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O amor que confunde a madrugada

por Jader Pires

"Puta que o pariu!". Acordou no sobressalto e assustou sua mulher. Fazia uns olhos de coruja, suores empastavam-lhe a testa em brasas e as mãos se agarravam na realidade do lençol. 
— Mas o que te aconteceu, homem?
— Você tem noção da enrascada que a gente se meteu?
— Como assim?
— Estamos casados!
— Sim, há anos!
Se levantou e abriu a janela. A mulher foi ao seu encontro. Ficaram olhando o conjunto de prédios em miniatura trocando luzinhas, acendendo e apagando, pequenos e rápidos rabiscos em vermelho dos carros que passavam lá longe, na avenida, a quietude sacra da madrugada. Estavam calmos, descalços. 
O homem empurrou sua mão até a mão dela e segurou. Apertou aquele aperto afetuoso, como se quisesse senti-la ainda mais. Enquanto os carrinhos e pessoazinhas viviam suas vidas lá embaixo, ele resolveu se explicar:
— Já reparou como o que temos é complexo?
— Ô.
— Quero dizer, cacete, como a gente se aguenta? Como a gente se atura? Ontem o Douglas, lá do trabalho, veio perguntar da gente, se estava tudo bem. Disse que achava incrível pessoas darem certo juntas, nós dois nos darmos bem juntos. Pudera né. Enquanto o pessoal espera os fogos de artifício cor de rosa de Hollywood, aqui na vida real a gente mata as contas todos os dias da equação doida de doação e anulação e incentivo e troca. 
A mulher sorriu ainda olhando para os movimentos vagos da cidade a sua frente.
— Para e imagina, mulher. As pessoas pensam que, no amor, o casal senta junto na sexta à noite, bota um jazz e leem juntos, felizes da cara, passando as páginas, lendo em voz alta trechos que adoraram, roçando os pés um no outro.
— Mas a gente faz isso.
— Aí é que tá. Quantas camadas de acordos silenciosos nós fizemos pra chegar nesse denominador comum? Você estava ouvindo músicas essas últimas semanas que eu não estava com um mínimo de saco pra escutar. E quando eu pedi pra você levar contigo aquele último do Beck, você sorriu, assentiu com a cabeça e nunca botou no celular.
— Ah, eu não estava muito na pegada de ouvir aquele som calminho não.
— Pois é! A gente não está ouvindo a mesma coisa, mas, juntos, chegamos no ponto exato de saber colocar algo na vitrola que vai pegar os dois de cheio.
— Verdade.
— A janta que a gente faz ou onde vamos comer quando não cozinhamos. O dia da faxina, quem vai fazer o que, qual filme vamos ver, Se a gente vai ver aquele seu amigo que eu acho chato ou se vamos na exposição daquele artista que você acha superestimado. Quando decidimos, então, que vamos sozinhos e conseguimos fazer isso sem que o outro se sinta abandonado ou excluído. Olha a trabalheira que demos pra amaciar esse companheirismo, essa troca interessantíssima, um equilíbrio de Cirque du Soleil. 
— Não é fácil não.
— Não é. Você chega e quer falar sobre as dificuldades do seu trabalho e eu só quero terminar de escrever a minha crônica, você dorme cedo e eu varo a madrugada, você acorda disposta de manhãzinha enquanto eu rastejo perto do almoço a muito custo. Eu corro e você pula, horizontal e vertical, eu sou humanas e você, querida, de exatas. Não é nada simples botar tudo isso em ordem e dormir em paz! 
— Tudo isso é porque eu esqueci de pagar o Netflix, é?
— Eu quero muito ver a nova temporada de House of Cards!
— Eu paguei hoje, homem. Tá liberado lá.
— Sério? Quer ir ver comigo?
— Não. Tô com sono.
O homem, acalentado, deu um beijo em sua mulher. Estavam entendidos em águas buliçosas.

O amor é a confusão de uma noite em claro.
no Papo de Homem

Papo de homem

Conhece aquela?...
"Ele é tão lesado que se cuidasse de uma tartaruga ela fugiria"...Então?




"É por causa do Barrichelo". Foi assim que me apresentaram o Rubens, uma tartaruga que foi encontrada perto do trabalho há pouco mais de um mês. Ela parecia perdida caminhando assustada na calçada e, com medo de ela ser atropelada, rapidamente o amigo Rodrigo a trouxe para a casinha aqui do PapodeHomem. 
Muito mais rápido que isso, logo virou piada. Quem diabos perderia uma tartaruga? Aquela velha máxima de que "ele é tão lerdo que deixaria a tartaruga fugir se cuidasse de uma" poderia existir de fato?
O Rubens foi a atração da casa, o alívio cômico do final de tarde. Pesquisando, descobriram que ele, na verdade, era um jabuti do sexo masculino e que gostava de comer mamão, mesmo que a iguaria soltasse seu intestino. Acompanhei tudo meio à distância, era muita gente em cima do bicho, imaginei que ele fosse um cara mais discreto, um verdadeiro outsider
Sabe, aquela coisa de querer ficar meio só, de conhecer o mundo com as próprias patas? Acho que essa era a do jovem Rubens, uma descoberta de si mesmo no urbanismo selvagem da zona oeste de São Paulo. Teve um dia que me vi a sós com ele. Fui lá fora pensar numas palavras chiques e me deparei com sua desenvoltura meio estúpida pelo quintal. Me sentei e passei a reparar nele. Ele parou e me olhou. Ficamos nesse jogo de mente alguns minutos. Provavelmente ele me contou um pouco de sua vida, seu desejo de chegar ao Alasca, a saturação que ele estava sentindo da cidade grande, da falsidade das pessoas, do escárnio pela condição natural de lerdeza que ele carregaria para o resto da vida. 
Preconceito, liberdade, o direito de ir e vir de todos. Acho que tivemos um papo incrivelmente produtivo sem trocar uma única palavra. Era hora de libertar o Rubens.
Batendo de porta em porta, descobriram o dono do Rubens e seu verdadeiro nome: Leopoldo. Morava há uns dois quarteirões dali, em uma casa que estava em reforma. Os pedreiros deixaram o portão aberto e foi a brecha que o Rubens, digo, Leopoldo queria. Seu dono, um senhor de pouco mais de 50 anos contou que o jabuti ficara na casa quando o pai dele se mudou. Logo, o bicho tinha mais de 50 anos. O nosso aventureiro gosta de longas caminhadas pelo bairro, sempre na companhia de seu dono.
Ao levar o Leopoldo de volta para casa, o Rodrigo - que foi quem encontrou e o batizou de Rubens - começou a trocar uma boa conversa com o dono, saber mais sobre o passado do bairro, saber mais sobre a família do cara. No meio do papo, o pai do cara chegou da rua, um velho de mais de 70 anos chegando em sua moto, estiloso de tudo, descolado. Os três, encantados uns com os outros e com a deliciosa conversa sobre a vida, descobriram coisas em comum, falaram da paixão pelas motocicletas, sobre velocidade, sobre esperteza e lucidez e já passava mais de meia hora desde que se encontraram pelo motivo da entrega do jabuti.
E aí se deram conta. Onde estava o Jabuti? Lá se foi mais uma hora até encontrarem novamente o Leopoldo.
Vi depois, em meu celular, quatro ligações não atendidas. Não foi dessa vez, Rubens. Não foi dessa vez.

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É escritor e editor do Papo de Homem. Lançou, nesse ano, seu primeiro livro de contos, o Ela Prefere as Uvas Verdes e outras histórias de perdas e encontros.

O amor é fome




Sexta-feira à noite e aquela angústia. São as tais borboletas no estômago, os suspiros de saudade, a lembrança de ter sido sempre bom, sempre gostoso.
E a pizza que não chega.
Nessas horas, o entregador é seu príncipe encantado que sempre traz o amor eterno. Conta-se as horas, coloca a roupa apressado, a ansiedade toma conta. Será que a mesa está bonita? Será que ele está pensando em mim também?

Papo de homem

Como eu faço para chegar naquela gatinha?

Vinte minutos e onze metros. Era o tempo e distância que eu tinha para conseguir conquistar a Ana Carolina, a menina nova da oitava B. Havia duas semanas que ela fora transferida de uma escola do interior de São Paulo para a nossa escola, chamando a atenção imediata do colégio todo.

Parecia uma índia, a pele castanha, olhos levemente puxados para cima, maçãs do rosto fortes, cabelo escuro e liso e bem grosso, reto. Uma franja cortada bem rente às sobrancelhas negras que davam ainda mais destaque aos olhos verdes. Era uma divergência de claro e escuro que deixava intrigada todas as turmas de todas as séries. Quando a Ana Carolina chegou ao colégio, o sossego acabou. Inclusive o meu.

Imagine só, duas semanas de ansiedade e apoquentação. Eu, no ápice dos meus treze anos, ainda não tinha analisado com tamanho afinco os detalhes da minha própria natureza. Um metro e meio, magrela, nariz com buracos saltados para os lados e cheio de sardas. Não haveria menina no mundo que poderia me notar. Pelo menos era isso que eu achava.

Não por mim, eram as estatísticas. Em mais de uma década de existência, a única figura de alma feminina a me cortejar foi a Peteca, cadela que a gente tinha e que adorava me lamber quando eu chegava suado do futebol. Ela morreu — não por conta das lambidas dos meus suores, mas de velha mesmo — e, desde então, a vida tocou sem que eu ou elas tivéssemos qualquer contato mais íntimo.

Problemas grandes não haviam. Eu gostava de jogar bola e Super Mario, ler histórias em quadrinhos. Mas o chacoalho foi forte quando vi passar pela entrada da escola, logo cedinho, aquela menina de meias brancas até os joelhos e saia negra como os cabelos. Naquele momento e em todos os outros que se seguiram até então, eu daria embora a minha bola de capotão, venderia o meu Super Nintendo pelo preço mais acessível só para ter dois minutos de coragem para explicar para ela, a Ana Carolina, que o destino era indolente e que, agora, os meus desígnios e toda a minha ventura estavam apontados para ela. Mesmo sem fazer a menor ideia do que seria indolente, um desígnio ou ventura.

Estava há duas semanas pensando em como falar com ela, em como vencer meus medos e ter um dedo de fala com aquela menina. Todo cuidado era pouco e, no ano passado, tive provas suficientes de que cautela era a primeira opção.

Quando eu estava na sétima série, teve uma vez que dois garotos estavam apaixonados pela mesma garota, a Nicole. Cabelos dourados, empetecada de branco e rosa, tinha o cheiro doce e motorista que a levava para tudo que é canto. Nessa disputa, eles decidiram levar, no mesmo dia, um presente cada um para dar a ela. Com os mimos nas mãos, ela haveria de escolher um dos dois.

Um deles era o Denis, um garoto de porte atlético e cabelos espetados. Era pouco mais alto que eu, mas ágil, sempre era um dos melhores nas brincadeiras e nos jogos. O outro era o Antônio, um menino de doze anos que esticara cedo, medindo já quase um metro e oitenta. Tinha ossos largos e uma bochecha grande e caída, assim como os olhos que pareciam sempre cansados. Desengonçado ele era em qualquer atividade, desde saltos e rodopios até a mais simples tarefa de caminhar.

No dia seguinte, ambos estavam com suas melhores mudas do uniforme escolar, nada daquelas calças com tampos de couro nos joelhos. Nas mãos, ambos com embrulhos delicados, amarrados com fitinhas brilhantes — um de papel branco e fira rosa e o outro com laminado roxo amarrada em dourado — e sorrisos na cara. Fora, primeiro um e depois o outro, até a mesa dela entre as aulas de ciências e português, e depositaram suas lembrancinhas na carteira. Antônio foi antes e , dentro do pacote, uma caixinha de maquiagem com massas coloridas para decorar os olhos e boca. Minutos depois, o presente do Denis foi aberto também. Outra caixinha de maquiagem com massas coloridas para decorar olhos e boca. Idênticas.

Com duas caixas iguais e uma maturidade de menina que nunca recebeu um não como resposta, a única alternativa que a Nicole viu de demonstrar quem ela preferia foi juntar a caixinha e o papel de presente que lhe fora dado pelo Antônio e jogar pela janela do terceiro andar da escola. Voltou para a sua mesa e foi ver quais cores melhor combinariam com seu tom de pele.

Eu é que não queria ver um presente meu despejado pela janela com todo mundo olhando.

Tinha que ter o approach perfeito. Conversei sobre o assunto com três pessoas. Meu analista me disse que era normal o nervosismo e que eu deveria abdicar de minhas aspirações vitoriosas, pois só uma vida sem anseios me daria um cotidiano sem frustrações e, logo, cada lampejo de felicidade seria aproveitado com todo o zelo desse mundo. Disse que eu deveria me retirar de dentro dessa armadura heroica e, munido do manto da derrota, sabiamente eu me encontraria sem medo para o embate com a morte, digo, com a menina.

Achei tudo aquilo meio estranho e não levei pra frente. Falei também com meu amigo, o Lúcio, e ele me contou que a Ana Carolina disse que gostava de alguém da escola, um menino que ela não sabia o nome e que adorava ver ele jogando futebol. Disse que eu deveria jogar como nunca e fazer muitos gols e me profissionalizar e, jogando na Europa, certamente seria eu o escolhido. Achei meio aleatório demais e não quis dar cabo no plano.

Conversei também com um tio meu, que foi gentil e sentou pra me dar conselhos. Me perguntou quem eram as pessoas que eu mais gostava e eu disse que eram meu pai e minha mãe. Ele disse, então, para que falar com a menina como falaria com eles, que a sinceridade faria dar tudo certo. Acho, hoje, que ele queria dizer algo sobre abertura, acolhimento, uma conversa real e verdadeira que conectaria as duas pessoas em um desenrolar de fatos e conversas genuínas e, com essa proximidade profunda, ficaria mais fácil de seguir com a conquista. Mas, naquela idade, achei bem confuso pedir leite com bastante Toddy ou um carrinho de controle remoto pra menina que eu estava apaixonado. Também deixei de lado esse conselho.

Os vinte minutos do intervalo se passaram e os onze metros agora diminuíam, já que ela vinha em minha direção, conversando e rindo com as novas amigas. As pernas começaram a tremer a a garganta era de uma secura só. Ela disse para a as amigas seguirem que ela iria tomar água do bebedouro na entrada do corredor das classes. Dois metros de mim.

Filmes românticos passaram pela minha cabeça, uma poesia que eu estava tentando decorar, o grito dos Thundercats, a ideia de correr até a Sibéria por pura vergonha. Era agora ou nunca e eu teria que dar o tiro certeiro, a cantada perfeita, a chegada meticulosa, a manha mais manhosa, o delírio amoroso que derreteria qualquer coração.

Saiu o banal.

— Oi.





Jader Pires
É escritor e editor do Papo de Homem. Lançou, nesse ano, seu primeiro livro de contos, o Ela Prefere as Uvas Verdes e outras histórias de perdas e encontros.

A matemática da mulher perdida

Ser de humanas é não ter a prática das contas de cabeça. Antes de dormir, soma nos dedos as horas que possui até o despertador tocar na manhã seguinte. Na saída do bar com os amigos meio intelectuais e meio de esquerda, a velha batalha de saber quem paga o que, quanto dá pra cada um, álcool e falta de domínio numérico e aquele colega que ainda usa as artimanhas da faculdade e vai embora sem pagar enquanto todo mundo tá empolgado com o papo ou paga duas das trinta garrafas e deixa a segunda via do cartão “pra abater lá no final”.

Juros sobre juros, os rendimentos da poupança, quantas parcelas de quanto vai dar ao comprar um móvel novo ou o fuso horário das viagens para fora do país. Não temos esse dom do encaixe dos números em fórmulas.

Só que, em frente ao computador no fatídico final de tarde que lhes contarei, eu era um astrofísico a ser descoberto, tamanha rapidez e acerto na somatória.

Na tranquilidade do lar, com o advento da internet e, posteriormente das redes sociais, as pessoas chegam sem bater na porta com as boas novas de todos os calibres. Dessa vez, foi uma ex-namorada comemorando bodas do novo amor. Uma foto bonita dos dois, ela e seu cabelo novo, ele e seu sorriso desconhecido para mim, mas bem bonito. O fim do relacionamento, meu e dela, foi meio acelerado mas honesto. Não teve amizade posterior, mas nenhum percalço ou discussão adiante. Acabou e seguimos.

Tempos depois ela começou a namorar esse cara, um estranho para mim, mas juntamente com o fato, certo alívio me acometeu. Lá estava ela, com uma vida nova, um corte de cabelo diferente, alegre, não dependente de mim ou da relação que não mantínhamos mais comofora um dia. Legal ver que o amor aparece novamente, suavizou meus anseios de, um dia, mais pra frente, querer algo parecido também.

O tempo passou e chegamos a essa celebração fora de época redonda em que eles completaram “três anos e dois meses de um amor sem igual, calor de minh’alma e luz que guia meus caminhos por onde quer que eu vá”.

Meloso. Mas honesto. Quem sou eu para fazer crítica às sentimentalidades alheias.

Três anos e dois meses de um am…PERA UM POUQUINHO!

Me aproximei da tela para confirmar e a linha do tempo se fez diante de meus olhos, entre eles e o brilho do monitor. Se a gente terminou em… de dois mil e… se eles estão desde… então..




ESPERA UM POUQUINHO!
Não teve calculadora e nem dedos, muito menos risquinhos no caderno. Só a mente mesmo. Pá e pum e puxa daqui cai um vai três e o resultado. Me botou um par de chifres nessa brincadeira. Batata. Não tinha como errar. Pois se diabos eles tão juntos há três anos e dois meses e a nossa paradinha acabou há dois anos e onze meses, então tem aí um trimestre de baba trocada.

Não que a preocupação fosse a traição de mais de anos. Não foi a primeira e, se deus existe e possui o senso de humor estranho que eu acho que ele possui, não será a última. O ponto era perceber a interseção entre o meu fim e o começo deles, a derrocada dos meus sentimentos que adubaram o entusiasmo dos encontros que eles tinham. Olha só que curioso. Dois amores não ocupavam o mesmo espaço ao mesmo tempo e precisou o dela por mim morrer para brotar o que haveria de ter entre eles, num câmbio emocional que proporcionou a tranquilidade dos momentos finais entre nós e dos carinhos propícios entre eles.

E eu achando que não tinha nada a ver com isso quando fui, claramente, a fagulha que gerou esse amor. Se não fossem os meus descuidos, o meu egoísmo, as minhas manias escrotas e a falta de tato inerente à minha personalidade, isso nunca teria acontecido, essa paixão nunca haveria de explodir.

Fiquei feliz por fazer parte de algo importante.
do Jader Pires

Papo de homem

Sejamos mais flexíveis 
O título eu li no Facebook de um amigo.
Ao ler a tal frase, um milhão de pontos passam automaticamente em nossas cabeças. Temos que ser, sim, mais flexíveis, entender mais, compreender mais, sermos mais maleáveis, relaxar mais.Para divulgar as noites de silêncio que acontecem aqui na casa do PapodeHomem toda segunda-feira, o pessoal d’o lugar publicou:
“Relaxar não é tomar caipirinha na praia, não é embotar a mente, não é ouvir som de cachoeira, não é algo que já sabemos fazer. É algo a ser cultivado, treinado, aprofundado, reconhecido, redescoberto”.
Eles citam alguns pontos sobre o verdadeiro relaxar: soltar, desistir, não reagir, deixar passar, parar, desgrudar, destensionar, desobstruir, não controlar, não jogar, não manipular, cair, abrir mão, oferecer, não resistir, repousar, não rejeitar, entregar-se, pacificar, serenar, acalmar, tranquilizar, amansar, liberar…
Morrer.
Daí a necessidade de sermos mais flexíveis. Caminhar mais relaxado, olhar mais para o que está em volta, tentar reais conexões com as pessoas e com o que estamos fazendo, foco genuíno. Parece papo profundo, mas está muito mais perto da realidade do que podemos imaginar.
Sabe, as coisas que nos cercam parecem muitas vezes contribuir para a tensão e ansiedade. Aqueles números insuportáveis que o Facebook mostra sobre nossas páginas e nossos amigos e o que eles estão tentando dizer e não conseguimos ouvir, mas apenas ver a bolinha vermelha marcando quanto amor e carinho estamos recebendo. A necessidade de sermos atendidos primeiro na barraca da feira, a barriga que não diminui com os três primeiros meses na academia.
Se você está na rua, quer atravessar na faixa antes do carro. Se está dirigindo, foda-se o pedestre, você passa mais rápido.
Ah, quantas vezes roubamos nos dois papéis e nos botamos na situação de importantes do nosso cotidiano em vez de protagonistas. E se o lance todo fosse mais malandro? E se pudéssemos pegar esse saracolejo gostoso do samba e botar na roda, na roda em que estamos e passamos?
por Jader Pires

dos Teatros da Vida

Cena 1 – O Impossível

- Justo você, que não gosta de mim, despertou meu amor.
- Mas eu gosto de você. Muito.
- Eu sei. Tento mudar a verdade pra me sentir melhor. Melhor seria se fosse o oposto.
- Por quê?
- Ia doer menos.
- Dor não se mensura.
- Gosto de pensar que sim.
- Você pensa demais.
- Só queria entender.
- Se fosse pra entender, não teria o valor que tem.
- Fácil pra você dizer.
- Acha que não dói em mim também?
- Sei que dói. Só é uma dor diferente.
- Já disse que dor não se mensura.
- Nesse momento, a minha é a maior de todas.

dos Teatros da Vida: Cena - o Agarrar nos fios do cabelo

— Mal te enxergo nessa distância.

— Logo estaremos de mãos dadas.

— Perambeira, óleo e pó em meu coração, boca e vistas. Não te quero, não te gosto e não te vejo como há tempos vi.

— Vem me ver.

— Não tenho olhos mais para isso.

— Lembra de mim.

— Não tenho cabeça mais para isso.

— Pense no que posso te dar.

— Barganha?

— Isso! Por você, tudo!

— O que estas a me oferecer?

— Te dou o que quiser!

— Me dê sossego.

por Jader Pires

Você não é pior que os outros

Diversos são os momentos em que estamos mais sensíveis ou menos desligados do mundo. Ouvimos histórias escabrosas e não nos assustamos mais. Nos aparece um problema e achamos, primeiro, ser o maior de todos já surgidos para, logo a seguir, ver que alguém do nosso lado tem muito mais adversidades, todas bem maiores. Há pessoas que, de tantos contratempos, já nem liga mais para os infortúnios e estão melhores que nós que, ao compararmos, nos achamos mimados.
Comparamos situações boas e ruins. Olha que maluquice. Como se um problema alheio anulasse o seu, como se o contentamento de um terceiro botasse o seu no chinelo e, depois de ver a fortuna de verdade, a sua alegria de nada valesse.
Fazemos isso conosco o tempo todo. Basta ligar a televisão ou conversar dois minutos com o cobrador de ônibus ou com o cara que lava o teu carro. Passeando, ao passar em frente a banca de jornais e ver aquele mundaréu de revistas com famosos bonitos em castelos bonitos, modelos bonitas em carros caros ou lanchas igualmente bonitas em praias bonitas.
Seguimos oscilando nossos anseios, nossos sentimentos, até nossas angústias, jogando o tempo todo em um cassino de vontades em que a casa, claro, sempre vence. Deixamos lá nossa vontade de ser mais, nosso desejo de resolver o que está crispado, o nosso querer de bem querer mesmo.
Como é possível sermos tão dependentes de fatores externos para sermos e fazermos o melhor de nós? De que maneira seguimos a vida a chegar nesse ponto de submissão adoidada e intensa de deixar o mundo e o balançar bêbado do caos botarem o bedelho no que somos e no que sentimos e até como sentimos?
Banca de jornal no centro de São Paulo, c. 1953 (Imagem: Blog do MIS)
Banca de jornal no centro de São Paulo, c. 1953 (Imagem: Blog do MIS)
Entramos com mala e cuia nas falsetas. “Preciso comer tudo porque as crianças da África estão passando fome” ou “eu reclamando disso enquanto aquele cara não tem nem onde morar”. Não que compadecer seja errado, claro que não, mas botar uma dor em xeque contra qualquer outra é de uma pequenez, de uma servidão que todos nós nos deixamos afetar em algum momento, estamos mais sensíveis ou menos desligados do mundo.
Você não é pior que as outras pessoas. Suas atitudes e pensamentos e anseios nem dependem da ação delas.
por Jader Pires

São Paulo eu te amo

Mas assim oCê me fode

Já escrevi dois textos nos dois anteriores aniversários da cidade de São Paulo. Nesse ano (em que a cidade completa 460 anos) eu não em empolguei para escrever outro desse.
Pudera. Tá um calor irritante por aqui.  Ilha de calor, cimento que tosta e rebate tudo quanto é raio solar diretamente na moleira do cara de terno, da menina de jeans e do coitado que, cheio de roupas e trapos e tinta, tenta levar umas moedas se fingindo de estátua. Nesses dias de mormaço e abafado cercado de vidros reluzentes e filas de carro, o paulistano queria mesmo era uma praia ou a piscina do clube de campo, até mesmo a neve do hemisfério norte. E sei que, quando chegar aquele frio medonho e depressivo, nego vai é pegar as crianças e correr pra Maragogi, Cancún, Alabama.
Eu vejo, todos os dias, São Paulo sugando japoneses e coreanos e filhos de italianos e mineiros e baianos e mastigando tudo e cuspindo restaurantes e shoppings e shoppings e shoppings. Boliviano não pode, sair de Sapopemba não pode, reclamar por conta de vinte centavos não pode. Da garoa pode reclamar.
Garoa? Aqui o que se tem é chuva caudalosa de nuvens irritadas que, de tanta pressa, se batem e se chocam — feito a gente no metrô — e a derrota mútua resulta em gotas que enchem copo d’água e granizo e dor de cabeça. A água enche a rua, leva o carro e a molecada fica ilhada tomando gelo na cabeça.
Puta pé no saco, meo.
Dia desses eu fui ao otorrino, um daqueles retornos de quem trata há anos uma rinite que não cede nunca. Ele disse que, como sou um cara esperto, sei que, assim que eu puder, vou-me embora de São Paulo. O ar aqui não dá mais.
Foi-se o horizonte, o vento, o corredor de ônibus, a noção de integração e de integridade. Resta o luto.
Afinal, estamos em cima do túmulo do samba e do rolezinho. Caetano, eu também estou triste, tão triste, você no frio do Rio e eu na histeria deprê de essepê.
Queria ter pensado antes na melodia e na letra, passando apenas de Nova Iorque pra cá: “São Paulo eu te amo, mas assim cê me fode”.
Queria falar que aqui é que ainda as coisas acontecem, mas tá mais barato ir ver o Lollapalooza no Chile que aqui. Queria falar das livrarias alexadríacas que só a gente tem, mas seria infantil ficar de comparação com outra cidade brasileira e ridículo comparar a nossa megalópole com outras metrópoles mais bem abastecidas.
Resta a pizza sem ketchup, o pastel da feira.
São Paulo, eu preciso de ajuda e você também. Essa Síndrome de Estocolmo, essa vontade de morar em ti e de viver você a qualquer custo derruba. A gente gosta de apanha, a gente elogia e leva ferro, a gente acha que fez certo e tu vem e faz errado. Duas vezes. Três, se deixar.
A gente fica duas horas na fila do MIS, a gente corre de SESC em SESC pra comprar aquela lá do Jorge Ben ou então dos Racionais. A gente ainda desce a Augusta, a gente ainda sove lá na Vila Madalena, a gente ainda tenta evitar o trânsito, a gente come o hambúrguer gourmet e o brigadeiro diferenciado e a gente ainda entra na moda do ceviche e das bicicletas e deixa de comprar na Zara.
A gente tá tentando, São Paulo.
A gente tá tentando. Mas assim, cê me fode.
Com todo amor,
Jader Pires.
Jader Pires

É escritor e editor do Papo de Homem. Prometeu que, se um dia ganhar na loteria, vai doar cem reais para caridade. E não há cristo que o faça pensar o contrário.


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