por Jader Pires
"Puta que o pariu!". Acordou no sobressalto e assustou sua mulher. Fazia uns olhos de coruja, suores empastavam-lhe a testa em brasas e as mãos se agarravam na realidade do lençol.
— Mas o que te aconteceu, homem?
— Você tem noção da enrascada que a gente se meteu?
— Como assim?
— Estamos casados!
— Sim, há anos!
Se levantou e abriu a janela. A mulher foi ao seu encontro. Ficaram olhando o conjunto de prédios em miniatura trocando luzinhas, acendendo e apagando, pequenos e rápidos rabiscos em vermelho dos carros que passavam lá longe, na avenida, a quietude sacra da madrugada. Estavam calmos, descalços.
O homem empurrou sua mão até a mão dela e segurou. Apertou aquele aperto afetuoso, como se quisesse senti-la ainda mais. Enquanto os carrinhos e pessoazinhas viviam suas vidas lá embaixo, ele resolveu se explicar:
— Já reparou como o que temos é complexo?
— Ô.
— Quero dizer, cacete, como a gente se aguenta? Como a gente se atura? Ontem o Douglas, lá do trabalho, veio perguntar da gente, se estava tudo bem. Disse que achava incrível pessoas darem certo juntas, nós dois nos darmos bem juntos. Pudera né. Enquanto o pessoal espera os fogos de artifício cor de rosa de Hollywood, aqui na vida real a gente mata as contas todos os dias da equação doida de doação e anulação e incentivo e troca.
A mulher sorriu ainda olhando para os movimentos vagos da cidade a sua frente.
— Para e imagina, mulher. As pessoas pensam que, no amor, o casal senta junto na sexta à noite, bota um jazz e leem juntos, felizes da cara, passando as páginas, lendo em voz alta trechos que adoraram, roçando os pés um no outro.
— Mas a gente faz isso.
— Aí é que tá. Quantas camadas de acordos silenciosos nós fizemos pra chegar nesse denominador comum? Você estava ouvindo músicas essas últimas semanas que eu não estava com um mínimo de saco pra escutar. E quando eu pedi pra você levar contigo aquele último do Beck, você sorriu, assentiu com a cabeça e nunca botou no celular.
— Ah, eu não estava muito na pegada de ouvir aquele som calminho não.
— Pois é! A gente não está ouvindo a mesma coisa, mas, juntos, chegamos no ponto exato de saber colocar algo na vitrola que vai pegar os dois de cheio.
— Verdade.
— A janta que a gente faz ou onde vamos comer quando não cozinhamos. O dia da faxina, quem vai fazer o que, qual filme vamos ver, Se a gente vai ver aquele seu amigo que eu acho chato ou se vamos na exposição daquele artista que você acha superestimado. Quando decidimos, então, que vamos sozinhos e conseguimos fazer isso sem que o outro se sinta abandonado ou excluído. Olha a trabalheira que demos pra amaciar esse companheirismo, essa troca interessantíssima, um equilíbrio de Cirque du Soleil.
— Não é fácil não.
— Não é. Você chega e quer falar sobre as dificuldades do seu trabalho e eu só quero terminar de escrever a minha crônica, você dorme cedo e eu varo a madrugada, você acorda disposta de manhãzinha enquanto eu rastejo perto do almoço a muito custo. Eu corro e você pula, horizontal e vertical, eu sou humanas e você, querida, de exatas. Não é nada simples botar tudo isso em ordem e dormir em paz!
— Tudo isso é porque eu esqueci de pagar o Netflix, é?
— Eu quero muito ver a nova temporada de House of Cards!
— Eu paguei hoje, homem. Tá liberado lá.
— Sério? Quer ir ver comigo?
— Não. Tô com sono.
O homem, acalentado, deu um beijo em sua mulher. Estavam entendidos em águas buliçosas.
O amor é a confusão de uma noite em claro.
no Papo de Homem
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