O trabalho precoce é uma experiência pela qual passei, pessoalmente, movido pela necessidade de contribuir para o sustento de nossa numerosa família.
Na infância, fui vendedor de laranjas, engraxate, entregador, antes de adquirir, ainda adolescente, minha primeira qualificação profissional como torneiro mecânico.
Compreendo, por isso, que pobreza e desigualdade são as causas principais da existência de trabalho infantil, em qualquer de suas formas.
Não apenas pela experiência pessoal, mas também em minhas viagens pelo mundo, pude testemunhar até que ponto a fome pode degradar o ser humano.
Eu vi, no Haiti, crianças mastigando bolachas de argila, na falta de um pedaço de pão.
Eu vi o mesmo desespero, sob outras formas, na face de crianças da África, da Ásia, da América Latina.
Nas caravanas que fiz pelo interior do Brasil, quando me preparava para disputar as eleições, vi crianças lambendo folhas de palma forrageira para enganar a fome.
Não por acaso, meu primeiro compromisso, quando cheguei à presidência da República, foi acabar com a fome no país.
Há certamente outras razões para a existência de trabalho infantil – fatores de ordem cultural, estruturas econômicas tradicionais e conjunturas políticas injustas.
Mas a miséria e a fome são determinantes.
Não há pai que, podendo prover o sustento da família com um mínimo de dignidade, exponha os filhos ao trabalho penoso.
Não há mãe que não se comova com o sacrifício dos filhos, quando queria vê-los crescer com saúde, brincando e aprendendo, como deveria ser com todas as crianças.
O mapa do trabalho infantil no mundo coincide rigorosamente com o mapa da fome e da miséria – e isso vale para as grandes cidades e para o campo.
As estatísticas de crianças e adolescentes trabalhadores se encaixam, seguramente, nos 870 milhões de pessoas que passam fome ou estão subnutridas no mundo.
Por isso, a primeira tarefa para acelerar o combate ao trabalho infantil, nas suas piores formas, é coordenar cada vez mais as ações de distribuição de renda nas regiões mais pobres do planeta.
E não é menos importante coordenar ações de promoção da saúde, educação, cultura e esporte, criar redes de assistência e promoção social.
Meus amigos, minhas amigas,
Quero compartilhar alguns aspectos da experiência brasileira, no sentido de contribuir para a troca de informações entre os muitos atores dessa luta.
O Brasil, como sabem, acumulou um enorme passivo de injustiça e desigualdade, que começou pelo genocídio dos indígenas e pela escravização dos povos africanos.
A história do nosso país foi marcada pela concentração de renda nas mãos de poucos e pela exclusão das camadas mais amplas dos seus direitos básicos.
Faz apenas 25 anos que reconquistamos a ordem constitucional democrática, no bojo de intensa mobilização social e disputa política.
A redemocratização do país se deu num processo de luta por direitos sociais, fortalecendo a consciência e a organização das camadas antes excluídas.
Em consequência, a legislação brasileira avançou em relação aos direitos humanos e direitos sociais, incluindo a proteção à infância.
A idade mínima de 16 anos para o trabalho, exceto como aprendiz, autorizado a partir dos 14 anos, foi incluída entre as garantias constitucionais em 1998. O trabalho noturno, insalubre ou perigoso é vedado antes dos 18.
As convenções da OIT nº 138, sobre idade mínima, e nº 182, sobre os piores trabalhos, foram recepcionadas e regulamentadas no país.
Adotamos em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente, que permitiu a instalação dos Conselhos Tutelares, atuando diretamente nas comunidades.
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho promove, desde 2002, ações de fiscalização coordenadas com o Ministério Público, que afastaram 125 mil crianças do trabalho infantil.
Além disso, as primeiras ações do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), a partir de 1996, mostraram a importância das políticas de renda mínima condicionadas à frequência escolar das crianças pobres.
Meus amigos, minhas amigas,
O Programa Fome Zero, que adotamos em 2003 para erradicar a pobreza extrema no país, tornou mais efetivas e ampliou o alcance das políticas contra o trabalho de crianças e adolescentes.
No âmbito do Fome Zero, que incorporou o PETI, criamos o Bolsa Família. É o maior programa de distribuição de renda do mundo, que garante renda mínima a 14 milhões de famílias, cerca de 54 milhões de pessoas.
A renda está condicionada à verificação de frequência mínima de 85% das crianças na escola, ao cumprimento do calendário de vacinação e, no caso das mulheres grávidas, à realização dos exames de pré-natal.
O Bolsa Família adota práticas republicanas para garantir sua universalidade, evitar desvios, burocracia e clientelismo.
Construímos um cadastro nacional único das famílias mais pobres, que é permanentemente revisto e atualizado.
O Ministério Público atua diretamente na fiscalização, em convênio com Ministério do Desenvolvimento Social, responsável pelo programa.
O dinheiro do Bolsa Família é recebido por meio de cartão eletrônico de um banco público, a Caixa Econômica Federal, dispensando intermediários.
O cartão eletrônico é emitido em nome das mulheres, favorecendo que o dinheiro seja efetivamente gasto na alimentação e nas necessidades das crianças da família.
Além de proporcionar a renda básica, o Bolsa Família está articulado com ações de segurança alimentar, políticas de educação, saúde, esportes, cultura, assistência social e formação profissional, dentre outras. Essa articulação é o segredo do êxito do Fome Zero no Brasil.
Mas o maior desafio que enfrentamos para implantar esse programa foi o preconceito.
Alguns diziam que o Bolsa Família não passava de esmola; outros que ia criar uma geração de indolentes; e outros que não passava de recurso eleitoreiro.
Os pobres se incumbiram de responder ao preconceito, incorporando o programa como um direito que os torna mais cidadãos, numa sociedade ainda muito desigual.
O programa Brasil Sem Miséria, da presidenta Dilma Rousseff, aprofundou as políticas do Fome Zero e ampliou os valores e faixas de atendimento do Bolsa Família.
O Bolsa Família e o Brasil sem Miséria garantem que 36 milhões de brasileiros estejam fora da pobreza extrema.
Além de programas sociais e de distribuição de renda, adotamos uma política de valorização do salário mínimo, que cresceu 74% em termos reais nesses 10 anos.
A renda média das famílias cresceu 33% e a renda das famílias mais pobres cresceu o dobro.
Implantamos medidas para democratizar o acesso ao crédito, para trabalhadores e aposentados, para a agricultura familiar e empresarial, a indústria, os serviços, a habitação e o ensino.
O volume de crédito disponível no país passou de 380 bilhões de reais em 2002 para mais de 2 trilhões e 500 bilhões atualmente, ou seja: de 24% do PIB para 55%.
A combinação de mais renda, mais salários e mais crédito gerou uma nova dinâmica na economia, num ciclo virtuoso que fez o país crescer de forma sustentada, sem abrir mão.
Em dez anos, foram criados 20 milhões de novos empregos formais – para jovens e adultos – e mais de 40 milhões de pessoas chegaram ao padrão de classe média.
Essa mobilidade social sem precedentes certamente contribuiu para liberar centenas de milhares de crianças e adolescentes da necessidade de trabalhar pelo sustento.
Chegamos a esses resultados porque colocamos os trabalhadores, os pobres e os desamparados, inclusive as crianças, no centro das atenções.
Estes, que eram considerados um grande problema, passaram a fazer parte essencial das soluções.
Meus amigos, minhas amigas
A experiência brasileira demonstra que é possível enfrentar a miséria e a fome, com determinação política, diálogo social e promoção do desenvolvimento.
Da mesma forma conseguimos reduzir em dois terços a quantidade de crianças e adolescentes trabalhadores, no período de maior mobilidade social positiva que este país já assistiu.
Vemos com muita satisfação que o combate ao trabalho infantil evoluiu em muitos outros países, especialmente na América Latina, aonde muitos governos vêm adotando o modelo de desenvolvimento com inclusão.
Por tudo isso, nós podemos e devemos sonhar com um mundo livre da fome, da pobreza e do trabalho infantil.
Devemos apoiar todos os programas capazes de levar o desenvolvimento e a geração de empregos às regiões mais pobres do planeta.
Nesse aspecto se insere a cooperação entre países do Sul, na qual o Brasil tem se empenhado, para a troca de experiências, apoio ao desenvolvimento e transferência de tecnologias sociais.
Mas quero destacar o papel central dos governos nacionais, especialmente nos programas sociais, na definição de leis e na fiscalização.
A grandeza de qualquer país se mede pela capacidade que ele tem de proteger e cuidar de suas crianças.
O combate ao trabalho infantil deve ser, portanto, uma política de Estado, de caráter permanente, com legislação específica e verbas previstas nos orçamentos nacionais.
Deve se basear em marcos legais claros, que incluam o ponto de vista das crianças e adolescentes.
Deve engajar todas as esferas do poder público e contar com o apoio de rigorosa fiscalização.
A eficácia das políticas públicas será maior na medida em que forem construídas com base em amplo diálogo, comprometendo a sociedade com a realização dos objetivos.
Essa não é uma tarefa de alguns – é de todos.
Neste sentido, destacam-se os compromissos assumidos pela União Internacional dos Trabalhadores em Alimentação (IUF) e das empresas que atuam globalmente na Agricultura, para reduzir o trabalho infantil neste que é o setor econômico em que ele mais se verifica.
Também é necessário construir estratégias, com base no diálogo, para garantir os direitos da infância sem desvalorizar culturas e tradições locais, mas sempre colocando o bem-estar da criança em primeiro lugar.
Reforço ainda a importância de consolidar a Democracia como forma de governo.
A Democracia permite à maioria da população lutar e organizar-se para enfrentar seus grandes problemas, dentre os quais estão a pobreza e o trabalho infantil.
As instituições democráticas garantem a legitimidade e a estabilidade das políticas públicas, de médio e longo prazo, destinadas a preservar os direitos da infância.
Meus amigos, minhas amigas,
Há uma tarefa fundamental nessa etapa do combate ao trabalho infantil, no Brasil e em outros países.
Trata-se de tornar o ensino público cada vez mais acessível, mais extenso, mais qualificado e atraente.
Volto a compartilhar a experiência brasileira neste sentido. Nestes dez anos, o investimento público em Educação no país passou de 4,8% do PIB em 2002 para 6,1% em 2012, e continua crescendo.
Esse investimento foi direcionado para todas as formas de ensino, da creche à universidade, da alfabetização de adultos aos centros de pesquisa, porque tudo é prioridade quando se trata de Educação.
Ampliamos o número de creches para mais de 50 mil, um crescimento de 50% em relação ao que havia até 2005. Temos 98% das crianças em idade escolar matriculadas no ensino fundamental.
Iniciamos em 2008 a ampliação da jornada nas escolas públicas, e hoje temos quase 50 mil escolas com ensino em tempo integral.
Esta é uma medida essencial para manter as crianças afastadas do trabalho – e quero mencionar dois brasileiros que muito lutaram por isso: Leonel Brizola e Darcy Ribeiro.
De fato, temos de ter como meta a universalização do ensino em tempo integral, se queremos realmente afastar todas as crianças do trabalho infantil.
Precisamos investir na formação profissional, pois não basta retirar as crianças e adolescentes do trabalho precoce: é preciso oferecer a oportunidade de inserção qualificada no mercado de trabalho, na idade certa.
Por isso criamos, desde 2003, 306 escolas técnicas profissionalizantes, que capacitam atualmente mais de um milhão de jovens.
Para dar a medida desse investimento, ao longo de quase cem anos haviam sido feitas 140 escolas técnicas no país.
Nenhum adolescente estará totalmente livre da situação de trabalho se não oferecermos a ele, além de uma vida digna em família no presente, a esperança de um futuro melhor por meio da Educação.
Meus amigos, minhas amigas,
Quero concluir parabenizando a todos pela realização desta III Conferência, e pelos esforços que cada um vem fazendo em prol da infância digna ao redor do mundo.
O conhecimento mútuo e a troca de conhecimentos que este encontro proporciona fortalecem nossa unidade em torno da causa comum.
Agradeço a oportunidade de aprender com experiências desenvolvidas em outros países, pelos governos, organizações sociais e organismos internacionais.
Espero, sinceramente, que cada um dos aqui presentes saia desse encontro com mais clareza sobre o que é preciso fazer, imediatamente, para alcançar nossa meta.
Reforço a intenção de continuar colaborando com todos que estão nessa luta por uma infância melhor, livre do trabalho precoce em qualquer condição que se apresente.
Reitero a convicção de que, para tanto, é fundamental fortalecermos a Democracia, o desenvolvimento e a luta pela redução da desigualdade entre os países e dentro de cada país.
Vamos seguir juntos, por um mundo livre do trabalho infantil.
Muito obrigado.
(Instituto Lula)