Casa grande abandonada
Quando Noélia nasceu, no dia 23 de setembro de 1938, numa ruazinha modesta, lá pras bandas de Maracanaú, seus pais já estavam separados. Naquela época, uma mulher separada era como alguém com uma doença contagiosa. Pagava a mulher, pagavam os filhos. Mesmo os abastados, mesmo os que tinham dinheiro, padeciam do mesmo mal.
Não foi diferente com dona Maria José, sua mãe, não foi diferente com Noélia. E para não sofrerem com as cobranças acintosas da mesma sociedade hipócrita de hoje, ambas se recolheram ao casarão onde viveriam o resto de suas vidas reclusas.
Um dia, há 33 anos, descobri a existência de Noélia e fui procurá-la. Dona Maria Jósé me confessou, com lágrimas nos olhos e uma tristeza tão grande e tão profunda, que até parecia ter perdido o marido recente, quando mais de 35 anos já se haviam passado. "Francisco foi o único homem de minha vida.
Nunca amei outro e vou morrer com esse amor no coração..."Para os jovens de 35 anos atrás, e principalmente para os jovens de hoje, não existe essa de amor eterno." Qualé, cara? Parte pra outra!" E partem mesmo. Tem mulher sobrando, é tudo fácil demais. Namorar mesmo é difícil, a moda é ficar e ficar é apenas uma das formas modernas de assumir que estão se esfregando pra valer, que estão botando pra quebrar.
Virgindade? Que virgindade? Isso é quase doença nos dias de hoje. A "mulher-corrimão" é quase tão popular quanto a "mulher melancia", "mulher morango" e outras tais, numa verdadeira salada de libertinagem, de despudor, de falta de limites. Nada contra, a gente se acostuma depressa, gosto de seguir o fluxo. Pois bem.
A herança compulsória de Noélia foi uma tristeza imensa e assim, as duas, mãe e filha, pouco afeitas a amizades, a vizinhos, a conversas amenas, se enclausuraram na casa grande e adiaram suas vidas, seus sorrisos, suas gargalhadas, suas buscas pelos irmãos, também filhos de Francisco, a quem Noélia só via de longe, quando se predispunha a espiá-los de longe, sem nunca chegar perto, sem coragem de dizer "eu sou irmã de vocês!" Sábado passado, dia 19, antes de entrar para fazer uma endoscopia, Noélia chamou uma cuidadora recém-contratada e deu uma instrução: "Se eu não voltar da sala de cirurgia, ligue para esse número.
É o telefone do Antonio, meu irmão, e ele saberá o que fazer comigo..." E assim foi feito. E tudo o que me restou a fazer foi providenciar seu caminho de volta desde o hospital ao seu túmulo e abrir suas portas, seus armários, suas gavetas, numa busca doída por qualquer capítulo de sua história comprida de tristezas sem fim e descobrir, nas fotografias, que encontrei a única chance de aprender a querer bem e a admirar uma irmã a quem nunca dei um abraço, um beijo, um presente de Natal ou cantei "parabéns" em qualquer de seus aniversários solitários dentro de uma casa grande, e hoje, mais que nunca, abandonada, na mesma ruazinha anônima de Maracanaú...