Só falava de si, encontrava alguém em determinado lugar, e sem desejar pelo menos um bom dia, metralhava, porquê ele não falava normalmente como as outras pessoas:
- Os bancários entraram em greve !
- .....
- É um absurdo ! Ganham mais do que eu, e ainda vou ficar com o meu dinheiro preso !
Se preocupava consigo mesmo e com mais ninguém, quando lia uma matéria de jornal, fazia um exercício mental para verificar se a mesma teria algum impacto sobre a sua vida, em caso negativo, virava a página, se julgasse que lhe traria problemas, ia para a rua na busca de um incauto que não tivesse tido tempo de mudar o rumo para empreender uma fuga quando tivesse avistado o chato:
- Viu o que Supremo decidiu !
E de nada adiantava o interlocutor forçado, estar com compromisso agendado e insistentemente olhar para o relógio e quase suplicar para ir embora, o chato o segurava pelo braço, e só o soltava no término de suas conjecturas, que sempre eram prolixas.
Se o time de futebol para qual ele torcia ganhava uma partida, mesmo que não decisiva, vestia a camisa do clube, e saia em busca não dos outros torcedores como ele, para confraternizar, procurava os do time adversário, para infernizar.
Visitava diariamente na internet os blogs que emitissem alguma opinião, pelo puro prazer de fazer comentários contrários ao texto, estes eram longos, davam voltas e não chegavam a lugar algum, o que ele queria mesmo era reclamar.
Se o dia estivesse ensolarado e quente, preferiria o frio, se frio estivesse, a sua preferencia recairia pelos dias de sol. Olhava para o céu azul e via tempestades a se aproximar, o mesmo céu se mostrando nublado, arrancaria o comentário de que o sol que viria por detrás das nuvens, fritaria ovo no asfalto:
- Sabe aquela nuvenzinha ali ...
Não era diferente em qualquer assunto que fosse tratar, adoeceu e se submeteu a uma cirurgia de ponte de safena, mas recuperou-se, diziam as más línguas que apenas para atazanar a vida dos outros. Andava pelas ruas com os exames em baixo do braço, achando o interlocutor que quase sempre estava com pressa, mostrava todos os exames, explanando sobre os métodos e os parâmetros de máximo e mínimo, e explicava a cirurgia do preparatório até a alta médica:
- Quase morri !
- .....
- Mas eu falei para o médico...
Nem sempre tinha notícias novas e frescas, muitas vezes repetia a mesma história, modificando aqui ou acolá, e contava para a mesma pessoa que já o fizera semanas antes, e é claro em outra versão. Chegava ao limite de contar uma piada para a mesma pessoa que a tinha contado, e essa , com um sorriso sem graça, nada dizia, pois seria pior se dissesse alguma coisa.
As pessoas conhecidas e os poucos amigos foram se afastando, andava pelas ruas falando sozinho, falando não, reclamando. Faleceu alguns meses depois, no velório, presentes apenas os familiares mais próximos, o assunto dominante era a ausência dos amigos que conquistara pela sua vida, pois a capela estava vazia.
Alguns minutos antes de se iniciar o ritual de "encomendação" da alma do defunto, os amigos começaram a chegar, de início em pequeno número, para aos poucos lotarem completamente a capela, todos com as feições compungidas, com os olhares fixos no esquife em que repousava o corpo do chato.
O que os parentes não sabiam eram as razões que levavam tanta gente ao seu velório, pois até esta sabia que ele era um chato irrecuperável, aceitaram a explicação de um sobrinho, de que a morte nivelava todos os seres, que esqueciam dos aspectos negativos do falecido. Mas na verdade, poucas pessoas tinham-se afeiçoado ao chato, e ali estavam para a última despedida, a maioria esmagadora dos presentes fora para ver se ele estava morto mesmo, e relembrar estórias do defunto. Quando o sino tocou para sinalizar o cortejo derradeiro, um dos presentes, com uma feição entristecida, foi até o caixão, agora cerrado, e sobre ele colocou a bandeira do Botafogo Futebol Clube, o que foi seguido por uma salva de palmas de todos os que ali estavam, inclusive dos familiares, que tinham se esquecido que ele em vida era torcedor fanático do Flamengo Futebol e Regatas.
pinçado do Observatório da Experiência