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Amnésio Neves descobre a existência de negros e pobres, por Sebastião Nunes


O menino do Rio, imperador deposto das Minas Gerais, passeava com seu guru, EfeAgáCê, o Príncipe da Sorbonne, na praia do Leblon. Eram seis da tarde. O sol sumia. A noite descia. Os gatos miavam. Os cachorros
latiam. Os ratos lhes faziam companhia...

Naquele lusco-fusco, pintou na frente deles um negro que, não fosse a bermuda semitransparente, estaria pelado.
Amnésio cutucou o Príncipe:


– Olha lá, Mestre! Aquilo não é um crioulo?

– Oui – respondeu o Príncipe. – Mas você não deve chamar crioulo de crioulo, que é politicamente incorreto. Nem de preto ou negão. Se o pessoal do PT descobre, você tá ferrado. Chama só de negro.

– Quanta frescura, né, Mestre? Mas o que será que esse cara tá fazendo aqui? Pedindo esmola? Se fosse assaltante – como é comum entre os criou... desculpe, entre os negros – com certeza estaria armado, né, Mestre? Hi, hi, hi!

PESQUISA ELEITORAL
– Bonsoir, mon ami – cantarolou o Príncipe da Sorbonne chegando perto. – Comment-allez vous?

– Como é que foi, Mestre? Você disse o quê?

– Só cumprimentei e perguntei como é que ele vai. Papo pra descontrair.

Amnésio, bestificado, ficou olhando o negro. Claro que conhecia negro, tanto ao vivo quanto na televisão. Só estava estranhando aquele negro na praia, àquela hora, que nem assaltante parecia. Seria o quê, hein? Algum africano extraviado?

O negro sorriu, mas não chegou perto. Foi sumindo, sumindo, sumiu.

SOCIOLOGIA PURA
Amnésio e o Príncipe fizeram caretas.

– Viu o que eu vi, Mestre? Os dentes dele estão cariados. Por que será que não procura um dentista? Fica feio um criou... perdão, um negro, andando por aqui, nesta praia tão bonita, com aquele bocão fedorento. Hi, hi, hi!

– É que dentista custa caro, pelo menos em Paris – solfejou o Príncipe. Nos meus desgovernos, a maioria deixava apodrecer, arrancava os cacos e botava dentadura. Estou achando que esse negro é um fantasma de pobre do meu tempo.

– Acha mesmo, Mestre? Mas pobre não vive é no subúrbio? Na fazenda do meu tio – aquela do avião, sabe? – tem muito pobre. Até já distribuí balas pra molecada. Ah, e dei um retrato autografado também. Eles adoraram! Hi, hi, hi!

– Fez bem, Amnésio. A gente deve cuidar dessa gente, nunca se sabe quando vamos precisar deles. Como eleitores, quero dizer. Sabia que eles também votam?

POLÍTICA SONHADA
– Isso eu sei, Mestre. Quando fui imperador de Minas... sabe Minas? É aquele Estado em que fui imperador duas vezes e depois nomeei o Anestésico meu sucessor. Tive voto que não acabava mais, até de criou... ah, sim!... até de negro.

– Conheço a história. Mas se não fosse a fama de seu falecido avô, a grana de sua família e certa pressão política e financeira... Bom, mas com isso lá na Pauliceia estamos acostumados, não é mesmo?

– Claro, Mestre. Também sei que é absurdo voto de pobre valer o mesmo que voto de rico, mas inventaram que é tudo igual, fazer o quê? Porém meu sonho é ser presidente de um país diferente, bem diferente. Hi, hi, hi!

– Como assim? Diferente em quê?

POLÍTICA APLICADA
– Pensa que sou bobo, Mestre? Veja só. Fui imperador de Minas durante oito anos e o Anestésico, amigão do peito, imperador mais quatro. Deitamos e rolamos. Alguém chiou? Ninguém. Praticamos direitinho o cala-boca. Hi, hi, hi!

– Bom, andei lendo e ouvindo por aí que professores chiaram, empresários chiaram, industriais chiaram, funcionários públicos...

– Tudo intriga da oposição! Esse pessoal quer mais é ver minha caveira! É tudo armação do PT, que detesta ver rico ficando mais rico. Armação! Mania de perseguição, como se pobre valesse o mesmo que rico. Hi, hi, hi!

EDUCAÇÃO & CULTURA
De repente irritado, Amnésio fez cara feia:

– Minas é o terceiro, quarto ou quinto Estado do país, não é? Tem riqueza de sobra. É só cavar buraco e achar minério. Faz mais de 300 anos que Minas vive de cavar buraco e tirar minério. Quantos Estados podem se dar a esse luxo?

– Mas o pessoal anda reclamando que educação e saúde – essas coisas que pobre aprecia – andam faltando em Minas. Reclamam, por exemplo, que vocês, os dois últimos imperadores, não compraram um único livro de literatura para distribuir nas escolas. E que os professores ganham uma merreca. Será verdade?

– Não deve ser verdade, não tô lembrado. Mas, se for, não faz mal. Pra que é que pobre precisa de educação e leitura? E professor deles ganhar bem? Se um cara vai ser peão, vendedor de loja, camelô, frentista, motorista, faxineiro, coisas do tipo – então pra que precisa aprender a ler? Pra reclamar depois? Pra fazer greve?

– Mas também falam de saúde. Que os doentes do interior abarrotam hospitais da capital. E falam de presídios privados... E de superlotação carcerária...

– Intriga! Mentira! Além do mais, pobre já nasce desnutrido, morre mais dia menos dia, pra que tanta frescura? E por acaso eu sou babá de bandido?

– Tá bom, Amnésio, deixa pra lá. Faz de conta que é tudo mentira e intriga. Mas agora, no segundo turno, prepara um programa bem bonitinho, dizendo que vai fazer no Brasil o que não fez em Minas. Se o pessoal acreditar...

– Acredita, Mestre. Criou... negro e pobre acredita em tudo. Hi, hi, hi!



O triste fim de FHC



Promotor e intérprete de uma ambição exagerada para um pássaro que não voa. Por Mino Carta. Foto: Zeca Wittner/AE
Promotor e intérprete de uma ambição exagerada para um pássaro que não voa
Quem já leu um livro de Fernando Henrique Cardoso? É a pergunta que às vezes dirijo à plateia que, generosa além da conta, acompanha uma palestra minha. Que levante o braço quem leu. De quando em quando, alguém acena ao longe, por sobre e em meio a uma fuga de cabeças imóveis. Trata-se, obviamente, de uma pesquisa rudimentar. Tendo a crer, porém, que o príncipe dos sociólogos e ex-presidente não é tão lido quanto os jornalistas tucanos supõem.
É grande, isto sim, o número daqueles que lhe atribuem acertadamente a chamada "teoria da dependência", objeto do ensaio escrito no Chile em parceria com o professor Enzo Falletto. Ali está uma crítica inexorável da burguesia nativa, incapaz, segundo a dupla de ensaístas, de agir por conta própria para tornar o Brasil um país contemporâneo do mundo.
Muitos anos após a publicação do livro, quando FHC ocupava a Presidência do País, eu me atrevi a perguntar aos meus botões se ele não estaria a provar a célebre teoria. Teria a oportunidade de demonstrar na prática seu teorema, pelo qual o Brasil é inescapavelmente destinado ao papel de dependente. Dos Estados Unidos, está claro. Ninguém como o presidente Fernando Henrique entendeu ser inevitável, ineludível, imperioso, cair nos braços do colega americano, no caso Bill Clinton.
Não me permito aventar a hipótese de que o nosso herói agiu em benefício próprio. Atendeu, legitimamente, isto sim, às suas convicções. A operação revela uma extraordinária habilidade política, a refletir seu incomum poder de sedução. A burguesia nativa encantou-se com aquele que recomendava o esquecimento de seu próprio passado, incapacitada, talvez, à comparação entre a teoria da dependência e a ação do presidente tucano, enquanto Bill escancarava os braços e oferecia o abrigo do ombro possante. Nem se fale do deleite da mídia: eis o presidente intelectual que o mundo nos inveja.
FHC é um encantador de serpentes. Plantou-se sobre o pedestal da estabilidade, obtida de início com a URV, enfim com o real, mérito indiscutível, premissa de progressos em espiral, que se renovam em uma espécie de estação de colheitas cada vez mais apressadas.
Trunfo notável, traído com a reeleição alcançada pela via da compra de votos para concretizar a emenda constitucional, e conduzida na campanha de 1998 à sombra da bandeira da estabilidade rasgada exatos 12 dias após a posse. Tanto em 94 quanto em 98, o obstinado Sapo Barbudo foi o adversário fadado à derrota, graças, inclusive, ao apoio maciço da mídia dos ainda influentes barões de longa vida e dos seus obedientes sabujos. Dá-se, inclusive, naquele 1998 vincado pela crise russa, um fenômeno peculiar: os patrões da mídia nativa passam a acreditar não somente nas promessas do seu candidato à reeleição, mas também nos seus colunistas que tão sofregamente o sustentam. Uma vez reeleito, FHC desvaloriza o real e deixa os senhores de tanga.
A Lula, vencedor em 2002, FHC entrega um país economicamente à deriva. O tucanato chegara ao poder oito anos antes com o propósito de ficar ali por duas décadas. Muita ambição, talvez, para um pássaro que não voa. Tenho uma lembrança pré-tucana que me vem à mente, remonta a 28 anos atrás. Acompanho André Franco Montoro na sua campanha à governança de São Paulo, na ocasião pela zona canavieira do estado. Chegamos a Rafard quando já caía a noite e a caçamba de um caminhão se dispôs a ser palanque nas bordas da cidadezinha.
Eu estava a bordo, do alto via aquela plateia de rostos iluminados obliquamente e ouvia a brisa ciciar em meio ao canavial que nos cercava. A sequência dos oradores previa também a fala de FHC e, ao cabo, aquela de Montoro. Quando o então suplente de senador tomou a palavra, Mário Covas veio sentar-se ao meu lado na amurada do convés. A cada período do discurso, olhava-me com cumplicidade e meneava a cabeça em desalento. Nunca esqueci aquele momento e quando o senador em lugar de Montoro, líder da cisão peemedebista criadora do tucanato, deixou-se encantar pelo convite de Fernando Collor e por sua própria, incomensurável vaidade, melhor entendi o comportamento de Covas na noite de Rafard.
Sua confiança no companheiro valia zero. E foi como se saísse da amurada e se chegasse ao orador garboso ao dizer com todas as letras, oito anos depois: "Se você for para o governo de Collor, eu saio do partido e trato de mandá-lo a pique". FHC tirou o time de campo. Covas sabia ser persuasivo, e teve a ventura de não assistir ao desastre de 2002, a primeira derrota de José Serra.
Outro episódio para mim marcante tem 30 anos e alguns meses. Estamos a viver a última grande greve dos operários de São Bernardo e Diadema, comandada pelo presidente do sindicato, Luiz Inácio, melhor conhecido como Lula. Vou frequentemente ao estádio da Vila Euclydes para viver de perto aquela situação, e um dia Raymundo Faoro, o amigo que hoje me faz falta, liga e diz: "Quero ver também". Veio a São Paulo e no aeroporto, quando fui buscá-lo, fomos interceptados por um emissário de FHC. O senador gostaria muito de se encontrar conosco a caminho do estádio. Faoro disse está bem.
Houve um café servido em xícaras de porcelana, e então o príncipe dos sociólogos iniciou a sua peroração a favor do nosso distanciamento daquela imponente manifestação dos grevistas. O segundo ato foi encenado no salão nobre do Paço Municipal de São Bernardo, precipitado pelo mesmo motivo. "Sou um jornalista – disse eu – esta conversa para mim é tempo perdido." Faoro não disse nada. Levantamos e fomos ao palanque de Lula. Foi quando o autor de Os Donos do Poder e o líder sindical se conheceram. Refleti sobre as razões de FHC: por que pretendia impedir que Faoro fosse ter com Lula? Permito-me a seguinte conclusão: pelo jurista e historiador nutria turvos ciúmes intelectuais, pelo líder operário algo mais que a premonição de uma inevitável rivalidade. Tratava-se de um confronto já latente.
Como amiúde acontece com fanáticos da ambição, o instinto da rivalidade está sempre preparado para o bote. Qual seria, exatamente, a primeira corda da relação Fernando Henrique-José Serra? Digo, do ângulo daquele. De grande ami zade, é a resposta oficial. E nos bastidores das intimidades mais recônditas, até mesmo inconfessáveis? Não duvido que a amizade de FHC por Serjão Motta fosse autêntica, totalmente sincera. Pois Serjão era um ser amoitado por natureza, provavelmente o mais sábio do terceto. Não tinha o menor interesse em sair à luz do sol para se exibir. Com Serra, parece-me fácil imaginar que a amizade de FHC seja agulhada pela rivalidade. Latejante.
Eis dois modelos de ambição diferentes, de certa forma opostos, pelo menos sob certos aspectos. Por exemplo. Ambos são hábeis em trabalhar à sombra, em manobrar por baixo dos panos. FHC, contudo, sabe como manter intacto este fluxo subterrâneo. Serra, talvez por causa da origem calabresa, às vezes não se contém e mostra a cara. FHC faz questão de aparentar tolerância e bonomia, mesmo em relação a quem abomina, como convém ao político matreiro a explorar os sentimentos alheios ao montar o ardil que irá engolir quem confiou em excesso. Serra é, para o mal de seus desenhos, de cultivar ressentimentos e rancores. Ódios precipitados, quando não daninhos para ele mesmo.
Nesta rivalidade se esvai o PSDB. A ambição transbordante, evidente demais, afastou ambos de uma liderança sábia e até arguta como a de Ulysses Guimarães. Depois de ter assustado fatalmente Tancredo Neves, que os quis longe do governo destinado a sobrar para José Sarney. Cogitado para o Planejamento, Serra só teve espaço em São Paulo. FHC, que Tancredo definia como "o maior goela da política brasileira", não foi além de um cargo inútil no Congresso.
Vanitas, vanitatum, diziam os latinos ao se referir à vaidade. Não é por acaso que o PSDB, nascido do inconformismo em relação à linha peemedebista que a tigrada tinha como muito branda, acaba por assumir, tardia e desastradamente, e empurrado pela presença de Lula, o papel da UDN velha de guerra. O enredo é impecável na moldura da deplorável trajetória da esquerda brasileira. É uma história escrita por um punhado de verdadeiros, digníssimos heróis, crentes alguns até as últimas consequências, e por uma armada de cidadãos inconsequentes, quando não oportunistas. Tal é a minoria branca, como diz Cláudio Lembo. Descrentes de tudo, muitos até sem se darem conta de sua descrença porque incapazes de perceber seus impulsos mais fundos.
Magistral a entrevista de FHC ao Financial Times publicada às vésperas do primeiro turno. Dizia ele que, em caso de vitória de Dilma Rousseff, o desenvolvimento do Brasil seria "mais lento". Confrontado com aquele do governo Lula ou do seu? Se for com este, podemos vaticinar um futuro terrificante. No tempo de FHC, o índice anual de crescimento não passou de 2,5%. Em matéria de desfaçatez, a entrevista é digna do Guiness. "Eu fiz as reformas – afirma o rei da cocada preta –, Lula surfou na onda." Então, por que é o presidente mais popular da história? Culpa do próprio PSDB, dos companheiros incompetentes, "entenderam errado", permitiram "a mitificação de Lula", o qual, embora nascido da classe trabalhadora "portou-se como se fizesse parte da velha elite conservadora".

Quem serviu à velha elite conservadora, foi o presidente FHC, que confirmou o Brasil como quintal dos EUA e o atrelou ao neoliberalismo. O confronto entre os dois governos é inevitável, bem como entre a repercussão internacional de um e de outro. Ocorre-me imaginar como há de roer as entranhas do príncipe dos sociólogos constatar que o metalúrgico teve mundo afora, com sua política independente, o reconhecimento que lhe faltou, a despeito de sua política dependente.
E nas suas últimas falas, FHC age no seu melhor estilo, é o náufrago que exige lugar no bote salva-vidas em lugar de crianças, mulheres e velhos. São estes, aliás, os culpados pelo naufrágio, donde o privilégio lhe cabe. Quanto a José Serra, que afogue.