Em uma entrevista concedida ao Sul21 em março de 2016, o advogado Werner Becker advertiu que o país estava vivendo então um clima muito parecido com o que antecedeu o do golpe de 1964, que derrubou o governo João Goulart. “Ouço gente dizendo que desta vez não vai ser assim. Em 64 também se dizia ‘desta vez não vai ser assim’”, afirmou na época. Quase dois anos depois, Werner Becker concedeu nova entrevista ao Sul21, lembrando o que disse em 2016: “Não quero ser profeta do acontecido, mas há dois anos, em uma entrevista que concedi para vocês, previ tudo isso que está acontecendo agora. E ainda vem muita coisa por aí”.
Nome histórico da resistência contra a ditadura, Werner Becker defendeu dezenas de presos políticos nos tribunais militares e militou pela redemocratização do Brasil. No último dia 24 de janeiro, ele assistiu todo o julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Tribunal Regional Federal da 4a. Região. E não gostou nada do que viu: “No dia 24 de janeiro tivemos uma sessão de “reality show” no TRF4, onde ficou bem estampada a farsa. Houve a montagem de um espetáculo, orquestrado com absoluta antecedência. Ouvindo todos os votos, como eu fiz questão de ouvir, fica muito clara a farsa e a hipocrisia”.
Citando Marx, o advogado diz que o julgamento foi mais um capítulo do golpe em curso no Brasil. “Estamos repetindo agora, como farsa, a tragédia de 64. Lula vai ser preso, Aécio fica no Senado e o Temer na presidência da República. Ainda vem mais coisa por aí. Lembre-se que, depois de 64, veio 68 e 69, veio o AI-5. Na época, ninguém achava que aconteceria o que aconteceu. Agora também ninguém achava que eles iriam fazer o impeachment da Dilma e deflagrar o golpe. Ninguém achava que iriam acabar prendendo o Lula. As elites brasileiras não permitem qualquer avanço social. O resultado está aí”.
“Para tentar corrigir seu ato falho, antecipando o voto da turma e, portanto, do vogal, ele (Paulsen) disse expressamente que estava usando o plural majestático”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
por Marco Weissheimer
Sul21: Qual sua avaliação sobre o julgamento do ex-presidente Lula no Tribunal Regional Federal da 4a. Região?
Werner Becker: Eu digo, em primeiro lugar, que o golpe prossegue. Estamos repetindo 1964. Lembro uma frase das mais conhecidas de Marx: a história acontece como drama e se repete como farsa. No dia 24 de janeiro tivemos uma sessão de “reality show” no TRF4, onde ficou bem estampada a farsa. Houve a montagem de um espetáculo, orquestrado com absoluta antecedência. Ouvindo todos os votos, como eu fiz questão de ouvir, fica muito clara a farsa e a hipocrisia. O desembargador Victor Laus, no último voto, diz que deixou de fazer o voto por escrito porque queria expungir dúvidas para tomar a sua decisão. Não é verdade. O revisor presidente já tinha antecipado o voto de toda a turma no seu voto.
Sul21: Está falando do desembargador Leandro Paulsen?
Werner Becker: Sua majestade Leandro Paulsen já tinha antecipado quando, no final de seu voto, falou em nome da turma, antecipando a condenação. Para tentar corrigir seu ato falho, antecipando o voto da turma e, portanto, do vogal, ele disse expressamente que estava usando o plural majestático. É ridículo se não fosse triste. O desembargador confundiu a cadeira de presidente com um trono e a toga com um manto real. Tenho cinqüenta anos de advocacia e nunca vi ninguém dizer que estava se expressando no plural majestático. É que o arbítrio vai crescendo e subindo para as cabeças e as pessoas do arbítrio começam a se sentir absolutamente impunes, como sua majestade, sentada na cadeira de presidente. Ele deixou de lado e desprezou as normas fundamentais mais conhecidas do Direito Processual Penal. Com uma arrogância majestática fez um relambório oral de platitudes recitadas com sisudez, no reality show que foi o julgamento. Outra pérola desse reality show foi proferida pelo desembargador Laus, para quem, se Lula está sendo julgado, alguma coisa ele fez.
O importante a destacar é que essa farsa que aconteceu no TRF4 é mais uma etapa do golpe. Ainda vem mais coisa por aí. Não quero ser profeta do acontecido, mas há dois anos, em uma entrevista que concedi para vocês, previ tudo isso que está acontecendo agora.
Sul21: Naquela ocasião, o senhor disse que estávamos vivendo um clima muito parecido com o do período que antecedeu o golpe de 64…
Werner Becker: Estamos repetindo agora, como farsa, a tragédia de 64. Lula vai ser preso, Aécio fica no Senado e o Temer na presidência da República.
Sul21: O senhor acha que Lula será preso?
Werner Becker: Pretendem, né? A decisão do dia 24 foi a de prisão. Os próximos acontecimentos, fatos e pressões do movimento social podem até evitá-la, mas essa é a pretensão do golpe: a prisão e o afastamento de Lula, não só do momento atual como da história política da República. É o que penso. Por isso tomei a liberdade de mandar uma carta aberta à sua majestade Leandro Paulsen para que ao menos tenha um surto de humildade e, como eu escrevi, vá no próximo carnaval para a avenida do bom senso e diga: afinal, que rei sou eu?
Sul21: Em 1964, o Judiciário também teve um papel importante na consolidação do golpe contra o governo constitucional de João Goulart. Que comparação é possível fazer com a atuação do Judiciário hoje?
Werner Becker: Em 64, os militares, para evitar a hipocrisia e a farsa, avocaram para si, para a Justiça Militar, o julgamento dos chamados subversivos. Como agora o momento é de farsa, elegeram o poder togado como executor da política golpista. Evidentemente é uma política golpista. Eles nem estão preocupados com a Reforma da Previdência. Eles já conseguiram reformar a CLT e retirar direitos e prerrogativas dos trabalhadores. Era isso o que queriam, o resto é pano de fundo.
Sul21: A Reforma da Previdência, se vier, é lucro, em todos os sentidos…
Werner Becker: Isso. Se vier é lucro. Vivemos hoje um processo de difamação das lideranças populares. Tentaram fazer isso em 64 com o Brizola, mas a imagem dele permanece hoje como objeto de admiração popular. Certamente isso vai acontecer com o Lula também. A história pode ter retrocessos mas, no longo prazo, ela acaba indo para frente. É mais um golpe que o Brasil está vivendo. Já estou acostumado a viver com eles. Só que, agora, ele se repete como farsa e como ridículo.
“A imaginação deles é cada vez maior. Lembre-se que, depois de 64, veio 68 e 69, veio o AI-5. Na época, ninguém achava que aconteceria o que aconteceu”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: Como o senhor avalia a capacidade de resistência a esse golpe?
Werner Becker: Não sei avaliar direito. Os meios de comunicação evoluem cada vez mais e são mais insidiosos. Pode durar anos ou décadas. Neste momento, não estou sentindo uma mobilização popular que me deixe otimista. Mas ainda tem tempo para isso e ainda existem restos de indignação para resistir. Confio que, ao menos, possamos impedir o pior.
Sul21: O que seria o pior?
Werner Becker: Não sei exatamente. A imaginação deles é cada vez maior. Lembre-se que, depois de 64, veio 68 e 69, veio o AI-5. Na época, ninguém achava que aconteceria o que aconteceu. Agora também ninguém achava que eles iriam fazer o impeachment da Dilma e deflagrar o golpe. Ninguém achava que iriam acabar prendendo o Lula. As elites brasileiras não permitem qualquer avanço social. O resultado está aí. É importante, neste momento, que aqueles que se achavam triunfantes em definitivo façam sua autocrítica. A luta não tinha terminado com a chegada ao governo. O PT chegou ao governo mas nunca chegou ao poder. A prova é que teve que fazer os acordos que fez com gente como Temer, Collor, Maluf e outros desta elite podre brasileira. Chegar ao governo não quer dizer chegar ao poder. Ao chegarem ao governo, esqueceram que isso era apenas uma etapa para chegar ao poder.
Sul21: O senhor foi advogado de presos políticos na ditadura e hoje já está se pronunciando de novo contra o que considera ser arbitrariedades e irregularidades cometidas pelo Judiciário. Outros advogados estão fazendo isso também. O que pode ser feito neste terreno?
Werner Becker: Há uma questão importante que quero deixar assinalada aqui. Eu não estou nem discutindo a decisão judicial do dia 24 de janeiro. O que eu estou apontando é a farsa e a hipocrisia que marcou esse julgamento. Foi mais uma etapa do processo do golpe que agora se repete como farsa. Aqueles que participaram daquela farsa no TRF4 podiam, ao menos, ter o senso de ridículo.
Sul21: Considerando o papel desempenhado pelo Judiciário em 1964 e hoje, o que se pode dizer sobre a evolução da Justiça e do Direito no Brasil?
Werner Becker: Houve alguns avanços que o golpe de 2016 está fazendo retroagir. Por eles, nós vamos voltar a 64 e, se for possível, um pouco antes. Alguns, inclusive, querem voltar ao período da escravidão. Não estou exagerando. Basta ver o decreto presidencial que tentava restabelecer a escravidão no Brasil. Não sou eu que digo, o próprio Supremo Tribunal Federal se manifestou dizendo que escravidão, não.
Sul21: Na sua avaliação, em que medida o Supremo tem espaço e capacidade, hoje, para deter esse processo do golpe?
“Eu espero que o Supremo tenha, ao menos, mais recato”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Werner Becker: Eu espero que o Supremo tenha mais recato. O Supremo tem que explicar, por exemplo, que história é essa de dizer que se enganaram e distribuíram a questão da filha do Roberto Jeferson para o Gilmar Mendes? Que engano é este? Está bem claro que a atribuição regimental era da presidente. Não se deu nenhuma explicação. Quem é que se enganou? Como é que se enganou? Por que se enganou? Ficou tudo por isso mesmo. Eles têm que explicar como são feitos os sorteios e como as questões que mais interessam caem todas na mão do Gilmar (Mendes). Quais são as balizas deste sorteio? Ninguém sabe. O Supremo tem uma história no Brasil e se espera que ele zele para que as coisas, ao menos, transcorram com mais pudor.
Sul21: O senhor tem medo do que pode vir pela frente?
Werner Becker: Claro que tenho medo. Só um irresponsável não tem medo da força e do que são capazes de fazer as elites brasileiras contra quem contraria algum de seus interesses. Mas quero repetir Vinícius de Moraes, no poema ‘A morte de madrugada’, em homenagem a Garcia Lorca: eu sei que ele teve medo, mas sei que não foi covarde. Todos nós devemos ter medo, mas não podemos nos acovardar.