Realizou-se na noite passada, na Band, o primeiro debate presidencial de 2014. Antes de trocar o evento em miúdos, aqui vai a conclusão: como já se tornou comum em programas do gênero, domados por regras ditadas pela marquetagem, não houve um vencedor. Hipertreinados, nenhum dos três principais contendores protagonizou algo que possa ser chamado de um escorregão. É improvável que o embate resulte numa virada de votos. Serviu apenas para consolidar posições. Assim, foi mais útil para Dilma e Marina, que roçam o segundo turno.
Sob o impacto do Ibope divulgado horas antes, que lhe tirou o chão, restou a Aécio apresentar-se como a mudança segura. Fez isso do início às considerações finais, quando declarou, já perto de uma hora da madrugada, que Dilma representa o Brasil da “inflação alta e do crescimento baixo”. E que Marina levará o país a “novas aventuras e ao improviso”. Ofereceu “o caminho da segurança” e da “previsibilidade”. Chegou mesmo a “nomear” seu ministro da Fazenda: Armínio Fraga, ex-presidente do BC.
Quem queria ver sangue decepcionou-se. Foi ao ar a normalidade. Como atração televisiva, o debate deixou a desejar. Com mais de três horas de duração, tornou-se enfadonho do meio para o final. Começou às 22h de terça e alongou-se até 1h06 de quinta. As pestanas que resistiram até o quinto e derradeiro bloco foram ao encontro dos travesseiros com a incômoda sensação de desperdício do sono. O miolo da picanha foi servido no segundo bloco.
Como de hábito, as regras conspiraram contra o aprofundamento da discussão. Com 30 segundos para a pergunta, dois minutos para a resposta e 45 segundos para réplica e tréplica, as teses foram expostas numa profundidade que uma pulga poderia atravessar sem saltos, com água pelas canelas. Por sorte, o embuste retórico foi mantido no limite do tolerável.
Convidada a inquirir um dos rivais, Marina mirou para o alto. Evocando as manifestações de junho de 2003, a substituta de Eduardo Campos esfregou na face de Dilma o fiasco dos pactos propostos por ela como resposta ao ronco das ruas. E Dilma, fiando-se em autocritérios: “Eu considero que tudo deu certo, veja você”. Ela enumerou: a lei que destinou 75% dos royalties e do fundo social do pré-sal para a educação e 25% para a saúde, o programa Mais Médicos, a destinação de R$ 143 milhões para mobilidade urbana… A reforma política não vingou, mas isso depende de um plebiscito, disse.
Na réplica, Marina foi ao ponto: “Uma das coisas mais importantes para que a gente possa resolver os problemas é reconhecer que eles existem. Quando a gente não os reconhece, não passa nenhuma esperança para a população de que, de fato, eles serão enfrentados. Esse Brasil que a presidente Dilma acaba de mostrar, colorido, quase cinematográfico, não existe na vida das pessoas. [...] a reforma política virou substituição de ministros em troca de tempo de televisão. Vivemos uma situação de penúria na saúde, na educação e na segurança…”
Na sua vez de indagar, Dilma apontou para baixo. “Eu queria perguntar para o candidato Aécio”, disse, como que interessada a retornar à zona de conforto da polarização tucano-petista. Um embate que a conjuntura insiste em desfazer. “O Brasil tem hoje as menores taxas de desemprego da história, mesmo diante da mais grave crise internacional”, ela disse. “Quando Fernando Henrique entregou o cargo ao presidente Lula, o desemprego era mais que o dobro. O senhor falou que, se eleito, tomaria medidas impopulares. Além de cortar empregos e acabar com o aumento real do salário mínimo, quais outras medidas impopulares o senhor tem em mente?”
E Aécio: “Eu me sinto lisonjeado toda vez que a candidata me olha e enxerga o presidente Fernando Henrique. Mas acho que quem fala sempre olhando pra trás é porque tem receio de debater o presente ou não tem nada a apresentar em relação ao futuro. A senhora está enganada. Tenho dito que estamos preparados para fazer o Brasil voltar a crescer e gerar empregos cada vez de melhor qualidade. No governo da senhora, presidente, 1,2 milhão de postos de trabalho acima de dois salários mínimos foram embora porque a indústria brasileira foi sucateada.”
Aécio soou duro. Mas foi informativo. Disse que a participação da indústria no PIB recuou aos níveis da Era Juscelino Kubistchek, há 60 anos. Evocou as informações que acabam de ser divulgadas pelo Ministério do Trabalho. Súbito, escorregou na eloquência: “Os dados mostram que este mês de julho foi o pior mês de geração de emprego de carteira assinada do século, como foi junho, como foi maio… É preciso, sim, que a senhora reconheça que um país que não cresce não gera empregos. O seu governo perdeu a capacidade de inspirar confiança e credibilidade…”
Em verdade, o que os dados da pasta do Trabalho revelaram foi que, em julho passado, houve 1.746.797 contratações com carteira assinada e 1.735.001 demissões. Na conta dos empregos formais registrou-se, portando, um saldo de 11.796 novas vagas. Foi o pior resultado para um mês de julho desde 1999, sob FHC, quando foram abertos 8.057 novos postos de trabalho. Já é suficientemente ruim. O adendo do “pior mês do século”, por desnecessário, permitiu que Dilma voltasse à carga:
“A verdade, candidato, é que o governo do PSDB, que parece que o senhor não vai adotar, quebrou o Brasil três vezes… Aliás, tivemos uma redução salarial terrível durante esse período. No meu governo, nós geramos mais empregos do que vocês geraram em oito anos. Eu, em três anos e oito meses, estou gerando, 5,5 milhões de empregos.” Verdade. O problema é que Dilma fala de empregos olhando para o retrovisor. Os telespectadores mais atentos sabem que o parabrisa, embaçado pelo crescimento pífio da economia, exibe um horizonte de dias piores.
De resto, Dilma teve o azar de lidar com um tucano que optou por não esconder FHC no fundo do armário. Na tréplica, Aécio recordou uma carta elogiosa que Dilma endereçou ao ex-presidente quando ele fez aniversário de 80 anos. “Eu me permito ficar com a primeira presidente Dilma que, no início do seu mandato, escreve uma carta ao presidente Fernando Henrique cumprimentando-o pela estabilidade econômica.”
Acrescentou: “Não tivesse havido a estabilidade da moeda, contra a vontade do PT, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a modernização da nossa economia e a privatização de setores que deveriam já há muito tempo estar fora do alcance do Estado, se não houvesse tudo isso, não teria havido o governo do presidente Lula… Reconhecer a contribuição de outros governos é um gesto de grandeza que tem faltado ao seu governo.”
Ainda no segundo bloco, o sorteio brindou a platéia com a possibilidade de Aécio dirigir uma pergunta a Marina, cujo desempenho ameaça privá-lo do segundo turno. “Candidata, a senhora tem falado muito sobre a nova política. Logo que assumiu sua candidatura, apressou-se em dizer que não subiria em determinados palanques. Etnre eles o de um dos mais íntegros e preparados homens públicos do país, o governador Geraldo Alckmin. Dias depois, disse que gostaria de governar o país com o apoio de José Serra, o mesmo a quem a senhora negou apoio em 2010. Será que a nova política não precisaria ter também uma boa dose de coerência?”
Marina teve, então, a chance de reentoar o discurso que vem encantando o pedaço do eleitorado que está de saco cheio do Fla-Flu que domina a política nacional desde a sucessão 1994. “Eu me sinto inteiramente coerente. Defender a nova política é combater sobretudo a velha polarização que, há 20 anos tem se constituído num verdadeiro atraso para o nosso país.”
Prosseguiu, peremptória: “A polarização PT-PSDB já deu o que tinha de dar. Quando eu disse que não ia subir nos palanques que não havia antes acordado com nosso saudoso Eduardo Campos, mantive a coerência exatamente porque não queria favorecer os partidos da polarização. E quando digo que quero governar com os melhores do PT, do PSDB, do PMDB é porque reconheço que existem pessoas boas em todos os partidos.”
Marina finalizou a resposta dizendo que, eleita, escalará uma “nova seleção”, tirando “do banco de reservas pessoas como o senador Pedro Simon, Eduardo Suplicy…” Declarou que, ao se referir a Serra, “estava dizendo que tenho a certeza de que, quando eu ganhar a Presidência, ele não haverá de ir pelo caminho mesquinho da oposição pela oposição, que só vê defeitos, mesmo quando os acertos são evidentes. É o caso do Bolsa Família, que o PSDB tem muita dificuldade de reconhecer. Ou da situação pela situação que sói vê virtudes, mesmo quando os defeitos são evidentes, como é o caso da volta da inflação, do baixo crescimento e de todo o retrocesso que temos na política macroeconômica, que o PT tem dificuldade de reconhecer e corrigir. Eu me sinto inteiramente coerente com a renovação da política.”
Na réplica, Aécio disse ter dificuldades para entender a pregação que parece ter encantado uma fatia expressiva do eleitorado. Recuou no tempo: “Acredito que existe de verdade a boa e a má política. Não posso crer que homens como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes e Tancredo Neves praticavam a velha política. E a boa política pressupõe coerência. Estou aqui acreditando no que sempre acreditei.”
Na sequência, Aécio insinuou que a ex-petista Marina foi contra as boas iniciativas da fase FHC. “Eu acreditava que a estabilidade da moeda era essencial para que o Brasil voltasse a crescer, acreditei que a Lei de Responsabilidade Fiscal iniciaria um novo momento, que as privatizações eram essenciais para esse mesmo crescimento econômico. Fizemos tudo isso com a oposição do seu partido à época, o PT.”
Marina não se deu por achada: “Sua fala, candidato Aécio, reforça exatamente o meu argumento. Acredito na política que pratiquei no Congresso Nacional. Por exemplo: quando foi a votação da CPMF, ainda que o meu partido fosse contra, em nome da Saúde, eu votei favoravelmente mesmo sendo o governo do PSDB. Quando foi o Protocolo de Kioto, fui eu que ajudei a aprovar porque senão seria uma vergonha. Mas infelizmente não é a mesma postura que você, juntamente com o PT, tem nessa relação PT-PSDB, que é uma relação que coloca o Brasil desunido e aparta o Brasil. Nós precisamos unir.”
Quem assistiu ao debate até esse ponto obteve o kit de informações básicas para exercitar o voto em outubro. Dilma tornou-se uma espécie de candidata-parafuso. Com o governo espanado, roda a esmo em torno de conquistas de Lula, que sua gestão precária ameaça. Mas não parece disposta a fazer concessões à autocrítica. Aécio oferece uma mudança “segura'' que tem como símbolo um futuro ministro içado do passado. E Marina tenta espantar o risco de aventura fazendo pose novidade responsável, capaz de governar com o que de melhor os quadros dos arquirivais PT e PSDB podem oferecer ao país. O cenário pode não ser animador. Mas uma nação que já acomodou no Planalto Fernando Collor precisa reconhecer que não está diante do fim do mundo.