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Crônica semanal de Luiz Fernando Verissimo

Desencontros

Me desencontrei algumas vezes com ele. Quando cheguei no Rio em 1962 — sem emprego, sem dinheiro, sem perspectivas, mas com amigos — a Clarice Lispector se ofereceu para marcar um encontro meu com ele. Talvez houvesse algo para mim na agência em que ele trabalhava — ou dirigia, não me lembro mais. Também não me lembro se cheguei a falar com ele por telefone. Acho que não, e que nunca sequer ouvi a voz do Ivan Lessa. De qualquer maneira, o encontro não aconteceu.

Depois, na minha convivência esporádica com o Millor, o Jaguar, o Ziraldo, o Tarso e outros na época do “Pasquim”, por alguma razão o Ivan nunca apareceu. Estava sempre para chegar ou tinha acabado de sair. Anos mais tarde um grupo foi convidado a ir a Portugal — Millor, os Caruso, Aroeira, eu e outros — para uma exposição de cartuns, se não me falha de novo a memória. Estávamos hospedados num hotel de Estoril e foi anunciado que o Ivan Lessa, que vivia em Londres, estava na terra, onde vivia sua mãe, e iria se encontrar conosco no hotel.
Finalmente, pensei. O mito vai virar gente e eu vou poder conhecê-lo e dizer como o admiro. Mas me convocaram para uma entrevista ou coisa parecida em Lisboa justamente na hora da visita dele. Foi nosso último desencontro. Agora não tem jeito. Fiquei só com o mito.



Manchetes, por Luiz Fernando Veríssimo

Há noticias de primeira página que nunca chegam à primeira página. Ou por falta de espaço — caso do Brasil no ultimo mês, quando o futebol dominou as primeiras páginas de todos os jornais — ou por decisão editorial.

Entre as notícias de primeira página que não viraram manchete durante a Copa está a declaração formal das Forças Armadas brasileiras que nada de anormal, como tortura e mortes, aconteceu em qualquer dependência militar no Brasil no período da ditadura. E pronto.

Notícia paralela que também ficou nas páginas internas, ou só com chamada na capa, foi a da prescrição do caso da bomba no Riocentro, que não será mais investigado. Também: assunto encerrado.

Quem insistir que houve tortura e morte nos quartéis durante a ditadura, segundo o relato de sobreviventes e averiguações criteriosas já feitas, estará chamando a instituição militar brasileira de mentirosa. Sobre a ação criminosa abortada pela explosão prematura daquela bomba no Puma jamais se saberá mais nada.

Outra noticia que merecia manchetes, mas não passou do bloqueio da Copa, foi a de que, dos 32 países que participaram do campeonato, o Brasil foi o que apresentou maior queda nos índices de mortalidade de crianças de até 5 anos de idade nas últimas décadas.

Maior do que ocorreu na Alemanha, na Holanda e na Argentina, para ficar só nos quatro finalistas da Copa. Os dados são da Parceria Para a Saúde Materna e Recém-Nascidos e Crianças, entidade coordenada pela Organização Mundial da Saúde.

A divulgação destes números com o destaque merecido talvez diminuísse os insultos à presidente, que, estes sim, sempre saem na primeira página. Ou talvez aumentassem, vá entender.


POR QUÊ?

O terremoto que arrasou Lisboa também sacudiu a intelectualidade europeia da época, que se dividiu entre os que consideravam a catástrofe um ato de Deus para punir a pecaminosa capital portuguesa e os que diziam que a natureza, e não um Deus cruel, era responsável pelo cataclismo.

Voltaire manteve que o terremoto provava a inexistência de Deus e fez pouco dos que defendiam que era um castigo divino, num famoso poema em que perguntava: se o objetivo era acabar com o pecado, por que escolher logo Lisboa e não Paris, onde havia muito mais pecadores, “mergulhados nas delicias”, do que em Lisboa?

“Lisboa está arruinada”, escreveu, “e dança-se em Paris.” Exatamente o que sentimos depois dos 7 a 1, guardadas todas as gigantescas proporções. Nosso futebol está arruinado, e dança-se em países que não têm metade das nossas taças e glórias. E por que nós?!

Luiz Fernando Veríssimo e a Tia Perigrina


Qual é a diferença entre um visitante francês e um visitante judeu? O visitante francês vai embora sem se despedir, o judeu se despede mas não vai embora.

Nós tínhamos uma tia — a famosa tia Peregrina — que seguia o método judeu. Quando a tia Peregrina começava a se preparar para sair, sabíamos que aquilo era apenas o inicio de uma longa retirada, prolongada por assuntos que ainda não tinham sido tratados.
A tia Peregrina podia ficar em silêncio durante toda a visita, mas na sua saída começam a brotar assuntos e fofocas e revelações que tinham ficado esquecidas, todas lembradas pela tia Peregrina.
A migração da tia Peregrina da sua cadeira até a calçada, que era onde a conversa ficava mais animada, podia levar horas. E se alguém sugerisse que voltassem para a sala e sentassem-se de novo para continuar a conversa, a tia Peregrina era a primeira a protestar:
— Não, não. Estou indo embora. Já me despedi de todo o mundo.
E não ia embora.
Durante muitos anos a tia Peregrina fez parte do folclore da família. Quando alguém se atrasava para sair de casa, ouvia:
— Vamos, tia Peregrina!
Até amigos que nunca conheceram a tia Peregrina, mas conheciam sua fama, a evocavam para desculpar um atraso.
— Epa, desculpe. Dei uma de tia Peregrina.
Confesso que não sei qual era o parentesco dela conosco, nem que fim levou. Parte do seu habitat, a calçada onde todas as conversas terminavam, ficou inabitável. Mas duvido que assaltantes e balas perdidas fossem impedi-la de contar a última.
Sempre imagino a tia Peregrina sendo velada, e no momento em que vão tampar o caixão, levantando o dedo e dizendo:
— Esperem, tem uma que eu não contei.

Crônica semanal de Luiz Fernando Veríssimo

Aos 7 anos, apaixonado, roubei uma pulseira!

Acho que já contei o meu único crime. Na verdade, descontando-se alguns sinais amarelos em que não dava mesmo para parar, não há contravenções ou pecados maiores na minha vida. Ficha limpa.

Claro que muito pequei em pensamento, mas a imaginação é uma área neutra em que tudo é permitido e nada é punido. Crime, crime mesmo só tenho um. Roubei uma pulseira. Atenuante: foi por amor.
Eu tinha uns sete anos e nós tínhamos acabado de alugar uma casa em Los Angeles. Meu pai lecionaria durante um ano na Universidade da Califórnia. Nos botaram, eu e minha irmã, numa escola próxima da casa. E foi lá que eu a conheci. Morena, cabelos longos. Não vou nem tentar me lembrar do nome. Digamos que fosse Sandra. E me apaixonei pela Sandra.
Ninguém se apaixona aos sete anos, dirá você. Engano seu. As grandes paixões são aos sete anos. Todas as outras, pelo resto da vida, serão simulacros, pois nenhuma será tão intensa e desesperada. Eu amava Sandra e, na minha imaginação, era correspondido. Nos meu sonhos ela me olhava, e trocávamos sorrisos, e eu até beijava seus cabelos na fila. Foi a sua total indiferença aos meus olhares e suspiros que me levou ao crime.
Descobri, na casa em que morávamos, mal escondida numa prateleira, uma caixa contendo uma pulseira dourada. A pulseira não devia ter qualquer valor para estar assim tão à mão de um neocriminoso, mas era linda.
Peguei a pulseira e, naquela noite, ensaiei o que diria a Sandra, quando lhe entregasse o presente no dia seguinte. “My name is Luis and I love you.” Ou talvez algo mais, mais cativante: “Tome esta pulseira, que é bela como você” ou “Lembre-se de mim, Sandra!”

Sei direitinho o que faz bem e o que faz mal pra minha saúde

[...] Prazer faz muito bem. 
Dormir me deixa 0 km. 
Ler um bom livro faz-me sentir novo em folha. 
Viajar me deixa tenso antes de embarcar, mas depois rejuvenesço uns cinco anos. 
Viagens aéreas não me incham as pernas; incham-me o cérebro, volto cheio de idéias. 
Brigar me provoca arritmia cardíaca. 
Ver pessoas tendo acessos de estupidez me embrulha o estômago. 
Testemunhar gente jogando lata de cerveja pela janela do carro me faz perder toda a fé no ser humano. 
E telejornais... os médicos deveriam proibir - como doem! 
Caminhar faz bem, dançar faz bem, ficar em silêncio quando uma discussão está pegando fogo, faz muito bem! Você exercita o autocontrole e ainda acorda no outro dia sem se sentir arrependido de nada. 
Acordar de manhã arrependido do que disse ou do que fez ontem à noite é prejudicial à saúde! E passar o resto do dia sem coragem para pedir desculpas, pior ainda! 
Não pedir perdão pelas nossas mancadas dá câncer, não há tomate ou mussarela que previna. 
Ir ao cinema, conseguir um lugar central nas fileiras do fundo, não ter ninguém atrapalhando sua visão, nenhum celular tocando e o filme ser espetacular, uau! 
Cinema é melhor pra saúde do que pipoca! 
Conversa é melhor do que piada. 
Exercício é melhor do que cirurgia. 
Humor é melhor do que rancor. 
Amigos são melhores do que gente influente. 
Economia é melhor do que dívida. 
Pergunta é melhor do que dúvida. 
Sonhar é melhor do que nada!
Luiz Fernando Verissimo

Crônica do Verissimo


Paris — Garry Wills é um historiador americano que recentemente lançou um livro chamado “Rome and rhetoric”. Wills é notoriamente religioso, o que não o impede de ser um pensador independente e um ensaísta instigante.

Seu novo livro é sobre “Júlio Cesar”, de Shakespeare, e o efeito que uma educação elisabetana, com ênfase nos clássicos e na retórica, teve nas tragédias romanas do poeta, como “Titus Andronicus”, “Coriolano” e “Júlio Cesar”.
Wills começa estranhando que esta ultima se chame “A tragédia de Júlio Cesar”, quando deveria se chamar “A tragédia de Brutus”, que é o seu principal personagem. Júlio Cesar é assassinado no começo da peça. Brutus, segundo Wills, tem cinco vezes mais falas do que ele.
Mas mais estranho do que um personagem que morre tão cedo dar nome à peça é a importância de um personagem que mal aparece em cena e, na contabilidade do Wills, tem escassas nove linhas para dizer. Cícero domina a peça mas “aparece” mais nas falas dos outros, nas referências e na reverência a ele, do que fisicamente.
Os conspiradores discutem se devem ou não convidar Cícero para participar do assassinato de Cesar, notoriamente seu inimigo, inclusive para que seus cabelos brancos deem mais respeitabilidade à empreitada.
“His silver hairs will purchase us a good opinion”, diz um dos conspiradores. Seus cabelos prateados nos comprarão uma boa opinião. Mas decidem poupar o filósofo da sangueira.
Uma constante na peça é a especulação sobre o que Cícero pensará e dirá, na preparação do assassinato e na convulsão que se segue. Grande orador, mestre da retórica, Cícero está na cabeça de todo mundo, e o silêncio retumbante que Shakespeare lhe dá não deixa de ser uma forma de respeitar sua reputação de sábio e de reserva moral.
O incorruptível Cícero e seu silêncio pairam sobre Roma em ebulição. Até que, com os cachorros da guerra soltos, ele também é atingido pela convulsão atiçada por Marco Antonio para vingar a morte de Cesar.
Marco Antonio manda matá-lo e pede que lhe tragam sua cabeça e sua mão direita, com a qual ele escrevia suas críticas.
Cícero não é exatamente um bom exemplo político. Defendia uma república governada por uma elite de iluminados. 

Mas faz falta — no Brasil atual, por exemplo, para dar um pulo na história — um Cícero, com ou sem cabelos prateados, para ser uma referência de respeitabilidade na política e um exemplo moral indiscutível.

E dominar uma era só com sua existência, como o Cicero de Shakespeare dominava uma peça.

Intimidade por Luiz Fernando Verissimo



Os dois na cama.
— Bem...
— Mmm?
— Posso te fazer uma pergunta?
— Se você pode me fazer uma pergunta? 40 anos de casados e você precisa de permissão para me fazer uma pergunta?
— É uma coisa que me intriga há 40 anos...
— O que?
— A sua calcinha pendurada no box do chuveiro...
— Sim?
— Está ali para secar ou para molhar mais?
— Como é?!
— A sua calcinha pendurada no...
— Eu ouvi a pergunta. Só não estou acreditando. Há 40 anos você vive com essa dúvida? O que a calcinha dela está fazendo no box do banheiro?
— É. Ela foi lavada e está secando, ou está ali para receber mais água?
— E por que você levou 40 anos para me fazer essa pergunta?
— Sei lá. Eu...
— Você achou que nós não tínhamos intimidade o bastante para tratar do assunto, é isto?. Que eram necessários 40 anos de vida em comum para podermos discutir a minha calcinha pendurada no box sem constrangimentos. É isto? Você sabe tudo ao meu respeito. Sabe toda a minha vida, conhece cada estria e sinal do meu corpo, sabe do que eu gosto e não gosto, em quem eu voto, sabe as minhas manias e os meus ruídos, mas estava faltando este detalhe. Este ponto cego no nosso relacionamento. O que a minha calcinha faz pendurada no box do banheiro.
— Não, eu queria perguntar há tempo, mas...
— Já sei. Você achou que fosse uma coisa só de mulher, que homem jamais entenderia. As calcinhas penduradas no chuveiro seriam uma espécie de demarcação de território, um ritual de congregação tribal. Um mistério que une todas as mulheres do mundo e um terreno em que homem só entra com o risco de enlouquecer. Por isso demorou tanto para fazer a pergunta.
— Nada disso. Eu só...
— Francamente.
Ele já estava quase dormindo quando se deu conta. Ela não respondera a pergunta.

Nova crônica de Luiz Fernando Verrissimo



Ele tinha cara e corpo de toureiro. Ou então não de toureiro, que mata o touro. De bandarilheiro, que o irrita. Afinal, o Millor era só meio espanhol. O touro dele era qualquer coisa grande ou metida a grande, qualquer coisa com chifres que assustavam os outros mas não ele, qualquer coisa pomposa e ridícula, qualquer coisa prepotente. Mas acima de tudo, o touro dele era a burrice.

No lombo da burrice ele espetava suas bandarilhas coloridas, seus epigramas pontudos, suas parábolas incisivas, suas frases marcantes, sua inteligência afiada, esquivando-se dos chifres da besta. No fim ele só não conseguiu driblar a coisa mais burra que existe: a morte.
Especulação dolorosa: o que teria passado pelo seu cérebro nestes últimos dias, preso a um corpo inutilizado? Que memórias, que imagens ocuparam sua mente antes do fim? Ele na sua última arena, diante do seu último touro. Arena vazia, só os dois, num cara a cara final. Ele sem seus instrumentos: sem lápis, sem teclado, sem defesa. E na sua frente a burrice na sua forma definitiva.
A burrice total, a burrice imune a argumento ou súplica, a burrice irreversível, a burrice triunfante. Não adianta ele sugerir que ao menos dancem uma valsa, a burrice não tem senso de humor. Nem se pode chamá-la de vingativa — ela sabe que no fim, depois das bandarilhas coloridas e de todas as piruetas, a vitória será dela. Por mais ridicularizada que ela seja, a vitória é sempre dela. E depois vem a burrice eterna.
No seu sonho terminal, o touro começa sua carga. E o bandarilheiro não consegue sair do lugar.
BOZÓ E COALHADA
Cada um tinha seu personagem do Chico Anisio favorito. Os meus eram o Bozó e o Coalhada. O Chico era, antes de mais nada, um grande ator e cada personagem que ele criava vinha completo, não só com trejeitos e personalidades meticulosamente observados mas com biografia e destino claramente subentendidos.
Você adivinhava toda a vida do Bozó, sonhando eternamente com o status de ser da Globo, e do Coalhada, lembrando uma carreira no futebol que tinha pouco a ver com a realidade. Uma dentadura falsa bastava para fazer o tipo do Bozó, mas o Coalhada requeria um estrabismo meio desvairado que não podia ser simulado, era recurso do grande ator.
CHEGA!
Chico Anisio e Millor, um depois do outro. Ninguém está achando graça.

Crônica de Luis Fernando Veríssimo


A primeira pedra

E os fariseus trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em adultério, e perguntaram a Jesus se ela não deveria ser apedrejada até a morte, como mandava a lei de Moisés. E disse Jesus: aquele entre vós que estiver sem pecado que atire a primeira pedra. E a vida da mulher foi poupada, pois nenhum dos seus acusadores era sem pecado. Assim está na Bíblia, evangelho de São João 8, 1 a 11.
Mas imagine que a Bíblia não tenha contado toda a história. Tudo o que realmente aconteceu naquela manhã, no Monte das Oliveiras. Na versão completa do episódio, um dos fariseus, depois de ouvir a frase de Jesus, pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Eu estou sem pecado!”
— Pera lá — diz Jesus, segurando o seu braço. — Você é um adultero conhecido. Larga a pedra.
— Ah. Pensei que adultério só fosse pecado para as mulheres — diz o fariseu, largando a pedra.
Outro fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, gritando: “Nunca cometi adultério, sou puro como um cordeiro recém-nascido!”
— Falando em cordeiro — diz Jesus, segurando o seu braço também — e aquele rebanho que você foi encarregado de trazer para o templo, mas no caminho desviou dez por cento para o seu próprio rebanho?
— Nunca ficou provado nada! — protesta o fariseu.
— Mas eu sei — diz Jesus. — Larga a pedra.
Um terceiro fariseu pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a adultera, dizendo: “Não só não sou corrupto como sempre combati a corrupção. Fui eu que denunciei o escândalo da propina paga mensalmente a sacerdotes para apoiar a os senhores do templo.”
— Mas foste tu o primeiro a receber propina — diz Jesus, segurando seu braço.
— No meu caso foi para melhor combater a corrupção!
— Larga a pedra.
Um quarto fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Não tenho pecados, nem da carne, nem de cupidez ou ganância!”
— Ah, é? — diz Jesus, segurando o seu braço. — E aquela viúva que exploravas, tirando-lhe todo o dinheiro?
— Mas isto foi há muito tempo, e a mulher já morreu.
— Larga a pedra, vai.
E quando os fariseus se afastam, um discípulo pergunta a Jesus:
— Mestre, que lição podemos tirar deste episódio?
— Evitem a hipocrisia e o moralismo relativo — diz Jesus.
E, pensando um pouco mais adiante:
— E, se possível, a política partidária.

Cônica de Luiz Fernando Verissimo

Não é mais pecado

Na sua “Divina Comédia” Dante coloca os sodomitas, os blasfemadores e os usurários no mesmo círculo do Inferno.
As praticas das três categorias eram igualmente antinaturais. A Igreja condenava a usura e só absolvia os usurários arrependidos se eles devolvessem todo o lucro obtido com juros, que não era fruto do trabalho e portanto contra as leis de Deus. Aos usurários renitentes era negado enterro cristão.
Já os blasfemadores e sodomitas não podiam esperar nenhuma remissão: iam direto para o Inferno. Pelo menos para o Inferno do Dante.
Nos 7 séculos desde a “Divina Comédia”, aos poucos e cada uma por sua vez, as três classes se livraram da danação que as estigmatizava. Relações homossexuais hoje são aceitas sem muito escândalo. Blasfemadores não precisam mais temer as fogueiras da Inquisição, ou qualquer coisa parecida, por negarem a religião. E os usurários mandam no mundo.
Pode-se, com alguma imaginação, comparar a regulação dos bancos que existia até pouco tempo com o controle que a Igreja tentava manter sobre a atividade financeira no fim da Idade Média, e a desregulação dos bancos que deu na crise que vivemos agora com a conclusão da Igreja que estava perdendo grandes negócios, combatendo a usura, e sua decisão de aderir.
Os banqueiros passaram de excomungados a abençoados, e pelo século 18 a própria Igreja já era um dos maiores manipuladores financeiros do planeta.
No caso dos bancos modernos, liberados para fazerem qualquer negócio pelo lucro imediato, inclusive destruir economias inteiras, a mensagem da desregulação foi a mesma que a Igreja deu aos usurários séculos atrás: não é mais pecado, gente!
Seria possível especular sobre quem Dante colocaria hoje no mesmo nicho, no sétimo circulo do Inferno? Nada parece muito antinatural, ultimamente. Bom, talvez a pizza com abacaxi. Mas nem isto merece ser jogado no fogo eterno.

Crônica de Luiz Fernando Verissimo

O que marcou o Carnaval do Rio de Janeiro 2012 foi o silêncio, o silêncio da Bateria da Mangueira...

‘Recomeço’

Quando ainda se escreviam crônicas de carnaval, as de Quarta-Feira de Cinzas eram as mais comuns. Tratavam de ressaca e remorso, de fim da folga e volta ao trabalho, e de todas as possibilidades dramáticas ou patéticas de um carro alegórico abandonado e um falso marquês estirado na sarjeta.

Havia até uma subcategoria de crônica de Quarta-Feira de Cinzas, a crônica de volta do marido para casa. Do reencontro, às vezes catastrófico, do brasileiro com a realidade na forma da Adalgisa esperando no portão, e não aceitando desculpas.
Quarta-Feira de Cinzas era uma coisa muito brasileira. Como ninguém tinha um carnaval parecido com o nosso, ninguém tinha um pós-carnaval tão triste. Uma queda de tanta altura.
Mas o curioso é que, quanto maior e mais coisa inédita brasileira fica o carnaval, mais o nosso pós-carnaval perde suas características — e seu valor literário. Hoje, a figura típica do pós-carnaval não é mais o folião deixando sua fantasia no caminho na volta ao seu duro cotidiano, é o finlandês embarcando no avião e levando sua fantasia para mostrar em casa.
E não tem mais Adalgisa esperando no portão. O marido que volta teve o mesmo destino de outros personagens clássicos: foi engolido pelo tempo e pela irrelevância. Ele não sai mais de casa no sábado e só reaparece na quarta-feira vestindo um cuecão e dizendo que foi sequestrado por sugadoras alienígenas, o que explica os chupões no pescoço. Isso é coisa do tempo antigo. De outros pós-carnavais.
Razão têm os baianos, que acabaram com o pós-carnaval. Lá chamam a Quarta-Feira de Cinzas de “Recomeço”, e emendam. E como gênero literário as crônicas de Quarta-Feira de Cinzas também perderam toda a legitimidade. Viraram anacrônicas. Como esta, que ainda por cima está saindo na quinta.

Coxas grossas femininas, foram para onde?

Eu sei que não é a questão mais premente do momento, mas para onde foram as mulheres ancudas e de coxas grossas? O que há alguns anos era um corpo bonito de mulher hoje não é mais. Durante anos o padrão de mulher "boa" no Brasil foi a vedete tipo violão, com mais ancas do que peito. Que fim as levou?
O ocaso do tipo começou, segundo alguns estudiosos, com a derrota da Marta Rocha por excesso de quadris num concurso de Miss Universo, no tempo em que todo o país acompanhava nossas concorrentes em concursos mundiais de beleza como se elas fossem a seleção. E Marta Rocha era um pouco como a seleção de 50: não podia perder e perdeu, por milímetros.

A partir daí teve-se o cuidado de enquadrar nossas misses nas convenções internacionais de beleza, embora persistisse a certeza de que o padrão violão era melhor e os estrangeiros não sabiam o que estavam perdendo.
Aos poucos o tipo longilíneo se impôs, e hoje nem entre as coristas — ou os travestis, esses nostálgicos de virtudes femininas em desuso — se encontra o formato antigo. Mais uma vitória do colonialismo cultural.
Talvez a evolução do maiô tenha alguma coisa a ver com o fenômeno. O advento do biquíni e da tanga condenou a coxa larga a adaptar-se ou sair da praia, numa amostra particularmente rude de darwinismo social. A transformação da roupa de banho trouxe outros benefícios para a humanidade e seus fundilhos.
Você eu não sei mas ainda peguei o tempo dos calções infantis de pano que ficavam pesados e ásperos quando molhados e cheios de areia, e nos assavam as pernas e as partes. Pomada, muita pomada, e bichos-do-pé eram as consequências de um dia na praia. E por falar nisso, que fim levaram os bichos-do-pé?
Até uma determinada época os maillots das moças eram feitos para disfarçar o fato de que elas tinham sexo. Nós sabíamos que elas tinham, se bem que não tivéssemos muita certeza de como funcionava. E ainda tem gente que suspira e diz "Bons tempos..."

por Luiz Fernando Verissimo

A grande final

Eu era bom no totó. Ou pebolim, ou como quer que chamem aquele futebol de mesa com os bonequinhos. Aquele que o pessoal dos videogames hoje dá risada só de ouvir falar. E eu era imbatível no totó.

É verdade que jogava muito sozinho. Meu time, o Fluminense, magistralmente manejado, envolvia completamente o estático Flamengo do adversário ausente. Mas, de tanto treinar contra ninguém, na infância e na adolescência, acabei melhor do que todos os adversários reais que eventualmente enfrentava. Até aparecer o Iñaki.

O Iñaki era basco. Tinha se casado na Espanha com a minha prima Heloísa e os dois estavam morando em Porto Alegre. Ele ia muito na nossa casa, para ouvir os discos de Mozart do meu pai e jogar totó comigo. Não era apenas um exímio jogador. Também era um teórico do totó.

Foi ele que não só decidiu trocar a tradicional bola de ping-pong por uma menor, de madeira, que facilitava o controle, como mandou fazer as bolas de acordo com suas especificações precisas. E me ganhava sempre. Descobriu, inclusive, uma maneira de anular a minha jogada mais mortífera, um passe lateral para o Bigode chutar de longe que nunca falhava. Contra o Iñaki o Bigode não acertava uma.

Uma vez fizemos um torneio de totó na nossa casa. Apenas um pretexto para reunir os amigos. Depois da comida, a mesa de jantar foi afastada e substituída pela de totó. Jogos eliminatórios, mata-mata. Meu desempenho foi digno. Ajudado pelo fator campo, cheguei a uma semifinal, mas fui eliminado. Pelo Iñaki, claro.

O Iñaki foi para a decisão com o vencedor da outra semifinal. E finalmente encontrou um adversário que o igualava em técnica e vontade de ganhar: Elias Figueroa! O zagueiro chileno que na época era o grande ídolo do Internacional e iria comandar o time na conquista de um bicampeonato brasileiro. E que era o campeão de totó das concentrações do Inter.

Sinto dizer (anticlímax) que não me lembro quem ganhou a grande final. Sei que durante a batalha os brasileiros se retraíram: era Chile contra País Basco, uma questão de outro sangue, nada a ver conosco. Só nos restava dar espaço às feras.