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Terrorismo em Paris e em Fortaleza



por Gustavo Gollo

Em Paris, grupos de homens armados abriram fogo contra populares em locais públicos, matando mais de uma centena de pessoas. Em Fortaleza algo similar ocorreu resultando em 11 mortes. Há fortes similaridades entre os dois atos de terror, cometidos com armas de fogo contra pessoas comuns; uma diferença drástica: a enorme repercussão de um caso, com fortíssimos ecos internacionais e a invisibilidade do outro, merecedor apenas de notas em páginas policiais.
Há diferença de escala entre ambos os fatos, é certo, tendo havido 10 vezes mais mortes em Paris que em Fortaleza. A diferença não explica o descaso quase total sobre a tragédia brasileira, gravíssima, mais até que a francesa, creio, em virtude das peculiaridades do terrorismo brasileiro. Explicarei.
Não compreendo minimamente o ato ocorrido em França. Há sugestões de ter sido obra de religiosos islâmicos, o que me pareceria francamente conflitante com os preceitos da religião, mas nada entendo sobre o assunto. Percebo nesse caso, apenas, uma ocorrência derivada de sugestões contínuas estimuladas pelos estados belicistas e meios de comunicação de todo o planeta desde os atentados de 2001 ao pentágono e torres. Desde essa época, os meios de comunicação me parecem sugerir atentados nos moldes cinematográficos, idealizando o perfil de uma organização terrorista clássica, disparatada. Esse me parece o primeiro evento nos moldes preconizados pela TV.
Enfatizemos a civilidade dos meios de comunicação franceses abafando a divulgação de imagens indignas e ofensivas a vítimas e familiares, atitude louvável mas decepcionante e humilhante aos olhos dos meios de comunicação em terras bárbaras.
Desnecessário apontar o empenho do estado francês, e de toda a Europa, em esclarecer os fatos e resolver o problema.
Tanto a divulgação quanto o empenho na solução das tragédias, no entanto, contrasta os fatos em França e Brasil. Lá o caso assumirá uma gravidade sem precedentes, incitará inúmeros debates dos quais resultarão atitudes claras, impositivas, reais. Aqui o caso será insignificante.

O massacre brasileiro é ainda mais absurdo que o francês. Um policial reage a assalto e morre na ação. Em “represália”, por “vingança”, policiais executam 11 cidadãos e jovens nas redondezas da ocorrência.
A ação é gravíssima: um caso de latrocínio dispara uma enorme onda de assassinatos cometida, exatamente, por aqueles que deveriam coibir ações desse tipo. Trata-se de um ato de terrorismo cometido por uma organização militar, a PM, ou paramilitar, a polícia civil. Os terroristas executam 11 populares, a esmo. O caso é visto com naturalidade.
É a naturalidade do fato, mais que tudo, que ressalta a gravidade do problema, que o torna muito maior que o francês. Os franceses tomarão providências, a estratégia terrorista causará indignação, será repudiada por todos. O absurdo do fato será evidenciado, e a ação esvaziada de qualquer sentido que pudesse vir a ter. A barbaridade será exposta e condenada por todos.
O ato terrorista cometido pelos policiais brasileiros, no entanto, será amenizado. Será visto com naturalidade, como coisa corriqueira. “Não temos esse problema de terrorismo, isso é coisa de europeu e muçulmano”, ouviremos. Ocorre que aqui somos todos bárbaros, e o terrorismo cotidiano. Natural que a polícia execute uma dezena de pessoas em represália à morte de um policial, ouvimos a recomendação repetida dezenas de vezes na TV. E o massacre permanecerá impune, os assassinos continuarão na ativa; talvez recebam um pito.
Insisto: a gravidade do problema é proporcional ao descaso, não à sua repercussão. O ato terrorista cometido em Fortaleza é muito mais grave que o francês, exatamente, pelos motivos que o abrandam a nossos olhos. É, exatamente, por não percebermos a gravidade do fato que ele tem dimensões muito maiores do que aquele que ecoa pelo mundo.
A ocorrência em Paris ecoa pelo mundo porque os franceses, sendo civilizados, horrorizam-se com a barbárie reintroduzida em suas terras, indignam-se e expõem sua indignação ao mundo. Os atentados terroristas promovidos pela polícia de Fortaleza não comovem, minimamente, por terem sido perpetrados contra um povo bárbaro que não compreende a gravidade do fato, que compactua e aprova uma polícia assassina e sanguinária. Os atentados ocorridos aqui, por nós, contra nós mesmos, não comove a ninguém, nem a nós mesmos. O extermínio de bárbaros não é comovente.
Mas, o que são os bárbaros, o que somos nós?
Sabemos que os franceses são civilizados, ou seja, indignam-se contra a matança de seres humanos, valorizam a vida humana, tendo esses como princípios muito básicos que se somam a muitos outros e incluem a repulsa à exploração da imagem do sofrimento humano em vídeos. Nós, bárbaros, estamos a meio caminho entre esse estado e o de animalidade. Já não somos mais animais e, quase sempre, reconhecemos isso. Já temos certo respeito por vidas humanas. Estando a meio caminho entre a animalidade e a civilidade, no entanto, frequentemente nos perdemos e nos confundimos entre um e outro estado. E nesses momentos matamos, executamos pessoas, por vezes a esmo. Defendemos a naturalidade das execuções cometidas pela polícia, do terrorismo cometido por essa entidade criminosa disseminada por todo o país. Não percebemos a gravidade do assassinato de pessoas, consideramos os assassinatos de brasileiros tão naturais quanto a matança de bois. Colocamo-nos, assim, a meio caminho entre bois e pessoas; não são outros que o fazem, somos nós mesmos. E não o fazemos quando expomos o fato, mas quando nos comportamos como monstros.
A naturalidade com que encaramos os atos terroristas ocorridos em Fortaleza é uma prova incontestável de nossa selvageria, de nosso estado de barbárie, de modo que, aos olhos do mundo civilizado, estamos a meio caminho entre a animalidade e a civilidade, ou seja: somos monstros.
Os franceses não se insurgirão contra o islamismo, nem clamarão barbaramente pelo extermínio dos bárbaros, mas indignar-se-ão contra a barbárie. Nós faremos coro com ela.
Enquanto não reconhecermos a barbárie, essa condição monstruosa a meio caminho entre a animalidade, a selvageria, e outra, mais propriamente humana, civilizada, permaneceremos nesse estado lastimável, a meio caminho da civilização.
O ato terrorista perpetrado pelos policiais cearenses, tão obviamente disparatado, desprovido de qualquer tipo de racionalidade e humanidade deveria servir de bandeira para o reconhecimento da condição de civilidade à qual devemos almejar.
Já não somos animais, já estamos a meio caminho da civilidade, agora somos monstros.