em 2010, Marina venceu em Belo Horizonte e Brasília. E chegou em segundo no Rio de Janeiro, em Salvador, Recife e Fortaleza.


A salada, por Luis Fernando Verissimo

Vivemos na era da comunicação total. Basta ter um computador — ou melhor (ou pior), um telefone esperto — para ter à mão toda a informação de que se precisa. Já existe a tecnologia para transmitir imagens holográficas de pessoas e coisas, que se materializam, em três dimensões, em qualquer lugar, a qualquer distância, como se estivessem lá.
Nas campanhas eleitorais, já é teoricamente possível o candidato ter contato com o eleitorado sem sair de casa. O chamado “corpo a corpo” não tem mais sentido. Ou tem, mas sem os corpos presentes. O candidato pode estar no palanque de um comício em Maceió e num comício em Porto Alegre ao mesmo tempo, dizendo as mesmas coisas. É ele e não é ele, é sua imagem transmitida e multiplicada.
O próprio comício torna-se uma coisa obsoleta. E diminuem as viagens dos candidatos em aviões que às vezes caem, um risco proporcionalmente maior num país deste tamanho. Tudo isto é fazível, mas ainda é ficção científica e vai demorar para ser realidade. Provavelmente nunca será.
A política irá sempre exigir a presença física do candidato, o aperto de mão, a pele contra pele e o beijo no bebê. Entre o que poderia ser e o que continuará a ser há um abismo, e foi nesse abismo que desapareceu o Eduardo Campos, como já tinham desaparecido outros antes dele e (bate na madeira) desaparecerão outros depois.
A morte de Campos e o alvoroço que causou no seu partido e nos partidos coligados, indecisos quanto à confirmação ou não da Marina Silva como candidata da aliança, mostram mais uma vez a salada ideológica e programática que é a política brasileira. Parte da aliança faz restrições a Marina, o que deve levar seus apoiadores a estranhar que as restrições não tenham aparecido quando ela foi escolhida como segunda da chapa.
Qual é a posição da maioria da aliança quanto às posições da Marina, como sua crítica ao mega-agronegócio, por exemplo? Não se duvida do socialismo sincero da sigla PSB, mas que espécie de socialismo une o resto da aliança? A salada não exclui ninguém, nem o PT, com suas chamadas “alianças espúrias", epitomadas naquela visita à casa do Maluf, uma cena da qual o Lula poderia ter nos poupado.
Nenhum eleitor brasileiro sabe exatamente no que está votando, nessa mistura do pragmatismo dos grandes partidos com o oportunismo dos partidos caroneiros, que não representam nada a não ser sua própria gula por um naco de poder. Uma salada decididamente indigesta.

 


Luis Fernando Veríssimo é escritor 

O que Bonner perguntará a Blablá?

E antes dela responder - como fez com a presidente Dilma, a interromperá 19 vezes? -...

Paulo Henrique Amorim

Com o mesmo indicador direito – vote na enquete – e a mesma fúria vã, William Bonner vai esperar a melhor hora para entrevistar a Bláblárina.

Provavelmente, antes de uma nova pesquisa ensandecida, como diz o professor Wanderley Guilherme dos Santos.

Bonner vai procurar ser implacável com a queridinha da hora, já que o Aecioporto revela-se irrecuperável.

Aécio e sua turma de São Paulo, agora que a PF colou o trensalão nas costas do Cerra.

Com o intuito republicano de colaborar, o Conversa Afiada sugere algumas implacáveis perguntas à Bláblárina:

- Por que a senhora sorria debruçada ao caixão do Eduardo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E fazia selfie com o morto ao fundo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E, no caminhão do corpo de bombeiros, acenava para povo, de costas para o caixão ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora tem certeza de que foi a Divina Providência que a impediu de tomar o jatinho, ou foi para não ver o Alckmin nem pintado de verde ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Então foi a mesma Providência quem matou Eduardo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora sabe quem emprestava o jatinho ao Eduardo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora aceitaria que a viúva do Eduardo fosse a sua vice ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que será que os acreanos não elegem a senhora nem vereadora de Rio Branco ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Seu marido é da “nova” ou da “velha” política ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Quem vai lhe emprestar o jatinho ? Na última campanha foi a Natura …(Interrompe com o indicador direito.)

- O Itaúúú já lhe pediu juros altos – um dos componentes do “tripé” que a senhora defende ?

(Dificilmente o Bonner faria essa pergunta, porque o Itaúúú é um dos maiores anunciantes da casa.)

- A senhora sabia que seu vice é o Rei da Soja (transgênica) ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora acha que o Cerra ajudou a formar o cartel do trensalão ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Se eleita, a senhora vai mandar fechar as usinas de Belo Monte, Santo Antonio e Jirau e transformar em lago de bagre (Interrompe com o indicador direito.)

- Foi o Chico Mendes quem disse que a senhora era o herdeiro dela ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que a senhora não conseguiu fundar o partido (sic) Rede, se até o Pauzinho do Dantas conseguiu ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que a senhora apunhalou o Lula pelas costas (segundo o Bessinha) ? O que ele fez contra a senhora ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora vai privatizar a Petrobras ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E o Banco do Brasil ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E a Caixa ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E o IBAMA ? A senhora venderia o IBAMA ao James Cameron, ao Greenpeace ? (Interrompe com o indicador direito.)

- É verdade que a senhora vai nomear o Adriano Pires presidente da Petrobras ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E a Urubóloga Presidente do IBAMA ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora sabia que um dos filhos do Roberto Marinho – eles não têm nome próprio – tem a mania de Meio Ambiente, adora um aquário ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que a senhora não usa mais xale ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora não acha que certos blogueiros são sujos ? (Interrompe com o indicador direito.)

- De que a senhora vive ? (Aqui, ele não interrompe com o indicador direito. Deixa ela falar à vontade.)


Afinal, quem desistiu do Brasil?

Izaias Almeida: "Estava eu nessa altura do artigo quando fui surpreendido com a trágica notícia da morte do governador Eduardo Campos. A matilha conservadora, nem bem o país se refazia do choque com a notícia do desastre aéreo, já saia a campo até com pesquisa sobre como e por quem substituir o candidato desaparecido, numa demonstração inequívoca de sua truculência e de sua falta de ética e educação cívica, para usarmos uma linguagem minimamente civilizada. Pesquisa eleitoral genialmente definida pelo cartunista Bessinha como a primeira pesquisa de boca de túmulo..." Continua>>>


Matheus Pichonelli: Não penso, logo relincho

"Em alguns casos também podemos dizer: Penso que penso, logo posso relinchar ainda mais", Joel Neto

Um glossário com a lista dos principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo de violência e exclusão.

Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.

“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio país.

“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de exclusão e agressão?

“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em plena Avenida Paulista.

“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.

“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela quem provocou a agressão.

“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.

“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada, não?

“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto serve para manter as posições originais: ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.

“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento público do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.

“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato melhores).

“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo de intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.




“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.

“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governa na canetada.

“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela dos outros é refresco.

“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-penso-logo-relincho-4941.html


Tempos fugit, por Rubem Alves

Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredo¬res, escadarias, portas grossas e pesadas que ran¬giam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas... De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio... De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: "Tempus fugit". E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do pró¬ximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes húmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar "dingue¬le-dingue que eu vou para Angola, dingue-le¬dingue que eu vou para Angola" de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamen¬tos, sepultamentos, de riqueza e decadência.., O relógio batera aquelas horas — e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguémjamais notara mudan¬ça alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: "Não quero morrer..." Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda — (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) — subia numa cadei¬ra e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir... To¬das aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam, O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carri¬lhão, me chamava para si e me incorporava naque¬la estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradig¬máticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passa¬do, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. "Tempus fugit". O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir... Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos bar¬rotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do "Tempus fugit" pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.




Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, "Tempus fugit". Ainda comprarei um outro que diga a mes¬ma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: "Estou atrasado, estou atrasado...

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de 5. Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia eterna:
"Tempus fugit".
E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a músi¬ca suave da nossa verdade, o barulho dos rojões...
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice:
"Estou atrasado, estou atrasado...
Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo desco¬bre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será...

Mensagem da madrugada