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O dia 28 de maio de 1974 de Paulo Coelho

Um grupo de homens armados invade meu apartamento. Começam a revirar gavetas e armários – não sei o que estão procurando, sou apenas um compositor de rock. Um deles, mais gentil, pede que os acompanhe “apenas para esclarecer algumas coisas”. O vizinho vê tudo aquilo e avisa minha família, que entra em desespero. Todo mundo sabia o que o Brasil vivia naquele momento, mesmo que nada fosse publicado nos jornais.

Sou levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), fichado e fotografado. Pergunto o que fiz, ele diz que ali quem pergunta são eles. Um tenente me faz umas perguntas tolas, e me deixa ir embora. Oficialmente já não sou mais preso: o governo não é mais responsável por mim. Quando saio, o homem que me levara ao DOPS sugere que tomemos um café juntos. Em seguida, escolhe um táxi e abre gentilmente a porta. Entro e peço para que vá até a casa de meus pais – espero que não saibam o que aconteceu.

No caminho, o táxi é fechado por dois carros; de dentro de um deles sai um homem com uma arma na mão e me puxa para fora. Caio no chão, sinto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel diante de mim e penso: “não posso morrer tão cedo.” Entro em uma espécie de catatonia: não sinto medo, não sinto nada. Conheço as histórias de outros amigos que desapareceram; sou um desaparecido, e minha última visão será a de um hotel. Ele me levanta, me coloca no chão do seu carro, e pede que eu coloque um capuz.

O carro roda por talvez meia hora. Devem estar escolhendo um lugar para me executarem – mas continuo sem sentir nada, estou conformado com meu destino. O carro para. Sou retirado e espancado enquanto ando por aquilo que parece ser um corredor. Grito, mas sei que ninguém está ouvindo, porque eles também estão gritando. Terrorista, dizem. Merece morrer. Está lutando contra seu país. Vai morrer devagar, mas antes vai sofrer muito. Paradoxalmente, meu instinto de sobrevivência começa a retornar aos poucos.

Sou levado para a sala de torturas, com uma soleira. Tropeço na soleira porque não consigo ver nada: peço que não me empurrem, mas recebo um soco pelas costas e caio. Mandam que tire a roupa. Começa o interrogatório com perguntas que não sei responder. Pedem para que delate gente de quem nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jogam água no chão e colocam algo no meus pés, e posso ver por debaixo do capuz que é uma máquina com eletrodos que são fixados nos meus genitais.

Entendo que, além das pancadas que não sei de onde vêm (e portanto não posso nem sequer contrair o corpo para amortecer o impacto), vou começar a levar choques. Eu digo que não precisam fazer isso, confesso o que quiser, assino onde mandarem. Mas eles não se contentam. Então, desesperado, começo a arranhar minha pele, tirar pedaços de mim mesmo. Os torturadores devem ter se assustado quando me veem coberto de sangue; pouco depois me deixam em paz. Dizem que posso tirar o capuz quando escutar a porta bater. Tiro o capuz e vejo que estou em uma sala a prova de som, com marcas de tiros nas paredes. Por isso a soleira.

No dia seguinte, outra sessão de tortura, com as mesmas perguntas. Repito que assino o que desejarem, confesso o que quiserem, apenas me digam o que devo confessar. Eles ignoram meus pedidos. Depois de não sei quanto tempo e quantas sessões (o tempo no inferno não se conta em horas), batem na porta e pedem para que coloque o capuz. O sujeito me pega pelo braço e diz, constrangido: não é minha culpa. Sou levado para uma sala pequena, toda pintada de negro, com um ar-condicionado fortíssimo. Apagam a luz. Só escuridão, frio, e uma sirene que toca sem parar. Começo a enlouquecer, a ter visões de cavalos. Bato na porta da “geladeira” (descobri mais tarde que esse era o nome), mas ninguém abre. Desmaio. Acordo e desmaio várias vezes, e em uma delas penso: melhor apanhar do que ficar aqui dentro.

Quando acordo estou de novo na sala. Luz sempre acesa, sem poder contar dias e noites. Fico ali o que parece uma eternidade. Anos depois, minha irmã me conta que meus pais não dormiam mais; minha mãe chorava o tempo todo, meu pai se trancou em um mutismo e não falava.

Já não sou mais interrogado. Prisão solitária. Um belo dia, alguém joga minhas roupas no chão e pede que eu me vista. Me visto e coloco o capuz. Sou levado até um carro e posto na mala. Giram por um tempo que parece infinito, até que param – vou morrer agora? Mandam-me tirar o capuz e sair da mala. Estou em uma praça com crianças, não sei em que parte do Rio.

Vou para a casa de meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que não devo mais sair na rua. Procuro os amigos, procuro o cantor, e ninguém responde ao meus telefonemas. Estou só: se fui preso devo ter alguma culpa, devem pensar. É arriscado ser visto ao lado de um preso. Saí da prisão mas ela me acompanha. A redenção vem quando duas pessoas que sequer eram próximas de mim me oferecem emprego. Meus pais nunca se recuperaram.

Decadas depois, os arquivos da ditadura são abertos e meu biógrafo consegue todo o material. Pergunto por que fui preso: uma denúncia, ele diz. Quer saber quem o denunciou? Não quero. Não vai mudar o passado.

E são essas décadas de chumbo que o Presidente Jair Bolsonaro – depois de mencionar no Congresso um dos piores torturadores como seu ídolo – quer festejar nesse dia 31 de março.
PAULO COELHO

Washington Post: Paulo Coelho: fui torturado pela ditadura do Brasil. É isso que Jair Bolsonaro quer celebrar?

28 de maio de 1974: um grupo de homens armados invade meu apartamento. Começam a revirar gavetas e armários – não sei o que estão procurando, sou apenas um compositor de rock. Um deles, mais gentil, pede que os acompanhe "apenas para esclarecer algumas coisas". O vizinho vê tudo aquilo e avisa minha família, que entra em desespero. Todo mundo sabia o que o Brasil vivia naquele momento, mesmo que nada fosse publicado nos jornais.
Sou levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), fichado e fotografado. Pergunto o que fiz, ele diz que ali quem pergunta são eles. Um tenente me faz umas perguntas tolas, e me deixa ir embora. Oficialmente já não sou mais preso: o governo não é mais responsável por mim. Quando saio, o homem que me levara ao DOPS sugere que tomemos um café juntos. Em seguida, escolhe um táxi e abre gentilmente a porta. Entro e peço para que vá até a casa de meus pais – espero que não saibam o que aconteceu.
No caminho, o táxi é fechado por dois carros; de dentro de um deles sai um homem com uma arma na mão e me puxa para fora. Caio no chão, sinto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel diante de mim e penso: "não posso morrer tão cedo." Entro em uma espécie de catatonia: não sinto medo, não sinto nada. Conheço as histórias de outros amigos que desapareceram; sou um desaparecido, e minha última visão será a de um hotel. Ele me levanta, me coloca no chão do seu carro, e pede que eu coloque um capuz.
O carro roda por talvez meia hora. Devem estar escolhendo um lugar para me executarem – mas continuo sem sentir nada, estou conformado com meu destino. O carro para. Sou retirado e espancado enquanto ando por aquilo que parece ser um corredor. Grito, mas sei que ninguém está ouvindo, porque eles também estão gritando. Terrorista, dizem. Merece morrer. Está lutando contra seu país. Vai morrer devagar, mas antes vai sofrer muito. Paradoxalmente, meu instinto de sobrevivência começa a retornar aos poucos.
Sou levado para a sala de torturas, com uma soleira. Tropeço na soleira porque não consigo ver nada: peço que não me empurrem, mas recebo um soco pelas costas e caio. Mandam que tire a roupa. Começa o interrogatório com perguntas que não sei responder. Pedem para que delate gente de quem nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jogam água no chão e colocam algo no meus pés, e posso ver por debaixo do capuz que é uma máquina com eletrodos que são fixados nos meus genitais.
Entendo que, além das pancadas que não sei de onde vêm (e portanto não posso nem sequer contrair o corpo para amortecer o impacto), vou começar a levar choques. Eu digo que não precisam fazer isso, confesso o que quiser, assino onde mandarem. Mas eles não se contentam. Então, desesperado, começo a arranhar minha pele, tirar pedaços de mim mesmo. Os torturadores devem ter se assustado quando me veem coberto de sangue; pouco depois me deixam em paz. Dizem que posso tirar o capuz quando escutar a porta bater. Tiro o capuz e vejo que estou em uma sala a prova de som, com marcas de tiros nas paredes. Por isso a soleira.
No dia seguinte, outra sessão de tortura, com as mesmas perguntas. Repito que assino o que desejarem, confesso o que quiserem, apenas me digam o que devo confessar. Eles ignoram meus pedidos. Depois de não sei quanto tempo e quantas sessões (o tempo no inferno não se conta em horas), batem na porta e pedem para que coloque o capuz. O sujeito me pega pelo braço e diz, constrangido: não é minha culpa. Sou levado para uma sala pequena, toda pintada de negro, com um ar-condicionado fortíssimo. Apagam a luz. Só escuridão, frio, e uma sirene que toca sem parar. Começo a enlouquecer, a ter visões de cavalos. Bato na porta da "geladeira" (descobri mais tarde que esse era o nome), mas ninguém abre. Desmaio. Acordo e desmaio várias vezes, e em uma delas penso: melhor apanhar do que ficar aqui dentro.
Quando acordo estou de novo na sala. Luz sempre acesa, sem poder contar dias e noites. Fico ali o que parece uma eternidade. Anos depois, minha irmã me conta que meus pais não dormiam mais; minha mãe chorava o tempo todo, meu pai se trancou em um mutismo e não falava.
Já não sou mais interrogado. Prisão solitária. Um belo dia, alguém joga minhas roupas no chão e pede que eu me vista. Me visto e coloco o capuz. Sou levado até um carro e posto na mala. Giram por um tempo que parece infinito, até que param – vou morrer agora? Mandam-me tirar o capuz e sair da mala. Estou em uma praça com crianças, não sei em que parte do Rio.
Vou para a casa de meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que não devo mais sair na rua. Procuro os amigos, procuro o cantor, e ninguém responde ao meus telefonemas. Estou só: se fui preso devo ter alguma culpa, devem pensar. É arriscado ser visto ao lado de um preso. Saí da prisão mas ela me acompanha. A redenção vem quando duas pessoas que sequer eram próximas de mim me oferecem emprego. Meus pais nunca se recuperaram.
Decadas depois, os arquivos da ditadura são abertos e meu biógrafo consegue todo o material. Pergunto por que fui preso: uma denúncia, ele diz. Quer saber quem o denunciou? Não quero. Não vai mudar o passado.
E são essas décadas de chumbo que o Presidente Jair Bolsonaro – depois de mencionar no Congresso um dos piores torturadores como seu ídolo – quer festejar nesse dia 31 de março.

Paulo Coelho: meu funeral

Faz tempo que me pergunto: se eu morresse amanhã, como seria meu funeral?
E a partir daí, deixar de fazer aquilo que nos mantém como "mortos vivos" [ou vivo mortos], e arriscar tudo, pelos sonhos que sempre pensamos realizar. Querendo ou não a morte está nos esperando, Éla é a única certeza que temos na vida. 

Vida que segue...

Paulo Coelho - próximo passo de Temer é matar a Lava jato

Escritor brasileiro mais lido do mundo, Paulo Coelho prevê as próximas etapas do cenário político brasileiro; "Próximo passo do governo é acabar com #LavaJato. A partir daí metade de Brasília pode dormir tranquila", postou em sua conta no Twitter; para ele, "o país parece anestesiado com um escândalo atrás do outro"; "Cansei - não adianta, os 3 poderes são mais fortes. Bravo, bandidos", criticou, ao compartilhar o diálogo entre Sergio Machado e Romero Jucá, em que o senador falava em "estancar a sangria da Lava Jato", num acordo "com Supremo e tudo".
do Brasil 247***

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Desabafo de Paulo Coelho


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O país [Brasil] parece anestesiado com um escândalo atrás do outro. Cansei! Não adianta, os três [podres] poderes são mais fortes. Bravo, bandidos!

Via seu Twitter @paulocoelho
***
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Mensagem da madrugada

"O medo de sofrer é pior do que o próprio sofrimento. É preciso correr riscos, seguir certos caminhos e abandonar outros."


Paulo Coelho
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Mensagem da Madrugada


Se você continuar apenas sonhando, um dia vai acordar e verá que não há mais tempo para fazer o que você sempre quis. 
Acorda. 
Faça agora!
Paulo Coelho

As duas listas

O dia do perdão

As duas listas
No dia do Perdão (Yom Kyppur), o rabino Elimelekh de Lsensk levou seus discípulos até a oficina de um pedreiro.
- Reparem o comportamento deste homem - disse. - Porque ele consegue entender-se bem com Deus.
Sem notar que estava sendo observado, o pedreiro terminou seus afazeres e foi para a janela. Tirou um pedaço de papel do bolso, e levantou-o para o céu, dizendo:
- Senhor, nesta folha escrevi a lista de meus pecados. Eu errei, e não tenho porque esconder que Te ofendi várias vezes. Eis aqui a lista de tudo que fiz de errado.
O ferreiro enfiou de novo a mão no bolso, e tirou outra folha de papel, levantando-a também para o céu:


- Entretanto, aqui está a lista dos Teus pecados para comigo, Senhor. Exigiste de mim além do necessário, me fizeste viver alguns dias muito difíceis, e me fizeste sofrer. Se compararmos as duas listas, o Senhor está em débito para comigo.
"Mas como hoje é o Dia do Perdão, Tu me perdoas, eu Te perdoo, e continuaremos juntos o nosso caminho, livre de culpas".
by Paulo Coelho

Carlos Castaneda um dia terá o reconhecimento que merece

Como se homenageia um escritor? Com seus textos, que refletem sua alma. Traduzi e editei nesta coluna alguns tópicos do pensamento de Carlos Castaneda em "Uma Estranha realidade" (A separate reality). O bruxo iaqui Don Juan conversa com o antropólogo:

Paulo Coelho

- Nada tem importância - disse o bruxo iaqui.

- Mas D. Juan, se nada tem importância, por que devo aprender a ver as coisas?

- Só depois de aprender a ver é que você poderá decidir se as coisas são importantes ou não. Você já é adulto o bastante para saber que um homem de conhecimento vive por seus atos, não por pensar nos atos, nem por pensar no que vai pensar depois de agir. Um homem de conhecimento escolhe o caminho do coração e o segue. Depois, olha o mundo a sua volta, fica contente e ri. Porque ele sabe que sua vida terminará muito depressa. Sabe, porque vê, que nada é mais importante do que qualquer outra coisa. Um homem de conhecimento não é fiel a nada, apenas à maneira que decidiu viver sua vida".

"Assim, o homem de conhecimento sabe que tudo é uma loucura, mas entende que, para continuar neste mundo, precisa manter esta loucura sob controle. Então, ele se esforça, transpira e bufa; quando se olha para ele, parece um homem comum, mas, na verdade, ele tem sua loucura controlada. Ele segue em direção ao conhecimento com medo, com respeito, sabendo que está indo a uma guerra".

- Como posso ser um guerreiro deste tipo?

- Agindo, e não falando. Usando o poder de sua vontade. A vontade é uma coisa que o homem usa, por exemplo, para vencer uma batalha que ele, por todos os cálculos, devia perder. É o que o faz vencer quando você já estava derrotado.

- Eu chamo isto de coragem.

- Não. Os homens de coragem vivem rodeados de pessoas que o admiram, mas muito poucos homens de coragem têm vontade. Porque a vontade é algo que desafia o nosso bom-senso. Um homem de vontade é um homem de poder.

- Posso dizer que sou um homem de vontade, quando me nego a fazer certas coisas?

- Não. Negar é uma indulgência. Faz-nos acreditar que estamos fazendo grandes coisas, quando na verdade estamos apenas fixados em nós mesmos. A vontade é um poder; como todo poder precisa ser controlada e afinada - e isso leva tempo.

- A vontade é o mesmo que ver?

- Não. A vontade é uma força, um poder. Ver não é uma força, mas uma maneira de se penetrar nas coisas. Um feiticeiro pode ter uma vontade muito forte, e jamais ter conseguido ver o mundo de maneira diferente.

- Como desenvolvo minha vontade?

- Já lhe disse que, quando você fala, só faz é confundir-se mais - disse ele, rindo. - Mas pelo menos, agora está consciente de que está esperando que a sua vontade se manifeste. Ainda não sabe como ela é, nem como vai chegar até você. Mas entenda uma coisa: aquilo que poderá ajudar a receber e desenvolver sua vontade está no meio das pequeninas coisas. Preste atenção a elas! 

Coluna dominingal de Paulo Coelho


Invocando Buda
Certa mulher invocava centenas de vezes por dia o nome de Buda, sem jamais entender a essência de seus ensinamentos. Depois de dez anos, tudo que conseguiu foi aumentar sua amargura e desespero, acreditando que não era ouvida.

Um monge budista percebeu o que estava acontecendo, e certa tarde foi até a sua casa:

- Sra. Cheng, abra a porta!

A mulher irritou-se, e fez soar um sino, sinal de que estava rezando e não queria ser perturbada. Mas o monge insistiu várias vezes:

- Sra. Cheng, precisamos conversar! Venha até aqui fora um minutinho!

Mensagem dominical de Paulo Coelho


Deus cria a mãe

Deus chamou o seu anjo mais querido, e lhe apresentou o modelo de mãe. O anjo não gostou do que viu:


- O Senhor tem trabalhado muitas horas extras, já não sabe mais o que está fazendo - disse o anjo. - Olha só! Beijo especial que cura qualquer doença, seis pares de mãos para cozinhar, lavar, passar, acariciar, segurar, limpar - isso não vai dar certo!

- O problema não é as mãos - respondeu Deus. - São os três pares de olhos que precisei colocar: um que permita ver seu filho através de portas fechadas, e protegê-lo de janelas abertas. Outro para mostrar severidade na hora de dar uma educação sólida. E o terceiro para ficar constantemente demonstrando amor, ternura, apesar de todo o trabalho que ela terá!

O anjo examinou o modelo de mãe com mais cuidado:

- E isso aqui, o que é?

- Um dispositivo de autocura. Ela não terá tempo de ficar doente, vai ter que cuidar do marido, dos filhos, da casa.

- Acho melhor o Senhor descansar um pouco - disse o anjo. - E voltar para o modelo normal, com dois braços, um par de olhos, etc.

Deus deu razão ao anjo. Depois de descansar, transformou a mãe numa mulher normal. Mas alertou o anjo:

- Precisei colocar nela uma vontade tão grande, que se sentirá com seis braços, três pares de olhos, sistema de autocura. Ou não será capaz de dar conta da tarefa.

O anjo examinou-a de perto. Desta vez, em sua opinião, Deus tinha acertado. De repente, notou uma falha:

- Ela está vazando. Acho que o Senhor, de novo, colocou muita coisa neste modelo.

- Não é um vazamento. Chama-se lágrima.

- Serve para que?

- Para alegria, tristeza, desapontamento, dor, orgulho, entusiasmo.

- O Senhor é um gênio - disse o anjo. - Era justamente o que estava faltando para o modelo completo.

Deus, com um ar sombrio, respondeu:

- Não fui eu quem colocou. Quando eu juntei as peças, a lágrima apareceu.

Mesmo assim o anjo deu parabéns ao Todo-Poderoso, e as mães foram criadas.

Paulo Coelho: um corpo estendido no chão


Havia um homem de aproximadamente cinquenta anos, deitado no calçadão de Copacabana. Eu passei por ele, lancei um rápido olhar, e continuei meu caminho em direção a uma barraca onde sempre costumo beber água de coco.

Como carioca já cruzei, centenas (milhares?) de vezes por homens, mulheres ou crianças deitados no chão. Como alguém que costuma viajar, já vi a mesma cena em praticamente todos os países onde estive - da rica Suécia à miserável Romênia. Vi pessoas deitadas no chão em todas as estações do ano: no inverno cortante de Madrid, Nova York ou Paris, onde ficam perto do ar quente que sai das estações de metrô. No sol escaldante do Líbano, entre os edifícios destruídos por anos de guerra. Pessoas deitadas no chão - bêbadas, desabrigadas, cansadas - não constituem novidade na vida de ninguém.

Tomei minha água de coco. Precisava voltar rápido, pois tinha uma entrevista com Juan Arias, do jornal espanhol El País. No meu caminho de volta, vi que o homem continuava ali, debaixo do sol - e todos que passavam agiam exatamente como eu: olhavam, e seguiam adiante.

Acontece que - embora eu não soubesse disso - minha alma já estava cansada de ver esta mesma cena, tantas vezes. Quando tornei a passar por aquele homem, algo mais forte do que eu me fez ajoelhar, e tentar levantá-lo.

Ele não reagia. Eu virei sua cabeça, e havia sangue perto de sua têmpora. E agora? Era um ferimento sério? Limpei sua pele com a minha camiseta: não parecia nada grave.

Neste momento, o homem começou a murmurar qualquer coisa como "pede para eles não me baterem". Bem, ele estava vivo; agora eu precisava tirá-lo do sol, e chamar a polícia.

Eu parei o primeiro homem que passou, e pedi que me ajudasse a arrastá-lo até a sombra entre o calçadão e a areia. Ele estava de terno, pasta, embrulhos, mas deixou tudo de lado e veio me ajudar - sua alma também já devia estar cansada de ver aquela cena.

Uma vez colocado o homem na sombra, fui andando em direção à minha casa - sabia que havia uma cabine de PM, e poderia pedir ajuda ali. Mas antes de chegar até lá, cruzei com dois soldados.

- Tem um homem machucado, diante do número tal - disse. - Coloquei-o na areia. Seria bom mandar uma ambulância.

Os policiais disseram que iam tomar providências. Pronto, eu havia cumprido meu dever. Escoteiro, sempre alerta. A boa ação do dia! O problema agora estava em outras mãos, elas que se responsabilizassem. E o jornalista espanhol estaria chegando em minha casa em alguns minutos.

Não tinha dado dez passos, e um estrangeiro me interrompeu. Falou em português confuso:

- Eu já tinha avisado a polícia sobre o homem na calçada. Eles disseram que, desde que não seja um ladrão, não é problema deles.

Eu não deixei que o homem terminasse de falar. Voltei até os guardas, convencido de que sabiam quem eu era, que escrevia em jornais, aparecia em televisão. Voltei com a falsa impressão de que o sucesso, em alguns momentos, ajuda a resolver muitas coisas.

- O senhor é alguma autoridade? - perguntou um deles, notando que eu pedia ajuda de maneira mais incisiva.

Não tinham ideia de quem eu fosse.

- Não. Mas nós vamos resolver este problema agora.

Eu estava mal vestido, camiseta manchada com o sangue do homem, bermudas cortadas de uma antiga calça jeans, suado. Eu era um homem comum, anônimo, sem qualquer autoridade além do meu cansaço de ver gente deitada no chão, durante dezenas de anos de minha vida, sem jamais ter feito absolutamente nada.

E isso mudou tudo. Tem um momento, que você está além de qualquer bloqueio ou medo. Tem um momento em que seus olhos ficam diferentes, e as pessoas entendem que você está falando sério. Os guardas foram comigo, e chamaram a ambulância.

Na volta para casa, recordei as três lições daquela caminhada. A) todo mundo pode parar uma ação quando ela ainda é puro romantismo. B) sempre há alguém para dizer: "agora que começaste, vá até o final".

E finalmente: C) todo mundo é autoridade, quando está absolutamente convencido do que faz. 

Paulo Coelho: O conto


Nixivan havia reunido seus amigos para jantar, e estava cozinhando um suculento pedaço de carne. De repente, percebeu que o sal havia terminado. 

Nixivan chamou o seu filho:
– Vai até a aldeia, e compre o sal. Mas pague um preço justo por ele: nem mais caro, nem mais barato. 
O filho ficou surpreso:
– Compreendo que não deva pagar mais caro, papai. Mas, se puder barganhar um pouco, por que não economizar algum dinheiro?
– Numa cidade grande, isto é aconselhável. Mas, numa cidade pequena como a nossa, toda a aldeia perecerá. Quando os convidados, que tinham assistido a conversa, quiseram saber porque não se devia comprar o sal mais barato, Nixivan respondeu:
– Quem vender o sal abaixo do preço, deve estar agindo assim porque precisa desesperadamente de dinheiro. Quem se aproveitar desta situação, estará mostrando desrespeito pelo suor e pela luta de um homem que trabalhou para produzir algo. 
– Mas isso é muito pouco para que uma aldeia seja destruída.
– Também, no início do mundo, a injustiça era pequena. Mas cada um que veio depois terminou acrescentando algo, sempre achando que não tinha muita importância, e vejam onde terminamos chegando hoje.

Paulo Coelho: sobre a intolerância


Os dois Deuses 
Existem dois Deuses.

O Deus que nossos professores nos ensinaram, e o Deus que nos ensina.

O Deus sobre o qual as pessoas costumam conversar, e o Deus que conversa conosco.

O Deus que aprendemos a temer, e o Deus que nos fala de misericórdia.

O Deus que está nas alturas, e o Deus que participa de nossa vida diária.

O Deus que nos cobra, e o Deus que perdoa nossas dívidas.

O Deus que nos ameaça com os castigos do inferno, e o Deus que nos mostra o melhor caminho.

Existem dois Deuses.

Um Deus que nos afasta por nossas culpas, e um Deus que nos chama com Seu amor.

Quem deseja ir para o céu?

Um padre - que via o diabo nos prazeres da vida - foi até o bar da cidade, e pediu a todos que comparecessem à igreja naquela tarde. Todos obedeceram. Com a igreja cheia, o padre bradou:

- Acabem com tanta bebida! Quem quer ir para o céu, levante a mão direita!

A igreja inteira levantou o braço - menos Manoel, que era considerado um homem digno, cumpridor de seus deveres.

Surpreso, o padre perguntou:

- E você, Manoel, não quer ir para o céu quando morrer?

- Claro que quero. Mas ainda não experimentei a vida que Deus me deu, e o senhor está querendo me levar agora!

Artigo dominical de Paulo Coelho


Um mergulho na infância

Hans Christian Andersen (1805 - 1875) foi o escritor dinamarquês que com suas histórias enriqueceu a infância de muitas gerações. Andersen nasceu em Odense: seu pai era um sapateiro, a mãe trabalhava como lavadeira, e durante a noite contava ao filho as histórias do folclore dinamarquês. Foi ela quem encorajou Andersen a escrever suas próprias fábulas e promover pequenos espetáculos com marionetes.

Não há maior homenagem à Andersen do que dividir com meus leitores o seu "O soldadinho de chumbo", que eu costumava chorar sempre que ouvia minha mãe contando. A seguir, uma versão resumida:

Era uma vez 25 soldados de chumbo, todos irmãos, como brotos que vinham da mesma planta. Cada um deles carregava seu fuzil, vestidos em seus lindos uniformes vermelho e azul. As primeiras palavras que o pequeno batalhão ouviu vieram dos lábios de um menino:

"Soldados, soldados!"

O garoto festejava seu presente de aniversário. O exército era exatamente igual, com exceção de um soldado, que tinha apenas uma perna, pois o chumbo acabara antes que estivesse pronto. Mas ele se equilibrava tão bem, que o menino resolveu guardá-lo.

Sobre a mesa havia muitos outros brinquedos, sendo que o mais atraente era um encantador castelo de papelão, onde uma bailarina - também de papel, com um vestido de gaze muito fino, e uma lantejoula muito brilhante - estendia seus delicados braços para o céu. Seu passo era tão belo, se alçava tão alto no ar, que o soldado de chumbo imaginou que a ela também faltasse uma perna.

"Seria a esposa mais adequada para mim" - pensou. "Mas ela vive em um palácio".

Resolveu esconder seu amor, e passar o resto da vida apenas contemplando a pequena bailarina.

Toda noite, quando as pessoas da casa se retiravam para dormir, chegava a hora em que os brinquedos brincavam, e se divertiam visitando uns aos outros, fazendo batalhas ou dando bailes. Os soldados de chumbo se aborreciam em sua caixa, mas tinham sido educados para ter disciplina e educação.

Certo dia, a empregada viu que havia um soldado aleijado, e o jogou pela janela. Meninos que passavam viram o brinquedo quebrado o colocaram em um barco de papel, que seguiu pela sarjeta até o esgoto - que por sua vez, desembocou em um rio.

Ali, um peixe engoliu o soldado, mas ele continuava impávido, com seu fuzil ao ombro, e sonhando com os dias felizes que passara junto do seu amor.

O peixe terminou sendo pescado, e vendido para a mesma casa onde, um dia, o menino recebera 25 soldadinhos de presente. A mesma empregada que o tinha jogado fora, achou-o no ventre do peixe, e desta vez jogou-o no fogo.

Antes de cair entre as chamas, ele pode ver, pela última vez, as mesmas crianças, os mesmos brinquedos sobre a mesa e o formoso castelo com a linda bailarina na porta.

E viu, nos olhos da bailarina, uma lágrima de papelão - ela também havia sentido sua falta.

Pouco a pouco, circundado pelas chamas, ele começou a derreter-se. À medida que suas roupas perdiam as cores, ele procurava manter seu porte marcial, com os olhos fixos naquela a quem jurara seu amor eterno. Os dois se contemplavam, tristes por estarem longe, contentes pela oportunidade de se encontrarem mais uma vez. Não se sabe como, mas uma corrente de vento atravessou a sala e arrebatou a pequena bailarina, que voou como uma fada e também caiu na lareira

. Dizem que Deus é generoso com os que amam, e por isso sempre dá oportunidade de que estejam juntos.

No dia seguinte, quando a empregada retirava as cinzas, notou um pequeno coração feito de chumbo, tendo no centro uma lantejoula que, ela sabia, pertencia a outro brinquedo que estava na mesa das crianças. 

Paulo Coelho: das 3 formas de amor...Eros


Em 1986, enquanto fazia o caminho de Santiago com Petrus, o meu guia, passamos pela cidade de Logroño enquanto se realizava um casamento. Pedimos dois copos de vinho, preparei um prato de canapés, e Petrus descobriu uma mesa onde pudéssemos sentar junto com outros convidados.

O casal de noivos cortou um imenso bolo.

- Eles devem se amar - pensei em voz alta.

- É claro que eles se amam - disse um senhor de terno escuro que estava sentado na mesa. Você já viu alguém casar por outro motivo?

Mas Petrus não deixou passar a pergunta:

- A que tipo de amor o senhor se refere: Eros, Philos ou Ágape?

O senhor olhou sem entender nada.

- Existem três palavras gregas para designar o amor - disse ele. - Hoje você está vendo a manifestação de Eros, aquele sentimento entre duas pessoas.

Os noivos sorriam para os flashes e recebiam cumprimentos.

- Parece que os dois se amam. Dentro de pouco tempo estarão lutando sozinhos pela vida, vão montar uma casa, e vão participar da mesma aventura: isto engrandece e torna digno o amor. Ele vai seguir sua carreira, ela deve saber cozinhar e será uma excelente dona-de-casa, porque foi educada desde criança para isto. Vai acompanhá-lo, terão filhos, e se conseguirem construir alguma coisa juntos, serão realmente felizes para sempre.

"De repente, entretanto, esta história pode acontecer de maneira inversa. Ele vai começar a sentir que não é livre o suficiente para manifestar todo o Eros, todo o amor que tem por outras mulheres. Ela pode começar a sentir que sacrificou uma carreira e uma vida brilhante para acompanhar o marido. Então, ao invés da criação conjunta, cada um irá sentir-se roubado em sua maneira de amar. Eros, o espírito que os une, irá começar a mostrar apenas seu lado mau. E aquilo que Deus havia destinado ao homem como seu mais nobre sentimento, passará a ser fonte de ódio e destruição".

Olhei em volta. Eros estava presente em vários casais. Mas eu podia sentir a presença de Eros Bom e Eros Mau, exatamente como Petrus havia descrito.

- Repare como é curioso - continuou meu guia. - Apesar de ser bom ou ser mau, a face de Eros nunca é a mesma em cada pessoa.

A banda começou a tocar uma valsa. As pessoas foram para um pequeno espaço de cimento em frente ao coreto para dançar. O álcool começava a subir e todos estavam mais suados e mais alegres. Notei uma menina vestida de azul, que deve ter esperado este casamento apenas para que chegasse o momento da valsa, porque queria dançar com alguém com quem sonhava estar abraçada desde que entrou na adolescência. Seus olhos seguiam os movimentos de um rapaz bem vestido, de terno claro, que estava numa roda de amigos. Eles conversavam alegremente, não haviam percebido que a valsa tinha começado, não notavam que a alguns metros de distância uma menina de azul olhava insistentemente para um deles.

Pensei nas cidades pequenas, nos casamentos sonhados desde a infância com o rapaz escolhido.

A menina de azul reparou meu olhar e saiu de perto. E como se todo o movimento estivesse combinado, foi a vez do rapaz procurá-la com os olhos. Ao descobrir que ela estava perto de outras garotas, voltou a conversar animadamente com os amigos.

Chamei a atenção de Petrus para os dois. Ele acompanhou durante algum tempo o jogo de olhares, e depois voltou ao seu copo de vinho.

- Agem como se fosse uma vergonha demonstrar que se amam - foi seu único comentário.

Outra menina olhava fixamente para nós dois: devia ter metade de nossa idade. Petrus levantou o copo de vinho, fez um brinde, a garota riu encabulada, e fez um gesto apontando para os pais, quase se desculpando por não chegar mais perto.

- Este é o lado belo do amor - disse. - O amor que desafia, o amor por dois estranhos mais velhos que vieram de longe, e amanhã já partiram por um caminho que ela também gostaria de percorrer. O amor que prefere a aventura.

Na próxima semana: Philos e Ágape 

Paulo Coelho: O outro lado da Torre de Babel


Passei a manhã inteira explicando que meus interesses não são exatamente os museus e as igrejas, mas os habitantes do país - e desta maneira, seria muito melhor que fôssemos até o mercado. Mesmo assim, eles insistem; é feriado, o mercado está fechado.

- Aonde vamos?

- Uma igreja. Hoje celebram um santo muito especial para nós, e com toda certeza para você também. Vamos visitar o túmulo deste santo. Mas não faça perguntas, e aceite que às vezes podemos ter boas surpresas para escritores.

- Quanto tempo de viagem?

- Vinte minutos.

Vinte minutos é a resposta padrão: claro que sei que vai demorar muito mais que isso. Mas até hoje eles respeitaram tudo que tinha pedido, melhor ceder desta vez.

Estou em Yerevan, na Armênia, nesta manhã de domingo. Entro resignado no carro, vejo o monte Ararat coberto de neve ao longe, contemplo a paisagem ao meu redor. Oxalá eu pudesse estar caminhando por ali, ao invés de ficar trancado nesta lata de metal. Meus anfitriões tentam ser gentis, mas estou distraído, estoicamente aceitando o "programa turístico especial". Eles terminam deixando a conversa morrer, e seguimos em silêncio.

O que é shugêndo?


Disseram-me que é uma relação de amor e dor com a natureza - comento com o biólogo que Katsura me apresentou, e que agora caminha comigo pelas montanhas.


- Shugêndo significa: "o caminho da arte de acumulação de experiência" - responde ele, mostrando que seu interesse vai além da variedade dos insetos da região - Disciplinar seu corpo para aceitar tudo que a natureza tem para oferecer; assim você também educa sua alma para o que Deus nos oferece. Olhe a sua volta: a natureza é mulher, e como toda mulher, nos ensina de uma maneira diferente. Encoste sua coluna vertebral na árvore.

Ele me aponta um cedro de mais de dois mil anos, com uma grossa corda estendida a sua volta. Na religião local, tudo que está circundado por uma corda é uma manifestação especial da Deusa da Criação, e considerado um lugar sagrado.

Eu encosto minhas costas no cedro, fecho os olhos, e o biólogo começa a contar-me que naquela região existem apenas dez árvores como aquela. Quando as peregrinações começaram, no ano 975, o lugar estava coberto de cedros milenares e árvores centenárias, cujas folhas - diz o biólogo - brilhavam com o sol. No século XIX, quando a revolução Meiji obrigou a separação dos templos xintoístas e budistas (antes disso, muitos deles ocupavam a mesma área, e conviviam em perfeita paz), florestas inteiras foram derrubadas, para que novos lugares de culto pudessem ser construídos.

- Tudo que é vivo contem energia, e esta energia se comunica entre si. Se você mantém sua coluna encostada no tronco, o espírito que habita a árvore irá conversar com o seu espírito, e tranquilizá-lo de qualquer aflição. Claro que, como biólogo, devo dizer que é a emanação de calor, etc... mas sei que também existe verdade na explicação mágica dos meus antepassados.

Eu estou de olhos fechados, e procuro imaginar a seiva da árvore subindo das raízes até as folhas, e ao fazer este movimento, provocando uma onda de energia que afeta tudo ao redor. Meu espírito vai ficando em paz, deixo a fantasia funcionar, e de repente me imagino dentro do caule, sem pensar, sem meditar, apenas em repouso absoluto.

- Aqui perto, por exemplo, os sinais da natureza decidiram o futuro da região.

Ouço a voz do biólogo me contando que, no ano 1185, dois samurais lutavam ferozmente pelo poder no Japão. O governador de Kumano não sabia quem iria vencer; certo que a natureza sempre tem a resposta, colocou sete galos vestidos de vermelho para lutar contra outros sete vestidos de branco. Ganharam os de branco, o governador apoiou um dos guerreiros, e fez a aposta certa: em pouco tempo, aquele samurai dominava o país.

- Agora me diga: você prefere acreditar que o apoio do governador que decidiu a luta, ou os galos deram o sinal divino sobre quem terminaria conquistando o poder?

- Eu acredito em sinais - respondo, saindo mentalmente do meu confortável estado vegetal, e abrindo os olhos. - Foram os sinais que me trouxeram até aqui, embora eu ainda não consiga entender direito o que estou fazendo.

- As viagens sagradas a Kumano começaram muito antes da introdução do budismo no Japão; até hoje existem por aqui homens e mulheres que passam, de geração em geração, a ideia de que um "casamento" com tudo que está a sua volta deve ser feito como um verdadeiro matrimônio: com entrega, alegrias, sofrimentos, mas sempre juntos. Utilizavam o Shugêndo para permitir esta entrega total, sem medo.

Abro os olhos, e sinto-me repousado pela energia que a árvore me transmitiu.

- Você pode me ensinar um exercício de Shugêndo? - O único que sei é amarrar-se numa corda e atirar-se contra as rochas de um despenhadeiro; francamente, não tenho coragem para isso.

- Por que você quer aprender?

- Porque sempre considerei que o caminho espiritual não envolve necessariamente o sacrifício e a dor. Mas, como disse alguém que encontrei nesta viagem, é preciso aprender o que se precisa, não o que se quer.

- Cada um faz o exercício que a Terra pedir; conheço um homem que subiu e desceu mil vezes, durante mil dias, uma montanha perto daqui. Se a Deusa quiser que você pratique Shugêndo, ela lhe dirá como fazer.

Ele tinha razão. No dia seguinte, isso aconteceu.