A autencidade e o exemplo imperfeito de Oscar Wilde
Dos três elementos de estética de que tratei (expressão, presença e horizonte), ligados aos três critérios éticos (caráter, virtude e felicidade), os primeiros (expressão e caráter) estão conectados com a ideia de autenticidade.
A autenticidade é, portanto, um pré-requisito para a formação das heurísticas da economia da atenção (os critérios e metacritérios que usamos para nos embrenhar no mundo dos fenômenos cognitivos internos e externos).
“Seja você mesmo, os outros já foram cooptados.”
– Oscar Wilde
Um movimento da virada de século XX, o esteticismo, de onde ainda batem hoje as ondas da “arte pela arte” e tantos outros conceitos mais ou menos claramente vinculados com a fonte, teve como grande expoente o gênio da ironia fina aforística, a elusiva wit (traduzida como “espirituosidade”), Oscar Wilde.
Wilde é uma figura interessante para nossa era “pós-pós” como típico da modernidade já se deparando com aspectos e tensões da pós-modernidade. Seu principal romance, O Retrato de Dorian Gray, lida com as questões estéticas da duplicidade, isto é, a falta de autenticidade.
O esteta, na sua qualidade quixotesca, já ridicularizada na época de Wilde, assume seus ideais como valores naturalmente acima e intocáveis pelas configurações sociais. A barganha faustiana aqui segue na mesma velha dicotomia céu/inferno, antevendo o “inferno são os outros”; e, também, “o céu são as minhas prerrogativas”, no caso de Wilde, “meu ideal de beleza”, não corrompido por qualquer moral.
Beleza desvinculada de ética que ganha, hoje, a dimensão além do pertencimento, a preocupação não só com aqueles que escolhemos (como próximos, como queridos), mas principalmente para com aqueles que desprezamos, desconhecemos ou aparentemente não têm “nada a ver conosco” — embora para o esteticista, os mores particulares da classe alta britânica fossem mais o alvo do que essa visão mais atemporal e neutra da ética.
Também por isso, é extremamente complexo entender a vida de Wilde em nosso contexto atual. Eu, como ele mesmo, reconheço sua vida como uma tragédia e consigo admirar a obra, ainda que veja a arte e vida de forma diametralmente oposta a Wilde. Isso pode ser assim porque, a meu ver, um dos aspectos da “arte pela arte” do estetismo curiosamente se “purifica” da ausência explícita de visão ética, por um motivo bastante abstrato: a arte pela arte no seu ápice não venderia ou propagandearia a noção de “arte pela arte”; não ideologizando, deliberadamente evitaria a propaganda, até mesmo de si própria. Exporia o artista nu em sua contradição. Bom, quem dera.
A contradição em Wilde tem a ver com a autenticidade.
A homoafetividade muitas vezes foi (embora seja cada vez menos) uma das maiores fontes de duplicidade, obviamente porque surge em tensão com as expectativas da cultura. Ora, para qualquer tipo de outsider — deliberado ou não –, o inferno é, em grande medida, de fato os outros.
Porém, na cabeça vitoriana, e na cabeça de Wilde, moral e — seria adequado dizer aqui “opção sexual”? A configuração, digamos assim, do foco dos desejos do indivíduo (tendo ela uma dimensão deliberativa ou não) –, enfim, “esse segundo aspecto”, eram naturalmente conflagrados. Afinal, ética e os mores da sociedade britânica, como de praxe, eram aglomerados na perspectiva vitoriana — isto é, não havia noção de mores universais, ou valores éticos além dos costumes (o que etimologicamente soa um contrasenso mesmo).
Em certo sentido, há várias dimensões morais (éticas) na sexualidade: há o consentimento, há consequências biológicas (doenças, prole) e sociais (laços, contratos, expectativas) — mas na nossa cabeça pós-pós, homossexualidade simplesmente não é mais uma questão moral. Isso é coisa de moralidade prescritiva religiosa, tradicional, assim vemos.
Dois adultos consensuais fazem o que querem, tenham o gênero que tiverem: essa é nossa visão ética. Se ambos tiverem tesão, mas acreditarem na Bíblia, azar o deles — não temos nada a ver com as opções míticas das pessoas. Tire as patinhas daí, não venha me julgar de acordo com seus mores mórmons…
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Claro, há quem ainda mantenha que a homoafetividade é uma infração ética de algum tipo (como há gente em religiosidade medieval) — mas há duas categorias aí: os que acham que ela é imoral e são contra ela, e os que acreditam que ela é imoral e são contra noções de moral de qualquer tipo! Assim, teoricamente, era o esteta, o decadente, na era vitoriana. A dimensão moral permanecia, ela só era desafiada.
Pode parecer que tergiverso — podemos ser inautênticos ou dúplices de infinitas formas, e a homossexualidade na época vitoriana é apenas um exemplo dramático, e feito mais dramático ainda em se tratando de alguém tão preocupado com a autenticidade quanto Wilde. Poderíamos estar falando de alguém que segue uma carreira por pressão da família, ou do adolescente que finge gostar da música que o alvo de sua azaração admira.
Ou podemos falar do “desespero contido” das classes médias, do espalhafato do novo rico, da vergonha da pobreza, ou do falso contentamento do “dinheiro velho”… há duplicidade entre amigos, entre colegas e nos casais — e principalmente no Facebook dos momentos bem filtrados, e onde até os gritos por ajuda surgem como ironia.
Em qualquer âmbito, é possível perder o caráter, não estar ciente de si próprio e do outro, e resvalar para uma situação em que é difícil “escolher” (ou se aceitar em) uma forma de aparição.
Porque Oscar Wilde não é visto hoje exatamente como um mártir dos direitos civis homossexuais? Porque ele, por uma série de razões, muitas delas bastante compreensíveis, fracassou profundamente em ser autêntico. Como Dorian Gray, ele levava a vida de um esteta e um criminoso — por mais que nós entendamos que não era abominável em sua homoafetividade, para ele mesmo isso ainda não era claro, como o comportamento dele atesta.
Parte do problema é a confusão, própria da época, entre moralidade e esse sentido de sexualidade, sensualidade, estética, arte. Ora, Wilde e os outros estetas pregavam uma total separação entre ética e estética. O que se queria dizer com isso? Que a arte não servia para nos dizer como agir, não servia a um fim didático, não devia proselitisar, fazer propaganda. O que soa até muito bem. Mas ao que ela serve? Ela serve apenas para provocar sensações, de deleite ou de outros tipos. E talvez aí nisso haja certa limitação.
O seguinte trecho de transcrição do tribunal incriminou Wilde:
Charles Gill (advogado de acusação): O que é o “amor que não ousa dizer o próprio nome”?
Wilde: “O amor que não ousa dizer o próprio nome” neste século é um afeto de um um homem mais velho por um jovem, como o que existia entre Davi e Jonatas, como o que Platão tinha como a própria base da filosofia, e como o que está nos sonetos de Shakespeare e Michelangelo, e aquelas duas cartas de minha autoria, do jeito que são.
Neste século esse amor é incompreendido, tão incompreendido que pode ser descrito como o ‘amor que não ousa dizer o próprio nome’, e devido a ele que estou nessa situação aqui agora. É belo, é refinado, é a forma mais nobre de afeto. Com relação a ele não há nada que não seja natural.
É intelectual, e surge frequentemente entre um homem mais velho e um mais jovem, quando o mais velho tem intelecto, e o mais jovem tem tem toda a alegria, esperança e glamour da vida pela frente. Que ele seja assim, o mundo não entende. O mundo o ridiculariza, e algumas vezes nos coloca no pelourinho por causa dele.”
Sensação ou abstração? A quem pertence o eufemismo? Wilde disse tudo que era necessário para incriminá-lo. Se ele houvesse mentido de forma mais clara, até mesmo isso seria mais autêntico. Ele escolheu uma meia verdade que foi suficiente para a corte: não era nem bem verdade, nem foi prático.
Um mundo ideal como um balão desvinculado de tudo: das ignorâncias, dos sofrimentos, da própria verdade do quarto. Só algo com a aparência de sinceramente belo, mas que não diz nada a não ser o que, alas, a corte queria (e simultaneamente não queria!) ouvir. Pura sensação.
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O esteticismo também está associado, ou até pode ser mesclado com, o decadentismo e o simbolismo. O Retrato de Dorian Gray esfregava homoerotismo na cara do vitoriano — havia certa afetação sensacionalista em tratar do tema de uma forma simultaneamente tão direta e tão velada.
E não estou dizendo que a grande obra era isso, ou que isso sequer diminua seu valor: mas era também isso. Lorde Byron e seus excessos, Baudelaire e suas flores malvadas e paraísos artificiais, Aleister Crowley e o bad boy como sensação dos tabloides: mesma coisa. Esse é o nascimento do outsider como anti-herói, do rockstar.
Parte do estetismo era viver a arte, e isso incluía a afetação de ser uma celebridade, de causar comoção por não estar nem aí para o que os outros pensam, isto é, no fim se encontrando na verdade muito aí para o que os outros pensam.
Wilde foi, portanto, vítima (além de um tempo e espaço particular) do próprio jogo perigoso que jogava. Nunca admitiu (na época, publicamente) a própria homossexualidade como mais que platônica, mas definhou na cadeia por ela. Ora, se queria ser um mártir, começar uma causa que nem mesmo publicamente existia ainda, se é que a figura do gay (ou instância qualquer LGBT) ativista moderno pudesse existir na época, ele não teria cometido perjúrio, apenas escancarado que o amor dele era puro e físico.
Mas não, ele não queria essas coisas, preferiu mentir que praticava a veadagem dos anjos, sem genitais. Confessou amar homens, mas só lá no santuário platônico: não quis entrar nos detalhes da chuca.
Stephen Fry como Oscar Wilde, na cinebiografia “Wilde” (1997). Fry é homossexual, brilhante e autêntico. Seu documentário sobre a própria bipolaridade “Secret Life of the Manic Depressive” é bem interessante
Stephen Fry como Oscar Wilde, na cinebiografia “Wilde” (1997). Fry é homossexual, brilhante e autêntico. Seu documentário sobre a própria bipolaridade “Secret Life of the Manic Depressive” é bem interessante
Talvez isso não fosse uma opção, contemporizo, embora fosse: era só ir viver na França — apenas que a graça, para esse irlandês, era chocar os ingleses. Mas não foi só ele quem sofreu pela dança estética perigosa da ironia de seus escritos e de seus ideais “estéticos” (e desculpas): sua mulher e filhos, e seus parceiros também sofreram degradação social e econômica. E não foi tanto a homossexualidade ou as meias-verdades que causaram o sofrimento: foi essencialmente a húbris, que sustentou toda essa duplicidade.
Em certo sentido, Wilde foi autêntico ao ideal quixotesco do esteticismo: ele simplesmente não acreditava que uma corte fosse escrutinar os detalhes da sodomia em meio ao decadentismo dândi das tiradas sofisticadas, em meio aos tão elevados ideais da arte como valor absoluto (e a palavra “ideal” aqui é até mais-que-platônica, é o ideal dos ideais, a aesthesis desvinculada de causa e efeito, um mundo totalmente a parte das questões humanas e temporais, a não ser para as menosprezar e ridicularizar — húbris ao quadrado).
A duplicidade está em reconhecer a tensão entre o público e o privado e a usá-la para os próprios fins: Wilde confiava que a homoafetividade podia ser pública, se fosse platônica, ainda que não fosse de fato em privado. É uma forma peculiar de “don’t ask, don’t tell”.
Mas o que é ser autêntico a uma fabricação, a um sonho que inevitavelmente acaba por se tornar o que explicitamente evita ser, uma prescrição, uma propaganda? E, pior, qualquer neopentecostal mais literato vai encontrar na vida e na obra de Wilde moralzinha para boi dormir: “olha só no que deu… e ele ainda encontrou Jesus na cadeia.”
Já toquei um pouco no assunto em meus textos sobre teleologia (“Breve ruminação hiperbólica de alguns clichês teleológicos” e “Mais sobre teleologia: o gênio/demônio“, que se conectam aos aspectos de horizonte e felicidade, mencionados no início do texto em relação aos dois grupos de valores tríplices de estética e ética que preconizo), mas a tensão entre o individuo enquanto construto de fora para dentro e enquanto construto de dentro para fora (“nature vs nurture”), exatamente o conflito de Dorian Gray. O cerne do problema wildeano também no tribunal da sua vida cotidiana, é a questão da autenticidade.
Em outras palavras, retomando o daimon socrático e a vocação cristã, o que realmente somos não é totalmente determinado por deliberação e questões internas, mas sim é um reconhecimento da relação destas com as circunstâncias do mundo (representados pelo “chamado” a se ser o que se é, seja por uma entidade externa, no caso do teísmo cristão, seja por o que for o que seja um “daimon”).
Nossa cultura, com uma motivação econômica deturpada, nos doutrina a acreditar que somos seres plenamente deliberativos, isentos. Porém, na verdade somos tão condicionados por hábitos ocultos que não somos sequer capazes de reconhecer o que seria efetiva liberdade — pensamos que somos livres e, assim, não achamos nada de estranho em estarmos algemados.
Em nosso sonho de seres plenamente deliberativos, acreditamos que podemos nos construir como quisermos — “o que você vai ser quando crescer?”, os adultos brincam de nos perguntar, eles mesmos lidando com os papéis que lhes couberam em suas vidas de adultos. E não estamos só falando em carreira, há a cena famosa de Annie Hall em que as crianças falam como adultos descrevendo seu passado: “eu era viciado em heroína, daí fiquei viciado em metadona”.
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O Wilde anacrônico diria “eu era uma sensação, gênio, popular e chique… daí acabei sacaneando todo mundo ao meu redor, apodreci na cadeia e morri doente e pobre em exílio”. Somos o que conseguimos ser, mas em geral nem temos clareza dos nossos potenciais, tanto pelo lado de os idealizarmos quanto por os menosprezar.
Enquanto isso, toda nossa experiência de clicks e compras parece plenamente deliberativa. “Eu dou like no que eu quero” — mas será que é assim?
(E aqui eu abro um parêntese enorme: homossexualidade e deliberação. O progressismo atual é contra a ideia de qualquer grau de deliberação na homoafetividade, mas me parece que isso é assim apenas por que é a forma de combater as ideias abstrusas de naturalismo da ala do teísmo prescritivista homofóbico — ser “criado gay”.
Porém, o quanto há de deliberativo na homossexualidade, fora dessa discussão, é difícil dizer. Em todo mundo possível, eliminando as bobiças da gente do livro tribal dos judeus, não há nada de particularmente positivo ou negativo em algo ter elementos deliberativos, ou mesmo ser “antinatural” — seja lá o que isso quer dizer num mundo não teísta –, porque não há deus a desafiar ou mos tribal universal.
Sem dúvida os defensores das noções de espectro de orientação e gênero hão de convir que há espaço para aqueles que gozam com a artificialidade e em desafiar mores, ou que pelo menos o homoerotismo deliberativo é uma possibilidade. Pela dimensão de contravenção moral decadentista, que talvez Wilde reconhecesse, ela continha deliberação. Mas essa é outra discussão, uma vez que pouco importa se um aspecto ou outro é dado ou deliberado, o que importa é como se pode ser autêntico em meio a isso).
Ao contrário do curioso produto do puritanismo vitoriano, que no seu ápice intelectual sonhava um mundo sem a pressão da sociedade ignorantona, daquela gente simplória e de mau gosto que não entendia nada de “amor grego”, o nosso ápice intelectual sonha uma sociedade auto-organizada, igualitária e acolhedora — espelhando nosso autorreconhecimento como seres isentos e justos, “automaticamente livres”.
Você conhece alguém que não se ache isento e justo? Dá para começar a desconfiar de autenticidade, e entender que há autoengano em massa. Se o autoengano é o que há de prevalente no mundo, daí a autenticidade ser rara.
E o mesmo tipo de tensões vitorianas ainda estão, em certo sentido, presentes: talvez não a “guerra da cultura” (que já foi vencida, por mais que a gente ainda tema a “bancada evangélica”, ou possam haver retrocessos circunstanciais), mas a da construção do eu como fruto de si mesmo e da cultura entrelaçados, e não um tumor na cultura ou a esquizofrenia das pressões da legião.
No seu exemplo mais microscópico, isso se espelha nos extremos da pessoa que fere pelo candor — por não respeitar circunstâncias, e simplesmente “dar a real” avassaladoramente — e da pessoa com a fala totalmente ensebada, que nunca menciona o “elefante na sala”. Há espaço para o candor, e há espaço para o eufemismo e para a fala estratégica: da mesma forma a autenticidade não é o irrascível independente ególatra, e tampouco o almofadinha superajustado.
Há um equilíbrio, um ponto ideal de moderação, entre adaptação, pertencimento e visão estratégica, por um lado, e rompimento, pensamento fora-da-caixa e espontaneidade, por outro.
Figuras trágicas como Wilde ou Sócrates, em suas imperfeições, e em suas amostragens de um período e dos problemas humanos vividos em um período, são importantes por vários motivos. Um deles é o exemplo, óbvio, mas que não é para ser seguido em nenhum tipo de simetria, uma vez que o custo em termos de sofrimento pode ser bastante desnecessário — bem como espelhar e interpretar circunstâncias tão diferentes não ser exatamente fácil.
Eles são ainda mais interessantes como amostras de aspectos da autenticidade, em particular de como é difícil ser autêntico, e que custos se aproximar da (nem vamos dizer conseguir) autenticidade pode acarretar.
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… Eu queria comer do fruto de todas as árvores no jardim do mundo … E assim, na verdade, eu segui, e assim que eu vivi. Meu único erro foi que eu me limitei exclusivamente às árvores do que me pareceu ser o lado ensolarado do jardim, e evitei o outro lado por sua sombra e melancolia.”
Em De Profundis, Oscar Wilde reconhece que tudo que aconteceu com ele não foi culpa de mais ninguém.
EDUARDO PINHEIRO
Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia.
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