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Colunista do dia: Jorge Bastos Moreno


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A surdez deliberada
A Suprema Corte dos Estados Unidos consagrou uma doutrina: a cegueira deliberada. Dá conta, em linhas gerais, da atuação de alguém que, diante de todas as evidências, se recusa deliberadamente a ver que alguma atividade é crime e, assim, deixa seguir a vida, com o objetivo de que a sua falta de ação produza vantagens para si, mesmo que de forma indireta. É evidente que não estou chamando ninguém de criminoso, é apenas uma blague, mas, toda vez que me deparo com alguém decente dizendo que é inconclusiva ou sem algo de flagrantemente grave a fita que registra a conversa do presidente Temer com o réu confesso Joesley Batista, vem na minha cabeça: será que é caso de surdez deliberada?
O que mais essas pessoas esperavam ouvir na fita? É impossível não concordar com o procurador-geral da República quando ele, em petição ao Supremo Tribunal Federal, afirma que, depois da divulgação da fita, em seus vários depoimentos e em entrevistas, o que o presidente Temer fez em relação a ela foi uma confissão espontânea. Não negou o encontro, não negou as circunstâncias clandestinas do encontro, não negou o conteúdo dos diálogos. Apenas se limitou a propor uma justificativa que piora a situação dele.
É preciso repetir sempre para que as interpretações oficiais sobre os diálogos não prosperem. Na petição inicial que enviou ao Supremo solicitando as providências da Operação Patmos, que viria a acontecer na quinta-feira de manhã, 18 de maio, e que O GLOBO divulgou na noite anterior, a Procuradoria dizia literalmente: “Joesley fala do pagamento de propina paga ‘todo mês, também’, acerca da qual há a anuência do presidente”. Quando a fita foi divulgada posteriormente, pôde-se entender, claramente, que a frase da Procuradoria tinha como embasamento o que foi dito nos diálogos.
Recapitulando. Joesley pergunta como estava a relação entre Temer e o ex-deputado Eduardo Cunha. Ouve do presidente que estava sendo fustigado por ele. Joesley, então, o tranquiliza, afirmando que zerou as pendências com Cunha e o tirou da frente. Em seguida, diz que, tendo agido assim, o que ele “deu conta de fazer” foi ficar “de bem” com ele. Depois de ouvir tudo isso, Temer recomenda, explicitamente, dando de fato a sua anuência a tudo que até ali foi feito: “ tem que manter isso, viu”? E, diante de algo inaudível dito por Temer, Joesley confirma: ” todo mês, também”.
Quem sofre de surdez deliberada se apega ao fato de que a frase de Temer — “tem que manter isso” — vem imediatamente antes da frase de Joesley — “o que eu mais ou menos dei conta de fazer até agora? Tô de bem com Eduardo”. E se esquecem, deliberadamente, de que Temer fez essa recomendação depois de ouvir que as pendências estavam zeradas e que, assim, Cunha foi tirado da frente. O que os surdos deliberados imaginam ser pendências senão propina? É preciso desenhar? Será que os surdos deliberados imaginam que Temer disse “tem que manter isso, viu?” para que Joesley se mantivesse “de bem” (como se somente isso já não fosse um escândalo), mas que isso nada tinha a ver com as frases anteriores, como pendências zeradas e Cunha tirado da frente? Imaginam que diante dessas frases o silêncio de Temer o absolve? Quem cala, consente. Quem não ouve deliberadamente, também.
Eu poderia seguir explorando tudo o mais: o “ótimo, ótimo” do presidente diante do relato de que Joesley tinha nas mãos dois juízes, o “pode fazer”, diante do pedido de Joesley para usar o nome do presidente junto ao ministro da Fazenda para conseguir, nada mais, nada menos, que a substituição do secretário da Receita Federal e dos presidentes da CVM, do Cade e do BNDES (esta já se foi, com ou sem Joesley). Poderia também, lembrar a recomendação do presidente — “pela garagem” — quando consentiu que aqueles encontros clandestinos continuassem tarde da noite, sem que ninguém soubesse. Mas para quem não tem ouvidos moucos, isso somente enfastiaria o leitor.
No caso das pessoas decentes que sofrem de surdez deliberada, na analogia com o ganho obtido com a cegueira deliberada, a vantagem a ser obtida ao não ouvir é óbvia: a aprovação das reformas de que tanto o país necessita. Mas o paraíso nunca é alcançado quando se transige com princípio.
publicado originalmente no jornal O Globo