Não quero ter razão
Não resta duvida de que tenho muitos defeitos, mas se há uma coisa que não sou é ressentido. Aliás, não só não sou como acho bobagem ser, porque o ressentido fica sofrendo, com raiva do outro que já nem pensa nele. Ou seja, o ressentido é, no fundo, um masoquista, sofre porque gosta de sofrer.
Mas é claro que não é só por pensar desse modo que não me deixo levar pelos ressentimentos; é meu jeito apenas, não tenho vocação para ficar remoendo mágoas.
Não obstante, de vez em quando, alguém quando me entrevista entende mal o que digo e passa ao leitor a ideia de que odeio artistas contemporâneos e não esqueço a discordância com o grupo concretista de São Paulo, ocorrida há mais de 50 anos, e vai por aí. E, veja bem, esse desentendimento ocorreu há mais de 50 anos, em torno de questões de que ninguém mais se lembra.
Pois bem, é o cara que, no curso da entrevista, puxa esse assunto porque deseja por um pouco de pimenta na conversa. Respondo a suas perguntas e ele, quando escreve o que eu disse, imprime a minhas palavras um tom exacerbado que foi ele que inventou.
Se eu não me ressinto da ofensa que alguém me tenha feito há uma semana, vou estar furioso com um fato ocorrido há meio século? Só se eu fosse doente mental.
Mas a vida é assim mesmo, tem de tudo. Confesso que até já me habituei a esse tipo de desconsideração e, se agora a isso me refiro, é porque uma amiga me telefonou irritada com a tal entrevista e surpresa com o tom das frases a mim atribuídas. Tratei de tranquilizá-la, dizendo-lhe que continuo o mesmo cara bem humorado que não se enfurece à toa, muito menos com esse tipo de assunto.
Sucede, porém, que o tal entrevistador não se limitou à ruptura com os concretistas, não; procurou retratar-me como um inimigo dos artistas contemporâneos, alterando o que costumo afirmar.
Enfim, para quem não me conhece, a imagem que fica é a de um velho ultrapassado, contra tudo o que é novo. Ainda mais agora, quando acabo de entrar para a Academia Brasileira de Letras.
Com isso, claro, deixo um flanco aberto. Mas pouco me importa o que pensam pessoas sem isenção. Nunca pretendi ser uma unanimidade nem me considero acima de qualquer crítica. Errar, errei muito; a diferença talvez esteja no fato de que costumo reconhecer meu erro, quando é o caso, e trato de buscar o caminho certo. E posso errar de novo, claro. Mas que fazer? Por isso, afirmei certa vez: não quero ter razão, quero ser feliz.
No entanto, embora não pretenda ter sempre razão, não abdico do direito de opinar. Por exemplo, acho que o que se chama hoje de arte contemporânea nem sempre pode ser considerado arte. Certamente, todo mundo tem o direito de fazer o que deseja fazer, só que não sou obrigado a gostar do que fazem.
Por exemplo (como citou o tal repórter), enviar urubus numa gaiola para a Bienal, como se fosse obra de arte, pode ser, no máximo, uma piada. Não obstante, acho que o cara tem o direito de fazê-lo e eu, o direito de achar que não é arte.
Mas não o faço zangado, embora me diga respeito, já que dediquei grande parte de meu tempo a ler e refletir sobre arte.
Admito, mesmo que às vezes o faça de gozação, tal o disparate que tais coisas implicam. Acrescente-se que o surrealismo e o dadaísmo fazem parte de minha formação, e Breton e seus companheiros me ensinaram que o humor e a irreverência são parte da criação artística.
Se quer saber o que penso de tais manifestações, lhe digo: o cara está dizendo que a arte acabou, que tanto faz pintar um quadro como mandar urubus para uma exposição. Só que esse tipo de atitude antiarte é coisa velha, uma vez que o tal urinol de Marcel Duchamp, que foi a primeira manifestação desse tipo, completará um século daqui a três anos.
Não é por acaso que as bienais estão morrendo, como a atual Bienal de São Paulo, cuja visitação é uma melancólica perda de tempo.
Enquanto isso, os artistas de verdade continuam criando obras de arte, obras que não têm que ser obrigatoriamente pintura, escultura ou gravura. Pode ser, por exemplo, uma instalação, mas deve mostrar criatividade e comover as pessoas.