Quando urubu está de azar...
Faz umas poucas semanas, ao receber do porteiro do prédio a correspondência chegada aquele dia, dei com um envelope da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e gelei. Gelei pressentindo alguma aporrinhação, porque, como se sabe, gato escaldado tem medo de água fria.
Nunca recebi qualquer correspondência vinda do governo - seja federal, estadual ou municipal - que me trouxesse uma boa notícia. O governo, quando me envia alguma mensagem, é para me intimar a prestar esclarecimento sobre a declaração do imposto de renda e coisas semelhantes. Nunca me manda cumprimentos pelos tantos anos em que estou no batente nem agradecendo a quantidade de impostos que recolho anualmente. Para me devolver o que foi cobrado a mais, isso nunca! Pelo contrário, por mais que pague, estou sempre devendo.
O governo - que teoricamente existe para me proteger e amparar - é de fato meu inimigo público número um.
E assim foi que, grilado de antemão, abri o envelope. Não deu outra: era o Departamento de Transportes da Prefeitura do Rio de Janeiro comunicando-me que eu tinha sido multado por dirigir falando ao celular. Sucede que eu não tenho celular, nunca tive e jamais terei.
E mais: quase nunca falo ao celular e jamais o fiz dentro do carro, ainda que estacionado. Falo ao telefone o menos que posso. Donde saiu então essa imputação absurda?
Não faço a menor ideia. E ela não é absurda apenas porque não uso esse tipo de telefone: mesmo que o usasse, o guarda de trânsito não me poderia ver porque os vidros do carro não o permitiriam, são escuros, protegidos com insufilme. Desconfio que esse guardinha amigo estava maconhado.
O certo, porém, é que, maconhado ou não, estava a serviço de uma espécie de azar que, nesse particular, me persegue. Não foi esta a primeira vez que a maconha ou o acaso me escolhem para vítima. Talvez o leitor já tenha ouvido falar que, durante a ditadura, fui para o exílio. Pois é, fui acusado de ações subversivas contra o regime militar. Pois bem, não digo que essa acusação fosse falsa, e tanto não era que decidi cair fora antes que o DOI-Codi me pegasse.
Não vou contar aqui o que passei, mudando de país conforme as circunstâncias e as ameaças. Em resumo, comi o pão que o Diabo amassou, mas, um dia, consegui voltar para casa. Passei por alguns percalços ao regressar, mas pouco depois estava com minha família e, no Luna Bar, com meus amigos. Fui então aconselhado, por um advogado amigo, a solicitar ao Superior Tribunal Militar, cópia da decisão me havia absolvido e levei um susto: o cara, que os milicos procuravam e contra o qual iniciaram aquele processo por subversão era José de Ribamar como eu, mas não era eu. Ou seja, o José de Ribamar que pagou o pato fui eu, mas o absolvido foi outro.
Por isso rezo todos os dias para que os militares não voltem ao poder, pois do contrário vou ter que me mandar de novo não sei para onde. Bem, isso é pouco provável que aconteça, mas, em compensação, sempre haverá um guarda de trânsito para me acusar do que não fiz.
Foi assim que, como disse no início da crônica, abri a carta do Departamento de Transportes da Prefeitura, que me acusava de dirigir meu carro falando ao celular. Minha primeira reação foi de espanto e revolta, mas verifiquei que, junto com a acusação, havia informações do que deveria eu fazer, caso decidisse recorrer da multa que me havia sido imposta.
Aquilo me deixou mais revoltado ainda: para escapar da acusação infundada, terei eu que entrar com dois processos no tal famigerado Departamento de Transportes e tentar provar que sou inocente.
Provar inocência?! Mal consigo acreditar. Alguém precisa dizer a esse pessoal uma coisa que todo mundo sabe, isto é, que o ônus da prova cabe a quem acusa e não a quem é acusado. Não é esse o argumento que estão usando para dispensar o Palocci de explicar donde veio sua súbita fortuna? Quer dizer que o que vale para gente do governo não vale para nós? A nossa Constituição diz que todo cidadão é inocente até que sua culpa seja comprovada. Não obstante, parece que, para o Departamento de Transporte da Prefeitura do Rio de Janeiro, a Constituição não vale: é o acusado que deve provar sua inocência.
Diante disso, o que faço? Me exilo de novo?
Faz umas poucas semanas, ao receber do porteiro do prédio a correspondência chegada aquele dia, dei com um envelope da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, e gelei. Gelei pressentindo alguma aporrinhação, porque, como se sabe, gato escaldado tem medo de água fria.
Nunca recebi qualquer correspondência vinda do governo - seja federal, estadual ou municipal - que me trouxesse uma boa notícia. O governo, quando me envia alguma mensagem, é para me intimar a prestar esclarecimento sobre a declaração do imposto de renda e coisas semelhantes. Nunca me manda cumprimentos pelos tantos anos em que estou no batente nem agradecendo a quantidade de impostos que recolho anualmente. Para me devolver o que foi cobrado a mais, isso nunca! Pelo contrário, por mais que pague, estou sempre devendo.
O governo - que teoricamente existe para me proteger e amparar - é de fato meu inimigo público número um.
E assim foi que, grilado de antemão, abri o envelope. Não deu outra: era o Departamento de Transportes da Prefeitura do Rio de Janeiro comunicando-me que eu tinha sido multado por dirigir falando ao celular. Sucede que eu não tenho celular, nunca tive e jamais terei.
E mais: quase nunca falo ao celular e jamais o fiz dentro do carro, ainda que estacionado. Falo ao telefone o menos que posso. Donde saiu então essa imputação absurda?
Não faço a menor ideia. E ela não é absurda apenas porque não uso esse tipo de telefone: mesmo que o usasse, o guarda de trânsito não me poderia ver porque os vidros do carro não o permitiriam, são escuros, protegidos com insufilme. Desconfio que esse guardinha amigo estava maconhado.
O certo, porém, é que, maconhado ou não, estava a serviço de uma espécie de azar que, nesse particular, me persegue. Não foi esta a primeira vez que a maconha ou o acaso me escolhem para vítima. Talvez o leitor já tenha ouvido falar que, durante a ditadura, fui para o exílio. Pois é, fui acusado de ações subversivas contra o regime militar. Pois bem, não digo que essa acusação fosse falsa, e tanto não era que decidi cair fora antes que o DOI-Codi me pegasse.
Não vou contar aqui o que passei, mudando de país conforme as circunstâncias e as ameaças. Em resumo, comi o pão que o Diabo amassou, mas, um dia, consegui voltar para casa. Passei por alguns percalços ao regressar, mas pouco depois estava com minha família e, no Luna Bar, com meus amigos. Fui então aconselhado, por um advogado amigo, a solicitar ao Superior Tribunal Militar, cópia da decisão me havia absolvido e levei um susto: o cara, que os milicos procuravam e contra o qual iniciaram aquele processo por subversão era José de Ribamar como eu, mas não era eu. Ou seja, o José de Ribamar que pagou o pato fui eu, mas o absolvido foi outro.
Por isso rezo todos os dias para que os militares não voltem ao poder, pois do contrário vou ter que me mandar de novo não sei para onde. Bem, isso é pouco provável que aconteça, mas, em compensação, sempre haverá um guarda de trânsito para me acusar do que não fiz.
Foi assim que, como disse no início da crônica, abri a carta do Departamento de Transportes da Prefeitura, que me acusava de dirigir meu carro falando ao celular. Minha primeira reação foi de espanto e revolta, mas verifiquei que, junto com a acusação, havia informações do que deveria eu fazer, caso decidisse recorrer da multa que me havia sido imposta.
Aquilo me deixou mais revoltado ainda: para escapar da acusação infundada, terei eu que entrar com dois processos no tal famigerado Departamento de Transportes e tentar provar que sou inocente.
Provar inocência?! Mal consigo acreditar. Alguém precisa dizer a esse pessoal uma coisa que todo mundo sabe, isto é, que o ônus da prova cabe a quem acusa e não a quem é acusado. Não é esse o argumento que estão usando para dispensar o Palocci de explicar donde veio sua súbita fortuna? Quer dizer que o que vale para gente do governo não vale para nós? A nossa Constituição diz que todo cidadão é inocente até que sua culpa seja comprovada. Não obstante, parece que, para o Departamento de Transporte da Prefeitura do Rio de Janeiro, a Constituição não vale: é o acusado que deve provar sua inocência.
Diante disso, o que faço? Me exilo de novo?
Ferreira Gullar
Nenhum comentário:
Postar um comentário