Filme: Que horas ela volta
Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, tem tudo para se tornar um marco no cinema brasileiro contemporâneo, como foram, em outros contextos, Central do Brasil e Cidade de Deus. É um filme em plena sintonia com o “pulso” do país. Encara com originalidade e coragem um momento de transformações sociais mais ou menos profundas, mais ou menos traumáticas – e, por favor, não estamos falando aqui de disputas partidárias ou programas imediatos de governo ou de oposição.A figura central na arquitetura narrativa do filme, como se sabe, é a da empregada doméstica, aquela trabalhadora que dorme na casa dos patrões e é como que uma descendente da mucama da época da escravidão e também do “agregado”, tão frequente na obra de Machado de Assis. É aquela que “é praticamente da família” – desde que conheça o seu lugar e se conforme com ele.E é exatamente esse “lugar”, ou a sua redefinição em nossa época, que o filme de Anna Muylaert vai observar, com um olhar ao mesmo tempo arguto, sutil e amoroso. Quem o ocupa é a doméstica Val (Regina Casé), que mora na casa dos patrões no Morumbi e ajudou a criar o filho do casal, Fabinho (Michel Joelsas), hoje um rapagão aspirante a uma vaga na universidade.O drama e a comédia (nos filmes da diretora, os dois vêm sempre juntos) começam quando Val recebe a visita inesperada da filha, Jéssica (Camila Márdila), que vem a São Paulo prestar vestibular para arquitetura.
Dramaturgia dos espaçosA chegada de Jéssica traz instabilidade a um terreno que parecia sólido e imutável. Os espaços ameaçam tornar-se indefinidos, confusos, inseguros. Tudo, no fundo, é uma questão de arquitetura, e por isso boa parte dessa história é contada pelos ambientes: o quartinho de Val, a cozinha, a piscina, o quarto de hóspedes, o ateliê do patrão (Lourenço Mutarelli). Cada um desses locais adquire um sentido social, cultural e dramático profundo no desenrolar da narrativa.