Em entrevista ao canal Globo News em 2015, o ex-presidente Lula demonstrou um admirável conhecimento acerca do processo de depuração de fatos históricos no decorrer do tempo. Disse, corretamente, que as pessoas não são julgadas um dia após os acontecimentos, tendo seus lugares definidos tão logo se aumente a distância deles.
Ciente de que o lugar na história não é estabelecido no calor do momento, Lula, nas entrevistas concedidas à Folha de S. Paulo e ao El País, deixou clara sua obsessão não apenas em provar sua inocência, mas em mostrar a verdadeira natureza de seus algozes, o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.
Não demorou muito para que os propósitos inconfessáveis da dupla viessem à tona. A série de reportagens do The Intercept Brasil sobre a parceria entre o juiz e a acusação do ex-presidente para condená-lo e tirá-lo definitivamente da disputa eleitoral dá legitimidade à lucidez obsessiva de Lula ao negar qualquer possibilidade de sair da cadeia se, para isso, for necessário reconhecer que cometeu os crimes dos quais vem sendo acusado.
Moro não apenas chega a adiantar para Dallagnol o teor de decisões, como interfere na logística da acusação, a orienta, puxa orelhas e reclama da demora entre uma operação e outra. O ex-juiz vai ao ponto de indagar, na primeira pessoa do plural, a conveniência de responder às críticas que o PT vem fazendo à Lava Jato. O “siga firme” que diz a um vacilante Dallagnol, pouco convicto da robustez das provas apresentadas contra o ex-presidente, representa um salvo conduto no estilo “podem ficar tranquilos, irei condenar com ou sem provas”. Moro, a propósito, não apenas aconselha, mas chega a indicar uma testemunha para o Ministério Público Federal, debatendo com Dallagnol os meios processuais de conseguir colocar seu depoimento no processo.
O artigo 564, inciso I, do Código de Processo Penal prevê que a decisão pode ser anulada em caso de suspeição do juiz. Tecnicamente, não há dúvidas sobre a questão – assim como também nunca houve quanto à franca insuficiência das provas apresentadas contra o ex-presidente, que, segundo relata no livro “A verdade vencerá: o povo sabe por que condenam”, teve do criminalista Nilo Batista um parecer prévio sobre a franca debilidade da acusação acerca do triplex do Guarujá.
O problema é que, submetido ao julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em razão da liberação dos áudios das conversas entre Lula e Dilma, Moro foi absolvido sob a justificativa de que a lei não se aplica à Lava Jato, uma vez que a operação requer medidas excepcionais para o seu regular funcionamento. O extravagante corporativismo do TRF4 foi adoçado pelo não menos assombroso reconhecimento institucional de que a Lava Jato é toda construída na lógica do estado de exceção, sem a qual não é possível se sustentar. As conversas entre Moro e Dallagnol são apenas a cereja desse bolo.
Ainda que haja um bloqueio cognitivo em determinada parcela da sociedade que se coloca como entusiasta das ideias de Jair Bolsonaro, é importante propor o exercício lógico de imaginar um magistrado que, mancomunado com a defesa do ex-presidente, sugira teses, testemunhas e perguntas, abrindo uma avenida para sua absolvição. É aí onde se encontra o Rubicão que separa liberais e social-democratas das milícias que se agarram em teorias pseudo-científicas para passar pano nos absolutismos monárquicos de Sérgio Moro e nas bizarrices do clã de milicianos que hoje ocupa o Palácio do Planalto.
A longo prazo, já podemos vislumbrar que o lugar de Lula na história é diferente daquele reservado aos lavajatistas, destinados a rodapés que os definirão como neo-integralistas, udenistas de sapatênis ou como uma milícia judicial à imagem e semelhança da família do atual chefe do ex-juiz. “Faça o condenado entrar”, convoca o juiz Algonso Hernández Pardo em um julgamento durante a ditadura franquista relatado por Eduardo Galeano.
Somente com bastante mobilização é que faremos o condenado sair.