by José Carlos de Assis
Para que o sistema de proteção ao trabalhador com carteira assinada elimine completamente a distinção entre trabalhador doméstico e os demais trabalhadores, é preciso que a lei nesse sentido recentemente aprovada pelo Congresso em favor da equiparação do trabalhador doméstico aos demais trabalhadores seja sucedida por uma lei que equipare os demais trabalhadores ao trabalhador doméstico.
Nesse sentido, uma CLT realmente justa estabeleceria para todos os trabalhadores os seguintes direitos: refeição (eventualmente duas, e mais café da manhã) para todos os trabalhadores no local de trabalho; direito de pernoite no local de trabalho ou, em sua ausência, garantia de duas ou três passagens de ônibus da casa ao local de trabalho por dia; lavagem de roupa no local de trabalho; lanche da tarde; creche.
Essa sugestão me veio à mente quando li todos os depoimentos realizados em audiência pública na Câmara por parte de “especialistas” convocados pela relatora do projeto, deputada Benedita da Silva. Sem exceção, todos falaram na tremenda injustiça, ou mesmo no resquício de escravatura consagrado na Constituição de 88 que estabelece uma distinção entre trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores, derrubada pela lei aprovada e hoje em processo de regulamentação com enormes dificuldades técnicas.
Uma vez feita essa equiparação, seria necessário mais um avanço, este no sentido do trabalhador comum para o doméstico, de forma que ao doméstico fosse reconhecido o direito de produzir mais valia em favor do patrão, a exemplo de uma empresa qualquer. É verdade que isso reproduziria a figura do escravo de ganho presente nos tempos da escravatura, mas, do ponto de vista de uma lei que proponha isonomia reversa entre as duas categorias, seria algo absolutamente justo.
Outra equiparação incidiria sobre a relação do empregador com o Governo. Na presunção de que o empregador doméstico deve ter o mesmo tratamento que uma empresa, é evidente que todas as despesas com os empregados, e sobretudo os salários, deveriam ser deduzidas do imposto de renda tributável, como acontece com todas as empresas. O senador Roberto Requião apresentou um projeto nesse sentido, a ser relatado pelo senador Paulo Paim, e se o Senado demonstrar um mínimo de sensibilidade à questão tratará de aprová-lo logo para atenuar o estrago.
É claro que o doméstico, em média, ganha pouco (R$ 721) em relação aos demais empregados (R$ 1780 em média). Contudo, seu salário vem aumentando nos últimos anos sem interferência do Governo: 56%, contra 29% dos demais empregados nos últimos oito anos. É que a categoria vem diminuindo: só em fevereiro, antes da lei, perdeu 25 mil trabalhadores, e 133 mil nos últimos 12 meses. Essa tendência do mercado de trabalho agora provavelmente se acentuará, não mais porque as domésticas estão conseguindo empregos melhores, mas porque alguns milhares de empregadores procurarão fugir das novas obrigações legais de empresas.
Na questão salarial, tentemos outra analogia. Se for deduzido do salário mínimo que vige para todos os trabalhadores (R$ 678) os encargos que os empregadores domésticos suportam (inclusive de imposto de renda) e as empresas não pagam, descobriremos, por uma conta simples, que os trabalhadores das empresas trabalham de graça, enquanto as domésticas têm o rendimento líquido integral! E vale, aqui, considerar outro ponto: os depoentes na audiência na Câmara falaram muito em convenção da OIT e trabalho decente. Será o trabalho numa empresa mais decente que numa casa de família com direito a proteção legal básica, como é hoje?
O que afirmei acima é apenas uma metáfora, mas serve para caracterizar o grau de estupidez e de demagogia que se verifica quando tentamos tratar de forma igual coisas desiguais. Empregado doméstico e empregado de empresa não é a mesma coisa. Um é o custo do conforto familiar, outro o custo para geração de lucro. Evidente que ambos devem ter direitos básicos protegidos por lei, mas esses direitos devem estar relacionados a sua função, não a uma igualdade genérica por cima. Entretanto, como não há como revogar uma lei recém-sancionada, o mais prudente é apostar no decreto de Requião-Paim, a fim de ao menos aliviar os custos domésticos para donos e donas de casa enfurecidos por sua equiparação a empresas.
*Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “O Universo Neoliberal em Desencanto” e “A Razão de Deus”