Conhecido tucanuçu (agora apenas papagaio) não escondeu, em um programa de televisão, inconformismo com o resultado da pesquisa Sensus/CNT de janeiro, que deu ao presidente Lula avaliação positiva de 84% e ao governo a aprovação de 72,5% da população.
Uma liderança empresarial que o acompanhava demonstrou, por motivos óbvios, revolta menos sanguínea com o resultado. Como é possível que o povo (ah, o povo, que teima em não nos entender) avalie tão equivocadamente um presidente que cometeu o bárbaro crime de dizer que a crise seria uma marolinha quando é um tsunami?
Afinal de contas, o que eles queriam que Lula dissesse? Lembremos que na antevéspera da barbeiragem do Lehman Brothers, produzida pelo secretário do Tesouro dos Estados Unidos, dominava no mundo a crença de que as patifarias feitas pelo sistema financeiro seriam administráveis pelas velhas e conhecidas manobras monetárias e fiscais. Qual era o quadro brasileiro naquele momento? Um sistema financeiro hígido (talvez marginalmente comprometido com derivativos tóxicos), cujo funding externo (no crédito interbancário e no comércio) era da ordem de 20% do financiamento total. A política econômica mantinha a maior taxa real de juro e o maior compulsório do universo. Era beneficiada por um sistema de câmbio flutuante e tinha uma reserva externa substancial. Tínhamos, pois, razoáveis condições iniciais para nos acomodar, relativamente bem, à complexa crise que estávamos importando.
A resposta da nossa política monetária ao problema foi na direção correta, mas, infelizmente, sempre atrasada e em doses homeopáticas incapazes de dar conforto ao nosso sistema bancário. Este, por precaução (e não sem alguma razão), produziu a morte súbita do crédito interno. Todos os agentes, seguindo o seu exemplo, saíram em busca de liquidez, produzindo aqui o mesmo efeito da quebra de confiança que lá fora, por outros motivos, interrompera o circuito econômico.
No Brasil, em um caso ou noutro, operações bancárias mais ousadas (agora congeladas como empréstimos e ocupando o espaço de novos créditos) talvez venham a exigir, no futuro, a capitalização de algumas instituições financeiras. Isso é exatamente o oposto do que ocorre nos EUA e na Europa, onde o sistema financeiro faliu. O problema é que aqui, como lá, o simples suprimento de liquidez prova ser incapaz de restabelecer a confiança no mercado interbancário, sem a qual não se voltará à normalidade. Principalmente depois que a nossa autoridade monetária construiu uma filosofia darwiniana a sugerir que banco grande é melhor do que banco pequeno e que ambos são piores do que bancos oficiais.
A dramática queda do nível de atividade de meados de setembro em diante é a demonstração de que há um problema de confiança, prematuramente importado, que só será resolvido com o tempo: o trabalhador não gasta seus incentivos fiscais porque teme ficar desempregado. O empresário, temendo a queda da demanda, ajusta com a maior rapidez os estoques, reduz o ritmo de encomendas, tenta acelerar as vendas, sacrifica a margem e usa o incentivo fiscal para ficar líquido. O banqueiro senta na liquidez que lhe deu o Banco Central, reduz o crédito e, paradoxalmente, de forma suicida, piora a qualidade dos seus ativos. A tragédia é que a quebra de confiança que interrompeu o circuito econômico torna aparentemente racional o comportamento de cada um, acomodando-os na irracionalidade geral. É apenas mais um claro exemplo da falácia da composição: o que parece bom para cada agente é ruim para todos. Foi isso que Lula intuiu instantaneamente.
É evidente, e não há dúvida, que o governo poderia ter feito muito melhor nos últimos catorze anos:
1. Na política monetária, campeã olímpica do juro real, que usou oportunistamente a taxa de juro para valorizar o câmbio.
2. Na política fiscal, que privilegia os gastos de custeio e blinda, em detrimento dos gastos de investimento em infraestrutura, os direitos adquiridos do corporativismo que parasita Brasília.
3. Na ênfase maior nas reformas. É hora de reconhecer, tristemente, que não há como tapar o sol com a peneira: a relação custo-benefício do Estado no Brasil é, talvez, a maior do mundo.
Um mínimo de análise objetiva obriga-nos, entretanto, a aceitar o fato de que a crise do subprime só adquiriu a virulência atual depois de 15 de setembro de 2008, com a desastrada intervenção no Lehman Brothers. Será possível levar a sério a hipótese de que a crise no Brasil se agravou porque Lula a chamou de marolinha, e ela, por vingança, transformou-se em um tsunami? E será possível culpá-lo, ou ao povo, porque ele diz que a crise é importada e o povo até agora acredita? Claramente, não.
Como tudo isso vai terminar é cedo para saber, mas parece que o povo, quando deu sua opinião sobre Lula e seu governo, tinha razões que escaparam aos dois intelectuais.
Delfim Netto