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Crônica do dia, por Luis Fernando Veríssimo


Malucos e malucos no governo
O Lula disse que o Brasil está sendo governado por um bando de malucos. Exagero, claro. É difícil associar o que acontece no Brasil hoje com qualquer atividade que lembre o verbo “governar”. A mesma coisa com o termo “bando”, que, bem ou mal, evoca algum tipo de organização. Lula também exagerou ao chamar de “malucos” os que se aproveitam da confusão para promover seus projetos políticos pessoais, e que de loucos não têm nada. No mais, o Lula tem razão.
A alusão mais precisa que Lula, talvez, procurasse para nossa situação seria a do manicômio dominado pelos pacientes. Este sentimento de um país à deriva, sem entender seu governo e sem entender a si mesmo, é — imagina-se — quase total, mesmo entre os que bolsonaram e esperavam em vão que o “mito” começasse a atuar, nem que fosse só na escolha de um ministério menos exótico. Um bando de malucos se apossando da administração deixa o país tremebundo, mas institucionalmente de pé. Maluco se revoltando contra a instituição é outra coisa, mais grave. Não fica nem uma caneca de pé.
Os generais que ganharam uma nação de graça, sem necessidade de disfarçar farda com terno ou tanque com discurso, estão achando difícil a convivência com civis, chame-se Olavo ou não. Descobrem como eram melhores as revoluções clássicas, com tropas nas ruas. Mas os militares não podem se queixar muito. Se a eleição do Bolsonaro provou alguma coisa — e provou várias — é que boa parte de 60 milhões de eleitores do país não deu a menor bola para o passado e os crimes das Forças Armadas brasileiras nos 20 anos da ditadura que o candidato vencedor diz que nunca aconteceu.
Luis Fernando Veríssimo
Vida que segue

A Velhinha de Taubaté tinha conta no exterior


Prosseguem as investigações sobre a morte da “Velhinha de Taubaté”, que ficou conhecida nacionalmente por ser a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo. O inquérito está sendo conduzido pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, dada a repercussão do caso. Um promotor sai de cinco em cinco minutos da sala em que está sendo interrogado o gato da Velhinha, o Zé, para informar à imprensa o que se passa lá dentro, embora o gato tenha, até agora, dito muito pouco. “Miau”, basicamente.
Houve um princípio de tumulto entre repórteres quando uma equipe da televisão, gravando clandestinamente no interior da casa da Velhinha, localizou um pedaço de papel com números e o que parecia ser a palavra “off-shore” em letra tremida, o que indicaria que a Velhinha tinha uma conta no exterior, onde receberia para acreditar no governo. Depois se revelou que eram números para jogar na Sena, que a Velhinha sempre acreditava que ia ganhar, e que a palavra escrita era “oxalá”. Mas alguém ficou como papel e é possível que a notícia “Velhinha tinha conta no exterior” apareça em alguma manchete nos próximos dias para atrair atenção, mesmo que o texto diga outra coisa. Sabe como é a imprensa.
Todas as CPIs em andamento no Congresso Nacional disputam a prioridade em convocar o Zé para depor em Brasília, o que tem acirrado o conflito entre elas, que muitos temem possa acabar numa guerra aberta com congressista brigando com congressista pelos corredores e todos se juntando para pegar o ACM Neto.
Só o gato poderia contar o que realmente aconteceu, na improvável hipótese de, ao contrário do que fizeram tantos outros nas CPIs, começar a falar. Mas pode-se deduzir o que levou a Velhinha a morrer – ou se matar com veneno no chá. Ela nunca se recuperou totalmente do choque da notícia da compra de votos para reeleger o Fernando Henrique, seu ídolo na ocasião, apesar de depois acreditar em todos os desmentidos. Debilitada, sofreu outro baque com as denúncias contra o Palocci, seu ídolo atual, e outro baque quando soube que nem no Ministério Publico se podia confiar. Foi demais para a Velhinha.

O curioso é que as alegres multidões que iam até a sua casa na esperança de ver o fenômeno, um brasileiro que ainda acreditava, estão sendo substituídas por tristes romeiros que visitam o santuário improvisado na frente da sua casa, em Taubaté, na esperança de recuperar a fé. A Velhinha pode muito bem se transformar em milagreira depois de morta. As pessoas querem acreditar, pelo menos, em quem acreditou um dia.
Luis Fernando Veríssimo

Vida que segue

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo


O grampo da velhinha
Como se sabe, existe uma velhinha em Taubaté que é a última pessoa no Brasil que acredita. Ela acredita em anúncio, acredita em nota de esclarecimento, acredita nos ministros da área econômica [acredita no clã Bolsonaro, acredita na imparcialidade do judiciário e até acredita que a Globo e a Record faz jornalismo]. Depois que foi localizada, a velhinha de Taubaté, coitada, não teve mais sossego. Todos os dia batem à sua porta querendo saber que canal ela está olhando, que produto ela está usando e se a explicação do governo sobre o último escândalo foi convincente. Ela sempre diz que foi. Algumas agências de publicidade estão incluindo no seu approach de marketing um “Velhinha Factor“, ou a questão: isto passa pela velhinha? Muitas entidades públicas e privadas mantêm a velhinha sob constante observação. Fala-se mesmo que existe em Taubaté uma unidade médica em prontidão permanente, exclusivamente para atender a velhinha em caso de mal súbito ou escorregão. Há uma convicção generalizada de que, quando a velhinha se for, tudo desmoronará. A boa saúde da velhinha interessa tanto ao governo quanto à oposição responsável. Se ela morrer – ou deixar de acreditar -, teremos o caos, que não convém ao projeto político de nenhum dos lados. Quando o Tancredo e o Figueiredo se encontrarem e um perguntar como vai a saúde, não estará se referindo nem ao outro, nem ao Aureliano. Estará falando da velhinha de Taubaté. Só a velhinha de Taubaté nos separa das trevas.
Por isto, segundo o Correio Braziliense, o SNI decidiu intensificar sua vigilância sobre a velhinha e um agente disfarçado de funcionário da companhia telefônica bateu à sua porta, há dias. Foi a própria velhinha, um pouco irritada com as constantes interrupções do seu tricô e do seu programa na TV, quem atendeu.
– Quié?
– Vim consertar o telefone.
– Eu não tenho telefone. O agente pensou com rapidez.
– Vim instalar o telefone e depois consertar.
– Mas eu não comprei telefone nenhum.
– Deve ser presente de alguém.
– Quem me daria um telefone de presente?
– Alguém que está tentando ligar para cá e não consegue. A velhinha acreditou. Mas pensou um pouco e decidiu:
– Se ele já vem estragado, eu não quero. E fechou a porta. O agente entrou em contato com seus superiores. Recebeu instruções para adotar o Plano de Contingência B. No dia seguinte bateu à porta da velhinha vestido de mulher e apresentando-se como divulgadora de produtos de beleza. Apesar do bigode e da barba, a velhinha acreditou. Deixou-o entrar e enxotou um gato de uma poltrona para ele sentar.
– Estamos lançando uma linha de grampos para o cabelo e queremos que a senhora seja uma das primeiras a experimentar.
– Mmmm. São grátis?
– Absolutamente grátis. Só há algumas condições. A senhora precisa usá-los o tempo inteiro. Menos no banho, porque se molhar estraga o transmis… Estraga o grampo.

– E se eu quiser comprar depois de experimentar, posso?
– Pode.
– Quanto custa cada um?
– Dez mil dólares.
– É um pouco salgado…
A velhinha está usando os grampos o tempo inteiro, menos no banho e todas as suas reações estão sendo gravadas e mandadas para Brasília, para análise. Houve um momento de suspense quando a velhinha, em conversa com um gato, expressou algumas dúvidas sobre reforma da previdência. Mas as dúvidas passaram e a velhinha voltou a acreditar na versão oficial. Sua pulsação é firme. Sua digestão é boa. Fora uma pequena artrite, nada ameaça sua saúde. Ainda temos algum tempo antes do caos.
Vida que segue

Luis Fernando Veríssimo: debaixo da cama




Uma cama larga, simbolizando o país. Sobre a cama, não me pergunte como, um reacionário, simbolizando as classes dominantes, sua mulher frívola e infiel, simbolizando a inconsciência nacional, e um doido, simbolizando um doido. Fala o doido:
-- Esse ruído...
-- Que ruído? – pergunta o reacionário.
-- Debaixo da cama.
-- Não ouvi ruído nenhum.
-- Exatamente. Não é estranho? O jacaré está quieto.
– Que jacaré?
– O jacaré embaixo da cama.
A mulher frívola e infiel dá um grito abafado. O reacionário diz:
-- Não há jacaré nenhum embaixo da cama.
O doido faz uma cara triunfante e pergunta:
-- Se não há um jacaré embaixo da cama, então o que é que está em silêncio?
A lógica do argumento é inatacável. E, a julgar pelo tamanho do silêncio, o jacaré é enorme.
-- Por que será que ele está quieto? – pergunta o reacionário.
-- Não sei – diz o doido. – A não ser que ele tenha comido alguém...
A mulher frívola e infiel leva as mãos à boca mas deixa escapar um nome:
-- Danilo!
-- O quê? – dizem o reacionário e o doido juntos.
-- Nada, nada...
Mas ela desaparece sob o lençol para chorar seu amante. Danilo, comido por um jacaré embaixo da cama! E com o pijama novo que ela lhe deu.
-- O jacaré deve ter comido o comunista – diz o reacionário.
-- Que comunista?
-- Tem sempre um comunista debaixo da cama.
-- Depois eu é que sou doido...Não tem comunista nenhum debaixo da cama.
-- Se o jacaré comeu, não tem mesmo.
--Só há uma maneira de sabermos o que realmente aconteceu – diz o doido, sensatamente. Olharmos debaixo da cama.
Os dois espiam embaixo da cama e vêem um moço de pijama novo, que sorri sem jeito.
O reacionário endireita-se na cama e começa a refletir. Olha para o doido, depois olha para sua mulher que chora. Aos poucos, vai se dando conta da situação.
-- Meu Deus! – exclama.
-- O quê? – diz o doido, pensando que é com ele.
-- O comunista comeu o jacaré.

In : Luiz Fernando Veríssimo(1983)-"A Velhinha de Taubaté – Novas histórias do analista de Bagé" - Porto Alegre – L & P M – 142 p (história à pg.30)
Vida que segue

A aliança, por Fernando Veríssimo

Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.
Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências… Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.
— Você não sabe o que me aconteceu!
— O quê?
— Uma coisa incrível.
— O quê?
— Contando ninguém acredita.
— Conta!
— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?
— Não.
— Olhe. E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.
— O que aconteceu? E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.
— Que coisa – diria a mulher, calmamente.
— Não é difícil de acreditar?
— Não. É perfeitamente possível.
— Pois é. Eu…
— SEU CRETINO!
— Meu bem…
— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.
— Mas, meu bem…
— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha! E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:
— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:
— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei. Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.
— O mais importante é que você não mentiu pra mim.

Humor inteligente


"Via cartas, pessoas me chamam de comunista, me mandam ir morar em Cuba ou na Venezuela. Nem respondo. Só reclamo e respondo quando me chamam de esquerda caviar. O caviar não está chegando a minha mesa, acho que o Chico Buaque está ficando com a minha parte"...

Luis Fernando Veríssimo

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Provocações, por Luis Fernando Veríssimo


Aceitar provocações é para os fracos, forte é aquele que faz da provocação algo que provoca quem te provocou.... Frase de Danilo Morais.



A primeira provocação ele não aguentou calado, na verdade chorou, gritou e esperneou. Porém quase todos os bebês agem assim, mesmos os que nascem em maternidades particulares, assistidos por pediatras e demais especialistas. E não como ele, numa palhoça, amparado apenas pelo chão, sequer tinha um médico cubano.

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
– "Violência, não!”
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Caderno 3

Citado nas redes sociais como autor de muitos textos e frases que não são dele, o escritor lançou o livro de crônicas "Ironias do tempo"

"Já fui muito elogiado pelo que nunca escrevi", afirma Luis Fernando Veríssimo

"Há uma maneira fácil de detectar se a autoria do texto é falsa ou não:
Se o Luiz da assinatura for com Z, o texto não é meu.
Se for contra o Bolsonaro, É."

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A frase do dia é de Luiz Fernando Veríssimo

(...) Como será difícil distinguir um marginal vermelho de um cidadão comum, agora que até a direita e a extrema-direita usa barba, sugiro que se costure uma estrela vermelha nas roupas dos marginais, para identificá-los. Deu certo em outros países.


Leia também: Pra desopilar

Provocações

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A primeira provocação ele não aguentou calado. Na verdade, chorou e esperneou muito. Nada demais, quase todo bebê faz assim, mesmo os que nascem em maternidade por cesariana. E não como ele, numa caverna, aparado apenas pelo chão de pedra.

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma sub-mulher. Tiveram sub-filhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a ideia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
– Violência, não! 
(Luis Fernando Veríssimo)

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Crônica dominical, de Luis Fernando Veríssimo

A metamorfose

Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e viu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Não tinha mais antenas. Quis emitir um som de surpresa e sem querer deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ella quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu segundo pensamento foi: “Que horror… Preciso acabar com essas baratas…”

Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto com a cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa e encontrou um armário num quarto, e nele, roupa de baixo e um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquiou-se. Todas as baratas são iguais, mas as mulheres precisam realçar sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia?… Tinha educação?…. Referências?… Conseguiu a muito custo um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas. Era uma boa faxineira.

Veríssimo: O Brasil alterou a famosa frase do Marx

(...) "Aqui, a história não se repete como farsa, as farsas se repetem como história. 
O golpe de 64 foi farsesco, descontando-se o que teve de ignóbil. Depois dele, vivemos 20 anos com generais se sucedendo na Presidência da República sem votos, uma farsa reincidente. Entre os generais presidentes tivemos de bufões a um falso pastor, que autorizou assassinatos de Estado, como nos contou, recentemente, a CIA. Diante desse teatro burlesco, a população teria todo o direito de gritar “E os palhaços? Onde estão os palhaços?”, se fosse permitido gritar. Para ser uma farsa completa, só faltaram palhaços em cena ou, no mínimo, um amante só de cueca escondido no armário.
E agora tem gente desfilando com faixas que pedem intervenção militar já. Quer dizer, pedem uma repetição da farsa. Como gostaram da outra, provavelmente querem uma farsa igual àquela, uma volta àqueles dias. São movidos a nostalgia, mais do que a qualquer projeto realista. Mas o movimento está crescendo, pelo que se ouve e se lê, e não se minimize o poder da nostalgia mobilizada; quanto mais irrealista, mais perigosa.
A farsa de 64 começou com um general de opereta, impaciente com a demora das conspirações, decidindo comandar seus tanques contra o governo Jango sem esperar por ninguém. Foi a faísca que incendiou o resto. Muito cuidado com faíscas e generais impacientes, portanto.

Luis Fernando Veríssimo em O Globo
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Veríssimo: deixa eu ver se entendi

O Moro condenou Lula a nove anos e pouco de reclusão. Os juízes da segunda instância concluíram que nove e pouco era pouco e aumentaram a pena para 12 anos e um mês. A razão de nove e pouco e a razão de 12 e um são desconhecidas. Imagina-se que exista uma tabela que determine a duração da pena de acordo com o crime. Neste caso, Moro e os juízes de Porto Alegre tinham tabelas diferentes. Ou a tabela mais branda do Moro estava vencida. Ou então a segunda instância quis provar que era mais dura do que o Moro e acrescentou três anos à condenação, por sua conta. Três anos, dirá você, não é muito. Isso porque não é você, desalmado, o preso, obrigado a tomar o sopão da Polícia Federal todos os dias.
Outra hipótese é que exista um certo ciúme do Moro entre os juízes, que querem aparecer mais do que ele, dando sentenças maiores. O fato é que os critérios para escolher quem pega nove anos e um pouco e 12 anos e um mês (esse um mês é sádico) ninguém sabe quais são. São aleatórios. (Ainda se usa “aleatório”?)
(...) Fhc trará objetos de decoração dos seus apartamentos em New York e Pais?
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Crônica do Veríssimo



"Eu tomo um remédio para controlar a pressão. Cada dia que vou comprar o dito cujo, o preço aumenta. Controlar a pressão é mole. Quero ver é controlar o 'preção.'
Tô sofrendo de 'preção' alto.
O médico mandou cortar o sal. Comecei cortando o médico, já que a consulta era salgada demais.
Para piorar, acho que tô ficando meio esquizofrênico.
Sério!
Não sei mais o que é real.
Principalmente, quando abro a carteira ou pego extrato no banco.
Não tem mais um Real.
Sem falar na minha esclerose precoce. Comecei a esquecer as coisas:
Sabe aquele carro? Esquece!
Aquela viagem? Esquece!
Tudo o que o presidente prometeu? Esquece!
Podem dizer que sou hipocondríaco, mas acho que tô igual ao meu time:
- nas últimas.
Bem, e o que dizer do carioca? Já nem liga mais pra bala perdida...
Entra por um ouvido e sai pelo outro.
Faz diferença...
'A diferença entre o Brasil e a República Checa é que a República Checa tem o governo em Praga e o Brasil tem essa praga no governo'
Não tem nada pior do que ser hipocondríaco num país que não tem remédio."

(LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO)"



Qualquer semelhança do ladrão de galinha com tucanos graúdos, e do delegado com delegados e procuradores que investigam eles (emplumados), não é mera coincidência.

O Brasil explicado em galinhas, por Luis Fernando Veríssimo


Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e o levaram para a delegacia.
D = Delegado
L = Ladrão
D - Que vida mansa, heim, vagabundo? Roubando galinha para ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai para a cadeia!
L - Não era para mim não. Era para vender.
D - Pior, venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!
L - Mas eu vendia mais caro.
D - Mais caro?
L - Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas galinhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.
D - Mas eram as mesmas galinhas, safado.
L - Os ovos das minhas eu pintava.
D - Que grande pilantra... (mas já havia um certo respeito no tom do delegado...)
D - Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...
L - Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiros a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um ovigopólio..
D - E o que você faz com o lucro do seu negócio?
L - Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do governo e superfaturo os preços.
O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:
D - Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?
L - Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.
D - E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?
L - Às vezes. Sabe como é.
D - Não sei não, excelência. Me explique.
L - É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. O risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora fui preso, finalmente vou para a cadeia. É uma experiência nova.
D - O que é isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.
L - Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
D - Sim. Mas primário, e com esses antecedentes...



Crônica do Veríssimo


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Nossa Senhora dos Destoantes
- Os sinos da capela do Padre Faria não badalam pior nem melhor que os outros, mas têm uma história e o som diferente de todos os outros, e vice-versa -
A pequena Capela de Nossa Senhora do Rosário do Padre Faria é uma das tantas joias arquitetônicas de Ouro Preto. O exterior despojado não prepara o visitante para a opulência barroca do interior. O campanário fica afastado do corpo da igreja, como a “casinha” numa morada sem banheiro, e nada tem de imponente. Os sinos da Capela de Padre Faria badalam em concerto com os outros sinos da região, cantando as horas e os eventos, e não soam nem melhor nem pior do que os outros. Mas os sinos da Capela do Padre Faria têm uma história diferente dos outros. 
Quando Tiradentes foi enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro todos os outros sinos celebraram a notícia. Afinal, tratava-se da execução de um traidor, de um inimigo da sociedade. Os sinos de Ouro Preto festejaram o castigo exemplar de um réprobo e o triunfo da legalidade sobre a rebeldia. Mesmo que o toque festivo não tivesse sido recomendado pela Coroa, a celebração se justificaria. Mas os sinos da Capela do Padre Faria dobraram Finados. Pela primeira e única vez na história, talvez, os sinos da Capela do Padre Faria destoaram do concerto. Tocaram, sozinhos, uma batida fúnebre pelo martírio de Tiradentes.

Ver!ssimas



Brasil - No Brasil o fundo do poço é apenas uma etapa.

Antecedentes - A corrupção é muito antiga no Brasil. As contas que o Cabral trocou com os índios já não fechavam.
CLASSES - O Brasil é formado por uma classe dominante e uma classe ludibriada.
CONSTITUIÇÃO - Nossa Constituição é como “A Voz do Brasil”: a maioria não liga.
CORRUPTORES - Brasil, esse estranho país de corruptos sem corruptores.
DEMOCRACIA - Toda a história da democracia no Brasil é a história da educação da nossa elite na arte de não mudar nada, ou só mudar o suficiente para não perder o controle.
ELITES - O Brasil é governado por minoria esmagadora.
EXPLICAÇÕES - O político brasileiro, uma vez eleito, se sente a salvo em outro país, o Brasil oficial, que não deve nada ao Brasil de verdade, muito menos explicações.
FALCATRUAS - Nossa alma amazônica não se satisfaz com pequenas falcatruas, queremos pororocas de sujeira, dilúvios de canalhice.
GENERAIS - Há algumas décadas instituímos no país a democracia condicional. Qualquer um podia ser presidente da República, desde que tivesse quatro estrelas. O que restringia a escolha a generais e hotéis.
HIPOCRISIA - No Brasil parece não haver escolha entre ser bobo e ser cínico.
IDEOLOGIAS - É só você decidir se é de meia esquerda, um quarto de esquerda, três quartos de esquerda, direita dissimulada, direita responsável ou direita Gengis Khan, e há um partido pronto para você no Brasil.
IGUALDADE - Todo brasileiro é igual perante a lei, contanto que não seja pé de chinelo, porque aí é culpado mesmo.
IMPREVISÍVEL - O Brasil não é mais um país imprevisível. É um país tristemente previsível.
INDEPENDÊNCIA - Todos deviam ser donos do seu nariz, mas infelizmente isto não acontece. Num país como o Brasil o sonho do nariz próprio continua inalcançável para a maioria.
INTRIGA - A intriga é a única indústria de Brasília.
JEITINHO - Nós brasileiros somos, paradoxalmente, a raça do jeito pra tudo e a raça que não tem jeito mesmo.
JORNAL - Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data.
MEMÓRIA - Até hoje, ninguém que confiou na falta de memória do Brasil se arrependeu.
MUDANÇAS - As nossas elites não mudaram muito desde dom João VI. Vamos lhes dar mais um pouco de tempo.
NOTÍCIAS - Um dia é da notícia, o outro é do desmentido.
OURO - Numa hipotética modalidade de corrupção sem barreiras, o Brasil levaria o ouro, a prata e o bronze – para a Suíça.
PACIÊNCIA - No Brasil, as classes inferiores cumprem seu papel e dão às elites repetidos exemplos de bom senso, honestidade e, principalmente, contenção e paciência. Quando a paciência acaba – como na questão das invasões de terra –, não falta quem se sinta ultrajado, como se os pobres estivessem, irresponsavelmente, esquecendo as regras da etiqueta.
PARTIDOS - Houve um tempo em que três letras definiam um homem. Alguém dizia “Eu sou PTB” e você sabia com quem estava falando. “Eu sou UDN”. Você sabia com quem estava falando. E saía de perto. Hoje trocam de partido, fazem alianças estranhas… Conseguiram que as letras não signifiquem mais nada. Uns FDP.
PMDB - O partido que transformou “heterogeneidade” em palavrão.
PRIVILÉGIOS - Confundir ordem e normalidade com seus próprios privilégios é um velho hábito de qualquer casta dominante.
SALVADORES DA PÁTRIA - Do próximo que se apresentar como nosso salvador, vamos exigir prova de mãe virgem e no mínimo três milagres – em cartório!
TAXISTAS - O Brasil vai mal porque as únicas pessoas que sabem como governá-lo estão dirigindo táxis, em vez de no governo. Os motoristas de táxi  têm a solução para todos os problemas do país ou – dependendo do tamanho da corrida – do mundo. Um dia, quando estivermos na iminência do caos terminal (pode ser amanhã), uma revolução popular colocará os homens certos nos lugares certos. Os motoristas de táxi, os dentistas e os barbeiros assumirão o poder, colocarão em prática suas teorias e resolverão todos os nossos problemas.

Segredos para fazer um casamento durar, por Luís Fernando Veríssimo

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1º) Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas. 
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP. 
2º) Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta. 
3º) Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, "em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então, sugeri a cozinha. 
4º) Nós sempre andamos de mãos dadas...Se eu soltar, ela vai às compras! 
5º) Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico. 
Então, ela disse: "nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar".
Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica. 

Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a "senhora certa". Só não sabia que o primeiro nome dela era "sempre".
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha. 
Ela perguntou: "O que tem na TV?" 
E eu disse: "Poeira".

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