Faltavam apenas quatro dias para que a denúncia que levaria o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à prisão fosse apresentada, mas o coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba tinha dúvidas sobre a solidez da história que contaria ao juiz Sergio Moro. A apreensão de Deltan Dallagnol, que, junto com outros 13 procuradores, revirava a vida do ex-presidente havia quase um ano, não se devia a uma questão banal. Ele estava inseguro justamente sobre o ponto central da acusação que seria assinada por ele e seus colegas: que Lula havia recebido de presente um apartamento triplex na praia do Guarujá após favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras.
No dia 9 de setembro de 2016, precisamente às 21h36 daquela sexta-feira, Deltan Dallagnol enviou uma mensagem a um grupo batizado de Incendiários ROJ, formado pelos procuradores que trabalhavam no caso.
Ele digitou: “Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram to com receio da história do apto… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua”.
As matérias de jornais a que o procurador se referiu são as dezenas citadas na peça de acusação. Dallagnol fazia sua última leitura da denúncia e debatia o texto com o grupo, analisando ponto a ponto cada item que seria oferecido à 13ª vara de Curitiba, onde Sergio Moro atuava como juiz.
Naquele dia, ninguém respondeu à dúvida de Dallagnol: se o apartamento triplex poderia ser apontado como propina para Lula nos casos de corrupção na Petrobras. O documento seria anunciado ao público, com direito a um
hoje famoso PowerPoint, dali a poucos dias.
Sem essa ligação, o caso não poderia ser tocado em Curitiba, onde apenas ações relacionadas à empresa eram objeto de investigação. A ligação do apartamento com a corrupção na petrolífera tinha gerado uma guerra jurídica nos primeiros meses daquele 2016. De um lado, o Ministério Público do Estado de São Paulo. Do outro, a força-tarefa de Curitiba.
Caso o caso ficasse em São Paulo, não seria julgado por Sergio Moro, o atual ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e ex-juiz que ajudou coordenar a operação quando era o encarregado pela 13ª Vara Federal de Curitiba, como mostram diálogos revelados pelo Intercept.
O MPSP já investigava o caso
Bancoop muito antes de Curitiba. Em uma disputa que envolveu até mesmo o Supremo Tribunal Federal, a Lava Jato tentava tirar o caso das mãos dos paulistas para denunciar e julgar Lula em Curitiba. Para isso, o imóvel de Lula precisaria obrigatoriamente ter relação com a corrupção na Petrobras.
Não era o entendimento dos promotores de São Paulo. Em março de 2016, ao recorrerem de uma decisão judicial que jogava o caso nas mãos de Dallagnol, eles
disseram: “Em 2009/2010 não se falava de escândalo na Petrobras. Em 2005 quando o casal presidencial, em tese, começou a pagar pela cota-parte do imóvel, não havia qualquer indicação do escândalo do ‘petrolão’. Ao contrário, estávamos no período temporal referente ao escândalo do ‘mensalão’. Não é possível presumir genericamente e sem conhecer detidamente as investigações que tramitam perante a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba que tudo tenha partido de corrupção na estatal envolvendo desvio de recursos federais.”
Mas a Lava Jato venceu e, pouco tempo depois, os procuradores conseguiram tirar o caso de São Paulo alegando que o caso do triplex tinha, sim, envolvimento com a Petrobras. Agora, com a revelação das conversas secretas do grupo da Lava Jato, descobre-se que os procuradores blefaram – eles não tinham certeza dessa relação nem mesmo poucas horas antes de apresentarem a denúncia.
E, assim, o caso parou no colo do aliado Sergio Moro.
‘TESÃO DEMAIS ESSA MATÉRIA. VOU DAR UM BEIJO EM QUEM ACHOU’
Foto: Suamy Beydoun / AGIF (via AP)
CERCA DE 24 HORAS DEPOIS, no sábado, 10, quando aparentemente chegou ao item 191 do documento (que teria, em sua redação final, 274 itens), Dallagnol vibrou com o que leu. Ele escreveu, às 22h45: “tesao demais essa matéria do O GLOBO de 2010. Vou dar um beijo em quem de Vcs achou isso.” A reportagem a qual ele se referia – “
Caso Bancoop: triplex do casal Lula está atrasado” – foi a primeira a tratar do apartamento no Guarujá, muito antes da Lava Jato. Sem mencionar OAS ou Petrobras, ela dizia apenas que a falência da cooperativa que construía o prédio poderia prejudicar o casal Lula.
Seguiu-se então uma série de mensagens de Dallagnol a respeito da reportagem:
Deltan Dallagnol – 23:05:11 – Sabemos qual a fonte da matéria? Será que não vale perguntar para a repórter, a Tatiana Farah, qual foi a vonte dela? [O procurador certamente quis escrever “fonte”]
23:05:29 – Acho que vale. Informalmente e, se ela topar, dá para ouvi-la.
23:05:58 – Pq se ele já era dono em 2010 do triplex… a reportagem é um tesão, mas se convertermos em testemunho pode ser melhor
23:06:08 – Podemos fazer contato via SECOM, topam?
23:06:27 – vou pedir pra ascom o contato
No mesmo minuto, Dallagnol foi a outro chat no Telegram em que além dele estavam apenas os dois assessores de imprensa da operação em Curitiba. “Consegguem pra mim o contato da reporter que fez esta matéria?”, ele teclou. “pede celular, please… precisamos meio que urgente”, insistiu, às 23h55, sem perceber que um dos assessores já enviara o número da jornalista.
Mesmo antes de ter o telefone, no entanto, Dallagnol já parecia aliviado quando retornou ao grupo Incendiários ROJ, em que postou às 23h08: “Vcs não têm mais a mesma preocupacção que tinham quanto ao imóvel, certo? Pergunto pq estou achando top e não estou com aquela preocupação. Acho que o slide do apto tem que ser didático tb. Imagino o mesmo do lula, balões ao redor do balão central, ou seja, evidências ao redor da hipótese de que ele era o dono”, já sugerindo a ideia para o PowerPoint que apresentaria aos jornalistas dali a alguns dias.
Foto: Reprodução/MPF
Quando voltou ao grupo com os assessores e viu que o número de telefone havia sido enviado, ele imediatamente encaminhou o contato aos procuradores Roberson Pozzobon e Júlio Noronha, junto com um pedido e algumas orientações:
Deltan Dallagnol – 23:56:11 – Vcs ligam pra ela?
23:57:24 – Na ligação tem que ser totalmente respeitoso e deferencial em relação ao sigilo de fonte
23:58:14 – Tem que dizer que viram, queriam parabenizar pela matéria, e que, respeitado o dto de fonte, caso não seja o casso de manter o sigilo, se ela poderia indicar quem foi a fonte, ainda que ap´so eventual conferência ou conversa com as fontes…
Pelo diálogo no grupo Incendiários ROJ, não é possível saber se Pozzobon ou Noronha fizeram o que lhes foi pedido. Mas a reportagem seria mencionada ainda outra vez nas conversas privadas, agora a dois dias da entrevista em que a denúncia contra Lula seria apresentada.
No dia seguinte, véspera da denúncia, foi a vez do procurador Januário Paludo se lembrar da matéria do Globo num outro chat, intitulado Filhos do Januário 1:
“Conversei com a TATIANA FARAH DE MELLO, que fez a reportagem em 2010 sobre o TRIPLEX. Ela realmente confirmou que foi para GUARUJA e lá colheu diversas informações sobre os empreendimentos da BANCOOP. A matéria era para ser sobre a BANCOOP e o calote dado nos
mutuários. Em guaruja conversando com funcionários da obra – que ainda estava no esqueleto, é que ela descobriu que o triplex seria do Lula. Ela manteve contato com a Assessoria de comunicação do Palácio do Planalto que confirmou a informação. Toda parte documental, como e-mail e outros dados foram inutilizados quando ela saiu do ‘o Globo’. Acho que podemos tomar por termo o depoimento. Marco uma video e pronto”, escreveu o procurador às 17h40.
“Boooooa demais Jan!”, respondeu imediatamente Pozzobon. Mas outro procurador, Carlos Fernando dos Santos Lima, pediu prudência: “Creio que tomar depoimento de jornalista não é conveniente.”
OS PROBLEMAS DA PROVA QUE MORO CHAMOU DE ‘BASTANTE RELEVANTE’
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Mas a reportagem não bate com ao menos dois pontos do que é dito na denúncia do MPF. O texto do Globo atribui o triplex a Lula e, para comprovar isso, usa a declaração do então candidato à reeleição apresentada à Justiça Eleitoral em 2006. Ela afirma o seguinte: “Participação Cooperativa Habitacional Apartamento em construção no Guarujá – SP Maio 2005 – R$ 47.695,38 já pagos”. Em tese, a cota poderia ser usada para qualquer apartamento – a defesa de Lula alegaria mais tarde que se tratava de uma unidade simples. O que é certo é que a palavra triplex não aparece na lista de bens do político usada pelo Globo.
A segunda inconsistência poderia ter sido percebida pelos procuradores com uma leitura atenta da própria reportagem. A matéria do Globo atribuiu a Lula a propriedade de um triplex na torre B, o prédio dos fundos do condomínio. Isso fica claro na matéria: “A segunda torre (a torre A), se construída como informa a planta do empreendimento, lançado no início dos anos 2000, pode acabar com parte da alegria de Lula: o prédio ficará na frente do imóvel do presidente, atrapalhando a vista para o mar do Guarujá, cidade do litoral paulista.”
A Lava Jato usou a reportagem como prova de que o apartamento era, sim, uma propriedade ou uma aspiração da família presidencial, mas indicou outro imóvel na denúncia.
Na denúncia feita pela Lava Jato, no entanto, os procuradores afirmam que o triplex de Lula fica na torre A, que ainda não existia quando a reportagem foi publicada. Mas, no item 191 da denúncia assinada pelos 14 procuradores, há o seguinte trecho (citando a reportagem do Globo): “Essa matéria dava conta de que o então Presidente LULA e MARISA LETÍCIA seriam contemplados com uma cobertura triplex, com vista para o mar, no referido empreendimento”.
Segundo a apuração do jornal, isso não é verdade. A reportagem diz claramente que o casal Lula da Silva perderia a vista para o mar com a construção da torre A, que seria erguida à frente da torre B, portanto, em frente ao triplex que o Globo atribuiu a Lula.
A Lava Jato usou a reportagem como prova de que o apartamento era, sim, uma propriedade ou uma aspiração da família presidencial, mas indicou outro imóvel na denúncia. Uma evidência de que a investigação foi imprecisa num dos pontos mais cruciais da acusação: na definição do imóvel que materializaria a propina que Lula teria recebido da empreiteira.
Ao longo de semanas, nós tentamos contatos com fontes que poderiam ter acesso à troca de e-mails entre a assessoria do petista e a repórter do jornal, mas não obtivemos sucesso. Enquanto o Globo alega que os e-mails foram “inutilizados”, a assessoria diz não ter guardado cópia. Uma terceira dúvida, portanto, ainda permanece: a reportagem diz que Lula era dono de um triplex no prédio, mas diz que a assessoria da Presidência confirmou que o petista tinha um “imóvel” no local.
O que é verdade: a cota estava declarada em seu imposto de renda. Sem os e-mails, não há como saber se o Globo inquiriu Lula sobre o triplex ou apenas sobre um imóvel, ou se a assessoria do petista tomou uma coisa por outra – e, sem querer, abasteceu a denúncia que viria contra Lula anos depois.
Ainda que a localização do triplex na torre A ou B pareça irrelevante para a acusação por lavagem de dinheiro, ela deveria ao menos colocar em dúvida o valor de prova da reportagem, mencionada por Moro como um dos argumentos para a condenação de Lula.
‘A DENÚNCIA É BASEADA EM MUITA PROVA INDIRETA DE AUTORIA, MAS NÃO CABERIA DIZER ISSO’
Fotos: Nelson Almeida/AFP/Getty Images
NA VÉSPERA DA DENÚNCIA, Dallagnol voltou ao celular e comentou mais uma vez sobre a peça de acusação, analisando a qualidade das provas que eles tinham em mãos. “A opinião pública é decisiva e é um caso construído com prova indireta e palavra de colaboradores contra um ícone que passou incolume pelo mensalão”, ele teclou no grupo Filhos do Januário 1.
No dia seguinte, quarta-feira 14, a Lava Jato mostraria sua primeira denúncia contra Lula, numa entrevista coletiva em uma sala de reuniões de um hotel de luxo em Curitiba. O triplex – segundo a Lava Jato, reformado pela OAS e doado ao político como propina em contratos da empreiteira com a Petrobras – era a peça central da denúncia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Dallagnol voltaria ao assunto numa conversa privada com o então juiz Sergio Moro, em 16 de setembro, dois dias após a denúncia. O procurador estava sendo duramente criticado por parte da opinião pública, que alegava fragilidade na denúncia. Tinha virado, também, alvo de chacotas e memes pelo PowerPoint que apresentou na entrevista coletiva.
O coordenador da Lava Jato escreveu a Moro: “A denúncia é baseada em muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na denúncia e na comunicação evitamos esse ponto.” Depois, entrou em detalhes técnicos: “Não foi compreendido que a longa exposição sobre o comando do esquema era necessária para imputar a corrupção para o ex-presidente. Muita gente não compreendeu porque colocamos ele como líder para
imperar 3,7MM de lavagem, quando não foi por isso, e sim para inputar 87MM de corrupção.”
Em privado, Dallagnol confirmava a Moro que a expressão usada para se referir a Lula durante a apresentação à imprensa (“líder máximo” do esquema de corrupção) era uma forma de vincular ao político os R$ 87 milhões pagos em propina pela OAS em contratos para obras em duas refinarias da Petrobras – uma acusação sem provas, ele mesmo admitiu, mas que era essencial para que o caso pudesse ser julgado por Moro em Curitiba.
Preocupado com a repercussão pública de seu trabalho – uma obsessão do procurador, como demonstra a leitura de diversas de suas conversas –, ele prossegue: “Ainda, como a prova é indireta, ‘juristas’ como Lenio Streck e Reinaldo Azevedo falam de falta de provas. Creio que isso vai passar só quando eventualmente a página for virada para a próxima fase, com o eventual recebimento da denúncia, em que talvez caiba, se entender pertinente no contexto da decisão, abordar esses pontos”, escreveu a Sergio Moro.
Dois dias depois, Moro afagaria o procurador: “Definitivamente, as críticas à exposição de vcs são desproporcionais. Siga firme.” Menos de um ano depois, o juiz condenaria Lula a nove anos e seis meses de prisão.
Ao contrário do que tem como regra, o Intercept não solicitou comentários de procuradores e outros envolvidos nas reportagens, para evitar que eles atuassem para impedir sua publicação e porque os documentos falam por si. Entramos em contato com as partes mencionadas imediatamente após publicarmos as matérias, que atualizaremos com os comentários assim que eles sejam recebidos.