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Poesia da manhã

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(...) "A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz".
Ferreira Gullar
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coluna Ferreira Gullar

Não quero ter razão

Não resta duvida de que tenho muitos defeitos, mas se há uma coisa que não sou é ressentido. Aliás, não só não sou como acho bobagem ser, porque o ressentido fica sofrendo, com raiva do outro que já nem pensa nele. Ou seja, o ressentido é, no fundo, um masoquista, sofre porque gosta de sofrer.

Mas é claro que não é só por pensar desse modo que não me deixo levar pelos ressentimentos; é meu jeito apenas, não tenho vocação para ficar remoendo mágoas.

Não obstante, de vez em quando, alguém quando me entrevista entende mal o que digo e passa ao leitor a ideia de que odeio artistas contemporâneos e não esqueço a discordância com o grupo concretista de São Paulo, ocorrida há mais de 50 anos, e vai por aí. E, veja bem, esse desentendimento ocorreu há mais de 50 anos, em torno de questões de que ninguém mais se lembra.

Pois bem, é o cara que, no curso da entrevista, puxa esse assunto porque deseja por um pouco de pimenta na conversa. Respondo a suas perguntas e ele, quando escreve o que eu disse, imprime a minhas palavras um tom exacerbado que foi ele que inventou.

Se eu não me ressinto da ofensa que alguém me tenha feito há uma semana, vou estar furioso com um fato ocorrido há meio século? Só se eu fosse doente mental.

Mas a vida é assim mesmo, tem de tudo. Confesso que até já me habituei a esse tipo de desconsideração e, se agora a isso me refiro, é porque uma amiga me telefonou irritada com a tal entrevista e surpresa com o tom das frases a mim atribuídas. Tratei de tranquilizá-la, dizendo-lhe que continuo o mesmo cara bem humorado que não se enfurece à toa, muito menos com esse tipo de assunto.

Sucede, porém, que o tal entrevistador não se limitou à ruptura com os concretistas, não; procurou retratar-me como um inimigo dos artistas contemporâneos, alterando o que costumo afirmar.

Enfim, para quem não me conhece, a imagem que fica é a de um velho ultrapassado, contra tudo o que é novo. Ainda mais agora, quando acabo de entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Com isso, claro, deixo um flanco aberto. Mas pouco me importa o que pensam pessoas sem isenção. Nunca pretendi ser uma unanimidade nem me considero acima de qualquer crítica. Errar, errei muito; a diferença talvez esteja no fato de que costumo reconhecer meu erro, quando é o caso, e trato de buscar o caminho certo. E posso errar de novo, claro. Mas que fazer? Por isso, afirmei certa vez: não quero ter razão, quero ser feliz.

No entanto, embora não pretenda ter sempre razão, não abdico do direito de opinar. Por exemplo, acho que o que se chama hoje de arte contemporânea nem sempre pode ser considerado arte. Certamente, todo mundo tem o direito de fazer o que deseja fazer, só que não sou obrigado a gostar do que fazem.

Por exemplo (como citou o tal repórter), enviar urubus numa gaiola para a Bienal, como se fosse obra de arte, pode ser, no máximo, uma piada. Não obstante, acho que o cara tem o direito de fazê-lo e eu, o direito de achar que não é arte.

Mas não o faço zangado, embora me diga respeito, já que dediquei grande parte de meu tempo a ler e refletir sobre arte.

Admito, mesmo que às vezes o faça de gozação, tal o disparate que tais coisas implicam. Acrescente-se que o surrealismo e o dadaísmo fazem parte de minha formação, e Breton e seus companheiros me ensinaram que o humor e a irreverência são parte da criação artística.

Se quer saber o que penso de tais manifestações, lhe digo: o cara está dizendo que a arte acabou, que tanto faz pintar um quadro como mandar urubus para uma exposição. Só que esse tipo de atitude antiarte é coisa velha, uma vez que o tal urinol de Marcel Duchamp, que foi a primeira manifestação desse tipo, completará um século daqui a três anos.

Não é por acaso que as bienais estão morrendo, como a atual Bienal de São Paulo, cuja visitação é uma melancólica perda de tempo.

Enquanto isso, os artistas de verdade continuam criando obras de arte, obras que não têm que ser obrigatoriamente pintura, escultura ou gravura. Pode ser, por exemplo, uma instalação, mas deve mostrar criatividade e comover as pessoas.

Ferreira Gullar: será esse o cara?


O discurso de posse de Joaquim Barbosa na presidência do Supremo Tribunal Federal me fez olhá-lo de maneira especial. Não é que antes fizesse restrições a seu desempenho como relator do mensalão.

Pelo contrário, desde o primeiro momento admirei a coragem moral com que votou pela punição dos réus e particularmente daqueles que gozavam do apoio ostensivo do PT e do Lula. Quando se sabe que sua presença no STF se deveu à indicação do ex-presidente petista, a independência com que julgou figuras como José Dirceu e Genoino provocaram a admiração de amplos setores da opinião pública e a minha em particular.

Mas o seu discurso de posse me revelou outra coisa: revelou-me que ele não é apenas um juiz severo e independente na aplicação da lei, como é também um homem lúcido, maduro, que dispensa as firulas e salamaleques no exercício da missão de julgar.

A firmeza tranquila de sua postura e a dos outros oradores, ao tratar dos problemas da Justiça brasileira e das mudanças que ela está a exigir, me fez vê-lo como um exemplo de magistrado e de cidadão.

Seja pé-duro ou puro-sangue, se dá coice e relincha, é um cavalo ou uma égua


Estudante nos melhores colégios do Rio de Janeiro, morador no front side de Ipanema e bem endereçado também em Nova York, Nelsinho, como é chamado, Motta é um sujeito educado. Ou pensava-se que era. Deveria ser um democrata. Há dúvidas, infelizmente, quanto a isso também. Pesquisa e apura antes de escrever o que bem deseja. No caso presente, não o fez.
Sem, aparentemente, saber ao certo do que se trata www.brasil247.com.br, ele estabeleceu em texto recente, exercitando-se como analista político, que os leitores que enviam milhares de comentários minuto a minuto, vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana para o jornal eletrônico são as "mesmas pessoas, escondidas sob nomes diferentes". Pessoas, que dão "coices" e produzem "relinchos". Membros de uma "mesma seita".
O propósito de Nelsinho, no artigo para o Estadão, era prestar solidariedade a Ferreira Gullar, pelos comentários enviados ao 247 em razão do mais recente artigo dele no jornal Folha de S. Paulo, no qual criticava o ex-presidente Lula.
Pelo poeta, Nelsinho mostrou-se muito mais um cômico de nariz redondo e vermelho, não fosse o preconceito de classe e o contrabando ideológico embutidos, a sério, em sua posição. Mais do que para rir, o texto aquele é para lamentar.

Ferreira Gullar: uma pedra angullar do vira-cassaquismo


Até onde consigo compreender o quadro político brasileiro, percebo que nos aproximamos de uma mudança importante. É como se acabasse uma fase e começasse outra. Aliás, já tentei formular essa minha suposição quando escrevi que a geração ideológica, que lutou contra a ditadura militar, já cumpriu seu papel, e agora dará lugar a uma outra, posterior àquele conflito.
Não sou cientista político nem pretendo estar dizendo algo incontestável. No entanto, parece-me evidente que se inicia um novo período, com outros protagonistas. É claro que essas coisas não se dão com óbvia clareza nem como um corte abrupto, que assinale o fim de uma etapa e o início de outra. Mas a nova etapa já se insinua.
Em artigo aqui publicado há algum tempo, arrisquei afirmar que PT e PSDB –os dois partidos que, no apagar das luzes da ditadura militar, surgiram como oposição clara à política do regime– já cumpriram seu papel: o PSDB, com o governo Fernando Henrique Cardoso, e o PT, com o de Luiz Inácio Lula da Silva. O primeiro ajustou a economia e criou as condições para a manutenção do regime democrático; o segundo, embora tenha se oposto àquelas medidas, entendeu que o caminho certo era aquele e deu prosseguimento ao que havia sido implantado.
Se o PSDB chegou primeiro ao governo do país, foi porque sua atitude moderada atendia à visão da maioria do eleitorado. Lula, por seu radicalismo, sofreu três derrotas consecutivas e, em face disso, impôs a seu partido a moderação necessária na campanha política de 2002. Com isso, ganhou as eleições e assumiu a Presidência da República.
No governo, decidido a nele ficar para sempre, evitou a aliança com o PMDB, para não dividir com ele o poder, e comprou os deputados de partidos menores, aos quais ditava suas decisões. Como não teria cabimento impor ao país as medidas esquerdistas inviáveis, optou pelo populismo, ou neopopulismo, no estilo de Hugo Chávez.
E como esse, tentou mudar a Constituição, a fim de candidatar-se ao terceiro mandato, mas a pesquisa que encomendou com esse propósito o fez desistir da ideia. Elegeu Dilma Rousseff, que foi uma invenção sua, já que ela jamais disputara qualquer eleição.
O escândalo do mensalão tirou da jogada algumas das figuras mais destacadas do petismo, o que complicou, para Lula, escolher um candidato que lhe garantisse o poder. Por isso, escolheu Dilma como sua substituta eventual, o que torna particularmente inevitável o encerramento dessa etapa pós-ditadura.
Mesmo que a saúde de Lula o garanta, dificilmente voltará ao poder. Sem falar na delação premiada de Marcos Valério, que o apontaria como o verdadeiro chefe do mensalão. Dilma, por sua vez, após o segundo mandato, se houver, terá que se retirar de cena, uma vez que não tem muita vocação para líder.
Por sua vez, Fernando Henrique Cardoso, que prolongara seu governo com a reeleição em 1998, tentou passar o bastão a José Serra e depois a Geraldo Alckmin, que foram derrotados seguidamente por Lula. Na referida crônica em que tratei desse tema, afirmei que José Serra não teria chance de chegar à Presidência da República. Como se viu, não pôde chegar sequer à Prefeitura de São Paulo. Com isso, encerrou-se a possibilidade de o PSDB voltar à Presidência da República.
Assim, daquela geração ideológica, resta Dilma Rousseff, que certamente tentará reeleger-se em 2014. Quer ganhe, quer perca, com isso se encerrará a etapa dessa geração no governo do país.
É impossível determinar em que momento exato isso se consumará, mas parece evidente que novas lideranças políticas começam a se impor no cenário nacional, como Eduardo Campos, Aécio Neves, Sérgio Cabral Filho e Eduardo Paes.
Eles constituem uma geração não ideológica, caracterizada, por isso mesmo, pelo pragmatismo político, como se evidencia em suas respectivas atuações como governantes. A fase da ideologia passou.
É por perceber isso que Lula se preocupa, hoje, em dar força à candidatura de novas figuras do seu partido, com o propósito de não deixar que o lulismo termine com a sua morte e a aposentadoria de Dilma.
A dificuldade reside não apenas no pouco carisma dos candidatos que inventou, mas sobretudo na inconsistência da proposta petista, que só se manteve até aqui graças ao carisma do próprio Lula.

A arte do nosso tempo


Uma leitura possível da história das artes visuais --de que resultaram as manifestações contemporâneas-- identificará a invenção da fotografia como um fator decisivo desse processo.

A crítica, de modo geral, há muito associa ao surgimento da fotografia a mudança da linguagem pictórica, de que resultou o movimento impressionista.

É uma observação pertinente, desde que se tenha o cuidado de não simplificar as coisas, ou seja, não desconhecer a existência de outros fatores que também influíram nessa mudança. Um desses fatores foi a descoberta da cor como resultante da vibração da luz sobre a superfície das coisas.

Noutras palavras, o surgimento do impressionismo --que constituiu uma ruptura radical com a concepção pictórica da época-- estava latente na pintura de alguns artistas de então, como, por exemplo, Eugène Delacroix e Édouard Manet, que já anunciavam a superação de certos valores estéticos em vigor. Não resta dúvida, no entanto, que a invenção da fotografia, por tornar possível a fixação da imagem real com total fidelidade, impunha o abandono do propósito de conceber a pintura como imitação da realidade.

Se tal fato não determinou, por si só, a revolução impressionista, sem dúvida alguma libertou a pintura da tendência a copiar as formas do mundo real e, assim, deixou o pintor livre para inventar o que pintava.

Pretendo dizer com isso que, se a cópia da realidade, pela pintura, se tornara sem propósito, isso não implicaria automaticamente em pintar como o fez Monet, ao realizar a tela "Impression, Soleil Levant", que deu origem ao impressionismo. Poderia ter seguido outro rumo.

Mas, se o que nasceu naquelas circunstâncias foi a pintura impressionista, houve razões para que isso ocorresse. E essas razões, tanto estavam implícitas na potencialidade da linguagem pictórica daquele momento, como no talento de Monet, na sua personalidade criadora. É que assim são as coisas, na vida como na arte: fruto das probabilidades que se tornam ou não necessárias.

A verdade, porém, é que, se não houvesse surgido uma maneira de captar as imagens do real de modo fiel e mecânico, o futuro da pintura (e das artes visuais em geral) teria sido outro. A pintura, então, livre da imitação da natureza, ganha autonomia: o pintor então podia usar de seus recursos expressivos para inventar o quadro conforme o desejasse e pudesse.

Como consequência disso, não muito depois, nasceram as vanguardas artísticas do século 20: o cubismo, o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo --todos eles descomprometidos com a imitação da realidade.

Mas essa desvinculação com o mundo objetivo terá consequências: a liberdade sem limites levará, de uma maneira ou de outra, à desintegração da linguagem artística, particularmente a da pintura.

Os dadaístas chegam a realizar quadros mais determinados pelo acaso do que por alguma qualquer intenção deliberada do autor. E se a arte podia ser fruto de tamanha gratuidade, não teria mais sentido pintar nem esculpir. O urinol de Marcel Duchamp é resultado disso. Por essa razão, ele afirmou: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Ou seja, tudo é arte. Ou seja, nada é arte.

Por outro lado, a fotografia, que nasceu como retrato do real, foi se afastando dessa condição e, como a pintura, passou também a inventá-lo. Por outro lado, ela ganhou movimento e se transformou em cinema, que tem como principal conquista a criação de uma linguagem própria, totalmente distinta da de todas as outras artes.

Cabe aqui uma observação: a pintura não apenas fazia o retrato das pessoas, como também mostrava cenas da vida, como as ceias, os encontros na alcova, as batalhas, os idílios etc.

Quanto a isso, mais que a fotografia, o cinema criou, com sua linguagem narrativa, um mundo ficcional, que nenhuma outra arte --e tampouco a pintura-- é capaz de nos oferecer. A meu ver, o cinema, superando o artesanato, é a grande arte tecnológica, que criou uma linguagem própria --condição essencial para que algo seja considerado arte--, geradora de um universo imaginário inconfundível, de possibilidades inesgotáveis, sofisticado e ao mesmo tempo popular. O cinema é, sem dúvida, a arte de nosso tempo.
Ferreira Gullar

Coluna semanal de Ferreira Gullar


Ah, ser somente o presente
Muito embora alguns de meus poemas falem do passado, viver no passado ou tê-lo presente no meu dia a dia não me agrada. Na verdade, todos nós somos o que vivemos e, de certo modo, o passado constitui também o nosso presente, quer o lembremos ou não.
Mas, precisamente porque somos os vivemos, trazemos conosco lembranças muitas vezes dolorosas, que de repente emergem no presente. Disso creio que ninguém gosta, à exceção dos masoquistas.
Para falar com franqueza, confesso que sofrer não é a minha vocação, embora nem sempre consiga escapar do sofrimento. Se puder, escapo. Creio mesmo que a vocação do ser humano (de todo ser vivo?) é a felicidade.
Isso é o que todos buscamos, na comida que saboreamos, na bebida que sorvemos, nos momentos de amor, no carinho, na amizade, e na alegria de fazer o outro feliz.

Sofrer, não. Só quando não tem jeito e a lembrança do passado é quase sempre sofrimento: ou porque voltamos a sentir a dor de outrora ou porque relembrando a felicidade que houve e se foi para nunca mais.

Por isso foi que, em certa manha, ao entrar na sala, vindo do quarto de dormir, deparei-me com o sol matinal que a invadia. Senti feliz como nunca. Nenhum passado, nenhuma lembrança. Eu era ali, então, um bicho transparente, mergulhado na luz matinal. E escrevi estes versos: "Ah, ser somente o presente, esta manhã, esta sala". Essa é uma aspiração certamente impossível de realizar mas a poesia é, entre outras coisas, viver, com a ajuda da palavra, o impossível, já que aspirar apenas ao possível não tem graça. Pois bem, houve gente que leu esses versos e não apenas gostou deles como concordou com aquela aspiração irrealizável. Essa de que o passado já era. Mas eis que estou caminhando pela avenida Atlântica, quando vem a meu encontro um senhor de óculos, barba e cabelos quase inteiramente brancos. "Gullar, meu querido, quantos anos faz que a gente não se vê! Lembra daquele dia, na Redação da Manchete, quando o Adolfo Bloch só faltou te agredir?" "Me agredir, é?" Falei por falar, já que não sabia quem era aquele sujeito que me abordara assim de repente.
E ele continuou: "Você tinha aparecido na televisão, de barba por fazer e sem gravata, falando em nome da revista, o que deixou o Adolfo furioso", disse ele e acrescentou: "Mas acho que você não está me reconhecendo... Eu sou o Hélio, o fotógrafo." Só então me lembrei dele. Tínhamos sido amigos e não fui capaz de reconhecê-lo.
"Você pegou um cinzeiro, ia bater com ele na cara do Adolfo e fui eu que te arrastei para fora da redação, lembra?" 
A verdade é que nunca fui muito bom de memória. Quando voltei do exílio, uma atriz famosa e linda, companheira na luta contra a ditadura, desceu no carro no meio da rua, em Ipanema, para vir me abraçar.

Dois meses depois, estou lançando um livro e ela para em minha frente para que eu lhe autografe o livro e o nome dela some de minha mente. Entro em pânico. Não poderia perguntar-lhe o nome depois daquele abraço efusivo em plena rua. A solução que encontrei foi me levantar, sair da livraria, atravessar correndo a rua, entrar no boteco em frente, perguntar à Teresa o nome da atriz e voltar.
Sentei-me de novo, ela me olhou sem entender nada. Escrevo, então, no livro: "Para Norma Benguel...". 
Com o passar dos anos, a coisa foi ficando pior. Outro dia, combinei com a Cláudia que iríamos ao cinema. Escolhi o filme, marquei para nos encontrarmos lá mesmo, cheguei antes, comprei as entradas (uma inteira e uma meia, que eu sou idoso) mas, quando o filme começou, ela falou revoltada: "Você ficou maluco? Esse filme nós já vimos!". E eu: "Você está brincando". "Eu, brincando! Você é que está maluco! Não faz nem um mês que vimos este filme!"

Realmente, depois de alguns minutos, constatei que realmente já o havíamos visto. Assim está minha memória: tudo o que vejo, leio, ouço ou faço, logo esqueço. Não tenho mais passado. Aquilo que escrevi no poema virou verdade: tornei-me apenas o presente, esta manhã, esta sala.

A literatura como farsa

E a ironia do sr. Ferreira que ele a envie ao ator Reinaldo Geanecchini - que de maneira simples mostrou a diferença entre ser e estar. Ser feliz é uma coisa. Estar alegre ou triste é outra coisa. Eu sou Feliz! Estar triste ou alegre é apenas um momento. Digo isso desde que me conheço por gente -.  Abaixo transcrevo a parte final da ironia que o grande intelectual e irônico Gullar fez com pequeno e idiota Lula da Silva.

Mas que um fato muito grave atinge o cerne vital desse sistema de poder: a descoberta de um câncer na laringe de Lula. O país inteiro se assustou, claro. É verdade que hoje muitos tipos de câncer são curáveis mas, apesar disso, constatar que alguém está com um tumor maligno não é propriamente uma boa notícia.

É o que todo mundo pensa. Não obstante, parece que, no caso de Lula, é diferente. Da equipe médica à presidente Dilma e o ministro Mantega, todos afirmam sorridentes, que Lula está ótimo, alegre, mais bem disposto que nunca. Até hoje, não tinha visto um diagnóstico de câncer ser tão bem recebido. Parece até que Lula acaba de ganhar o grande prêmio da loteria.

A política como farsa

Todos sabemos que a sinceridade não é uma qualidade muito comum nos políticos, mesmo porque, se o candidato disser francamente o que pensa, provocará mais desagrado que agrado. Pelo sim, pelo não, prefere dourar a pílula. Mas isso não significa que a política seja, como há quem afirme, a arte de enganar os ingênuos. Se até Deus, segundo dizem, se vê obrigado a escrever certo por linhas tortas, imaginem um pobre mortal.

Mas, sem dúvida, há os que exageram, e eu incluo entre estes - sem lhe dar exclusividade - o pessoal do Lula. Se antes de chegar ao governo, era contra tudo o que qualquer outro partido propunha - chegando ao ponto de se negar a assinar a Constituição de 1989 - chamada por Ulisses Guimarães de "Constituição cidadã" - que veio restaurar a democracia no Brasil. E só para ser do contra, aliás, não só: também para fazer de conta que era o verdadeiro defensor dos direitos do povo.

Essa mesma postura, de quem joga para a arquibancada, levou os petistas a denunciar os programas bolsa escola e bolsa alimentação, do governo Fernando Henrique, como uma espécie de esmola que humilhava os trabalhadores e os pobres em geral. Quando chegaram ao poder, fundiram os dois programas num só - o bolsa família - e deles se apropriaram. Podiam admitir que haviam errado mas, pelo contrário, fingem que era uma criação original sua. Do mesmo modo agiram com relação ao Plano Real, à Lei de Responsabilidade Fiscal e a tudo o mais que combateram e passaram a usar, como se os tivessem criado. Claro que quem assim age tem que estar mal na roupa, sempre tendo que fazer de contas, já que tem o rabo preso.

Confesso que até bem pouco tempo não tinha visto as coisas por esse ângulo, embora me chamasse a atenção o modo como se comportavam os membros do governo Lula. Guido Mantega, por exemplo, jamais fala como deveria falar um ministro de Estado. Pelo contrário, todo pronunciamento seu é sempre um autoelogio, exaltação à política econômica do governo, às vezes até afirmando, cabotinamente, ser ela superior à de todo e qualquer país do mundo.

Nessa mesma linha foi o lamentável pronunciamento da presidente Dilma, em viagem recente pelo exterior. Sem o devido respeito que um chefe de governo deve ter com os de outros países, criticou-lhes a política econômica e os aconselhou a aprender conosco a governar... Na verdade, mais uma vez jogava para a plateia, visando levar a opinião pública brasileira a orgulhar-se do governo petista, incomparável e único no mundo.

É atitude própria aos "salvadores da pátria" que, em nossa época, após a queda do muro de Berlim, empurrou parte da esquerda latino-americana - a menos democrática - para uma espécie de neo populismo que, não por acaso, alcança os limites da enganação. E não poderia ser de outro modo, uma vez que está obrigada a representar uma farsa: fazer-se de anticapitalista quando, na verdade, o favorece; fazer-se de democrático, quando, de fato, não aceita a alternância no poder e abomina a liberdade de imprensa.

Como esse é o espírito do governo petista, todos os seus integrantes dançam ao som da mesma música, obedecendo à batuta do maestro. Exemplo disso foi a posse do novo ministro do Esporte, que substituiu Orlando Silva, demitido por suspeita de corrupção, como atesta o processo aberto contra ele pelo STF. Para surpresa de todos, esse ato se transformou numa exaltação ao ministro demitido, que foi elogiado por Dilma e aplaudido de pé pelos presentes. Uma comédia.

Mas que um fato muito grave atinge o cerne vital desse sistema de poder: a descoberta de um câncer na laringe de Lula. O país inteiro se assustou, claro. É verdade que hoje muitos tipos de câncer são curáveis mas, apesar disso, constatar que alguém está com um tumor maligno não é propriamente uma boa notícia.

É o que todo mundo pensa. Não obstante, parece que, no caso de Lula, é diferente. Da equipe médica à presidente Dilma e o ministro Mantega, todos afirmam sorridentes, que Lula está ótimo, alegre, mais bem disposto que nunca. Até hoje, não tinha visto um diagnóstico de câncer ser tão bem recebido. Parece até que Lula acaba de ganhar o grande prêmio da loteria.

Ferreira Gullar

Crônica

Quando urubu está de azar...
Faz umas poucas semanas, ao receber do porteiro do prédio a correspondência chegada aquele dia, dei com um envelope da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e gelei. Gelei pressentindo alguma aporrinhação, porque, como se sabe, gato escaldado tem medo de água fria.

Nunca recebi qualquer correspondência vinda do governo - seja federal, estadual ou municipal - que me trouxesse uma boa notícia. O governo, quando me envia alguma mensagem, é para me intimar a prestar esclarecimento sobre a declaração do imposto de renda e coisas semelhantes. Nunca me manda cumprimentos pelos tantos anos em que estou no batente nem agradecendo a quantidade de impostos que recolho anualmente. Para me devolver o que foi cobrado a mais, isso nunca! Pelo contrário, por mais que pague, estou sempre devendo.

O governo - que teoricamente existe para me proteger e amparar - é de fato meu inimigo público número um.

E assim foi que, grilado de antemão, abri o envelope. Não deu outra: era o Departamento de Transportes da Prefeitura do Rio de Janeiro comunicando-me que eu tinha sido multado por dirigir falando ao celular. Sucede que eu não tenho celular, nunca tive e jamais terei.

E mais: quase nunca falo ao celular e jamais o fiz dentro do carro, ainda que estacionado. Falo ao telefone o menos que posso. Donde saiu então essa imputação absurda?

Não faço a menor ideia. E ela não é absurda apenas porque não uso esse tipo de telefone: mesmo que o usasse, o guarda de trânsito não me poderia ver porque os vidros do carro não o permitiriam, são escuros, protegidos com insufilme. Desconfio que esse guardinha amigo estava maconhado.

O certo, porém, é que, maconhado ou não, estava a serviço de uma espécie de azar que, nesse particular, me persegue. Não foi esta a primeira vez que a maconha ou o acaso me escolhem para vítima. Talvez o leitor já tenha ouvido falar que, durante a ditadura, fui para o exílio. Pois é, fui acusado de ações subversivas contra o regime militar. Pois bem, não digo que essa acusação fosse falsa, e tanto não era que decidi cair fora antes que o DOI-Codi me pegasse.

Não vou contar aqui o que passei, mudando de país conforme as circunstâncias e as ameaças. Em resumo, comi o pão que o Diabo amassou, mas, um dia, consegui voltar para casa. Passei por alguns percalços ao regressar, mas pouco depois estava com minha família e, no Luna Bar, com meus amigos. Fui então aconselhado, por um advogado amigo, a solicitar ao Superior Tribunal Militar, cópia da decisão me havia absolvido e levei um susto: o cara, que os milicos procuravam e contra o qual iniciaram aquele processo por subversão era José de Ribamar como eu, mas não era eu. Ou seja, o José de Ribamar que pagou o pato fui eu, mas o absolvido foi outro.

Por isso rezo todos os dias para que os militares não voltem ao poder, pois do contrário vou ter que me mandar de novo não sei para onde. Bem, isso é pouco provável que aconteça, mas, em compensação, sempre haverá um guarda de trânsito para me acusar do que não fiz.

Foi assim que, como disse no início da crônica, abri a carta do Departamento de Transportes da Prefeitura, que me acusava de dirigir meu carro falando ao celular. Minha primeira reação foi de espanto e revolta, mas verifiquei que, junto com a acusação, havia informações do que deveria eu fazer, caso decidisse recorrer da multa que me havia sido imposta.

Aquilo me deixou mais revoltado ainda: para escapar da acusação infundada, terei eu que entrar com dois processos no tal famigerado Departamento de Transportes e tentar provar que sou inocente.

Provar inocência?! Mal consigo acreditar. Alguém precisa dizer a esse pessoal uma coisa que todo mundo sabe, isto é, que o ônus da prova cabe a quem acusa e não a quem é acusado. Não é esse o argumento que estão usando para dispensar o Palocci de explicar donde veio sua súbita fortuna? Quer dizer que o que vale para gente do governo não vale para nós? A nossa Constituição diz que todo cidadão é inocente até que sua culpa seja comprovada. Não obstante, parece que, para o Departamento de Transporte da Prefeitura do Rio de Janeiro, a Constituição não vale: é o acusado que deve provar sua inocência.

Diante disso, o que faço? Me exilo de novo?
Ferreira Gullar