Papo de homem

Sou rejeitado porque sou feio demais

“Tenho sérios problemas com minha aparência. Ok, eu entendo que essa não é uma questão pouco usual e que existem centenas de artigos por aí enaltecendo o ‘amor próprio’ como solução. No entanto, meu caso é um pouquinho mais profundo. Não sou feio por descuido. Eu sou um feio três graus acima da Rossy de Palma, não dá pra escapar.
Até o começo do ensino médio minha preocupação girava em torno dos estudos, apenas. Minha família me via como o inteligente, meus poucos conhecidos (não tive amigos até o começo da faculdade) me viam como uma pessoa estudiosa.
Quando comecei o ensino médio, dei de cara com uma série de situações que simplesmente não faziam parte da minha visão de futuro antes. Ser jogado de grupo em grupo pra fazer os trabalhos porque não me queriam neles, ver grupos de amigos saindo no final de semana e nunca ser convidado, ser isolado das conversas no intervalo… No começo pensei que fosse pela minha timidez. A superei e fiz minhas primeiras ‘amizades’. No entanto, eu continuava me sentindo isolado. Passei a ser simpático, a tratar os outros da melhor maneira possível. Não adiantou. E eu sentia uma vontade latente de viver, de sair dos livros por um momento, de aproveitar minha juventude.
No meio do primeiro ano me apaixonei por um garoto que sentava perto de mim. Primeira paixonite, fiquei besta. Eu sabia que ele era bissexual e isso me deu esperanças. Realmente dei a entender que gostava dele. Me sentia numa daquelas séries sobre adolescentes, curtindo o ‘high school’. Mas aí veio o baque. Numa das feiras de exposição de trabalhos mensais do colégio, vendo o tanto de casais que iam se formando no decorrer do dia, parti pra ação. O chamei num canto e contei tudo. Depois de cinco minutos em silêncio ele respondeu: ‘mas você é tão feio…’. Fiquei sem reação, pedi desculpas e fui embora.
Na semana seguinte perguntei pra uma colega se eu era realmente feio. Ela enrolou dizendo que ‘o que importa é o interior’ e tudo mais. Pedi para ser sincera. ‘Sim, você é feio. E não é pouco’. Tudo começou a se encaixar. Eles tinham vergonha de sair comigo e uma dose de repulsa por conta da minha aparência. No decorrer do ano foram deixando isso claro.
Me isolei por completo, numa tristeza profunda, até o final do ano. Foi horrível.

Ano novo, professores novos, alunos novos. Decidi dar a volta por cima e sair da fossa. Se antes eu era simpático, agora seria tão amável que qualquer um esqueceria da minha feiura. A situação piorou. Agora eu ouvia comentários maldosos quando passava pelo corredor. Apelidos que só entendi agora.
Comecei a gostar de outro garoto, de outra sala, e dessa vez fui mais discreto. Fiz amizade, o ajudei com os trabalhos, conquistei sua confiança. Depois de alguns meses éramos muito íntimos. Quanto senti segurança contei o que sentia. A resposta: ‘Eu até ficaria com você… mas não dá’. Perguntei o motivo. Ele desviou do assunto. Fui insistente. ‘Você não é atraente, sabe?’. Bang. Até hoje não entendo o que motivou as pessoas a serem tão sinceras comigo.
Entrei em depressão. As notas despencaram, a neura da minha mãe em me controlar se tornou mais intensa por conta disso, os professores só reclamavam. Me afastei dos poucos conhecidos que tinha. Eu lia vários casos de pessoas que se sentiam feias e não me sentia representado, por algum motivo. A sociedade me isolava por ser gay, e os gays me isolavam por ser feio.
Terminei o ensino médio raspando, com as notas riscando o vermelho. Consegui vaga numa faculdade particular para o segundo semestre.
Durante metade de um ano refleti muito. Não queria passar por tudo aquilo de novo na faculdade, queria tomar uma atitude. Sempre fui vaidoso, mas dessa vez comecei a extrapolar. Roupas novas, atividade física, alimentação saudável, todo tipo de tratamento pra acne, mudança de atitude. Me senti pronto.
Não adiantou. Foi desastroso. As piadas sobre minha aparência surgiram logo no primeiro mês. Pra conseguir os primeiros amigos foi um sufoco. Dar em cima de alguém? Nem pensar. Foquei nos estudos como forma de distração.
No meio do segundo ano recebi um comunicado, por um professor, de que uma empresa estava interessada em me contratar por conta do meu desempenho exemplar na universidade. Marcaram a entrevista, engoli o medo e fui de queixo erguido. Era o momento de esquecer tudo o que me deixou pra baixo.
Sala de espera: eu e outro garoto da minha universidade (lindo). Tremi. A autoestima evaporou. Nunca me senti tão inseguro. Eu sabia que tinha mais chances de ser contratado, tanto pelas recomendações dos professores quanto pelo meu esforço. Me chamaram. Logo na entrada senti a surpresa nos olhos do entrevistador. Fingi não perceber. No mais, foi tudo como eu planejei. Respondi tudo da melhor maneira possível. Me forcei a acreditar em mim por meia hora. A última pergunta me deixou constrangido: ‘você acredita que sua aparência poderia influenciar sua vida profissional?’. ‘Sim, a apresentação pessoal é fundamental para o desenvolvimento de boas relações com os clientes’. Ele deu um risinho de meia boca, me agradeceu e eu saí. A pergunta dele era sobre outra coisa. Não consegui a vaga.
Agora, estou aqui. Tenho faltado muito na faculdade, me isolando de novo. Pensei em me matar três vezes. Não o fiz por medo do que aconteceria com minha mãe.
Quero um conselho, qualquer coisa. As respostas que vejo para meu problema são pré-fabricadas. Por favor.
Z.”
Caro Z.

Você tem razão, normalmente as respostas sobre esse assunto não tranquilizam a nossa razão por que elas tentam mascarar uma questão terrível sobre a nossa cultura: odiamos o que é desarranjado ou feio.
Todo o esforço que novos movimentos têm feito para acolher a diversidade e incluir o que parece fora dos padrões de beleza, riqueza, status, raça ou gênero é muito positivo. O problema é que não conseguimos circular apenas nos lugares em que as pessoas adotam essa filosofia inclusiva.
Na dimensão filosófica é muito desejável incluir quem está acima do peso ou quem não tem o rosto simétrico e proporcional, mas na vida prática existe um resquício maciço de aversão cultural que atinge o desejo pessoal até dos mais receptivos. O que acontece na vida cotidiana é que as pessoas vão se adequando ou mascarando o fato de que não desejam ou não se sentem tão desejadas quando o assunto é beleza (ou a falta dela).

Beleza é relativa

A beleza extrema causa uma correnteza de emoções contraditórias, porque ela chama atenção ao mesmo tempo que nos lembra que é rara e beneficiária para poucas pessoas. A maioria de pessoas é composta do tipo dos não-bonitos e dos feios, ou seja, aqueles que foram excluídos do círculo de poder estético. Esses precisaram, para domar o sentimento de inferioridade, criar uma métrica compensatória, ou seja, entre os não-bonitos e feios as pessoas podem se ajeitar e encontrar truques estéticos ou psicológicos para desviar das supostas falhas.
capital erótico é muito controverso porque numa sociedade que elegeu o esforço pessoal como parâmetro da meritocracia acaba vendo pessoas que nasceram bonitas, sem nenhum esforço, furarem essa teia democrática. “Como eu que me esforço tanto para domar meu intelecto não sou tão recompensado como essa pessoa bonita consegue sem esforço?”. No fundo, esse é o mal-estar coletivo. Padecemos de uma contradição essencial que recompensa a beleza, apesar de condená-la moralmente, por passividade.
Nessa beleza relativa dos não-lindos, os feios continuam excluídos, pois eles não são apenas não-bonitos, mas rejeitados como quasímodos da pós-modernidade.
Quando Lizzie Velasquez, a mulher considerada mais feia do mundo, fez sua palestra motivacional no TED falando de como contornou sua feiúra congênita em função de uma anomalia genética, muitas pessoas aplaudiram o que ela disse, no entanto ela fez uma ressalva discreta (no minuto 12:05) sobre sua vida amorosa inexistente.
A beleza, portanto é relativa no universo dos não-bonitos, já que é possível adaptar o seu olhar para encontrar outros parâmetros estéticos.
Quando o elogio se dirige a uma figura como Gerard Depardieu, destacam: “o nariz dele tem um certo charme”. A beleza relativa é o destaque de um traço isolado de todo o resto que chama a atenção. A relatividade é um escape mais ou menos desajeitado do referencial normativo. Mas entre as pessoas realmente feias não há relatividade, até as mães, que veem beleza em tudo o que um filho faz, conseguem perceber que o filho é feio.
Outro argumento que se utiliza é do gosto pessoal, afinal há quem não ache consenso na beleza quase universal da Gisele Bündchen, Angelina Jolie ou Johnny Depp. Mas o gosto pessoal não escapa a apreciação de que existe beleza ali, ainda que não seja do seu agrado.

O que importa é a beleza interior

Esse é o discurso mais utilizado para ajudar uma pessoa feia a se conformar com sua condição estética, mas ela já parte de um contrassenso cultural. Vivemos numa cultura que superestima a aparência e subestima a personalidade e as virtudes internas. É como se todos dissessem algo como: “você é feio, mas pode ser legal, bom, simpático e talvez ganhe um doce no final. Talvez…”
Nem a beleza interior é tão recompensada amorosamente, pois uma pessoa honesta, agradável, generosa não é necessariamente mais desejada do que outra que é fugidia, instável, egocêntrica e imediatista. Queremos o jogo ganho aqui e agora e, se possível, sem esforço. Então, a beleza é bem vista mas causadora de ressentimento, porque não é para todos.
E mesmo entendendo esses aspectos não é possível tão facilmente fugir do tipo de avaliação sanguinolenta em relação à feiura.
Parece que as mulheres são mais tolerantes com a feiura dos homens. Já o inverso não acontece, os homens, sejam hétero ou homossexuais, são muito seletivos e exigentes porque costumam ser doutrinados a desejar corpos. Os homens podem até se encantar ou apaixonar por alguém que tenha o rosto feio (de preferência tendo o corpo bonito), mas dificilmente elegerão publicamente essa pessoa como um parceiro amoroso por receio de dois crivos: os amigos e a mãe.
A verdade que ninguém gosta de dizer é que o parceiro amoroso também é um troféu social e a beleza facial parece ter um papel fundamental para que esse status aumente ou diminua. O prestígio de ter fisgado um peixão, raro e bonito é um signo de poder pessoal que insinua uma habilidade secreta por ter realizado esse prodígio.
Na maior parte das vezes a beleza interior vem depois, como complemento à beleza exterior e apenas se não houver outra alternativa.

A autoestima do feio

A autoestima é um tema tão controverso porque é muito difícil separar o AUTO do ALTER. Afinal, o eu e o outro são categorias indissociáveis. Os critérios que uma pessoa usa para apreciar a si mesma são alimentados coletivamente, então a autoestima é sempre em alguma medida uma alter-estima internalizada.
Seria possível que você gostasse de si mesmo Z. sem que ninguém concordasse com isso? A resposta não é simples, pois seria como se você chegasse com um milhão de notas de dólares que ninguém credita serem reais e afirmasse ser milionário. Só é real quando a opinião é consensual, caso contrário, você estaria delirando. Então, seu senso de importância pessoal precisa ser regulado por uma fonte interna que não se contraponha ou se confirme à uma validação externa.
Quasímodo, do filme “O Corcunda de Notre Dame”
Mas como desenvolver essa blindagem psicológica se o maior problema da feiura é criar um isolamento social doloroso? O que você alega, Z., é que as pessoas se afastam e isso é difícil. Se tentar fingir que a opinião dos outros não importa, estará se iludindo numa bolha pessoal inatingível. Em última instância, se a opinião dos outros não importasse, logo, não deveria valer caso alguém gostasse de você.
Quando alguém diz que a opinião dos outros não importa, ela só está se protegendo da dor de ser alvo de visões oponentes à sua, pois no fundo queremos ser amados sem ter de provar nosso valor. A intimidade com os outros importa, sim. Você quer proximidade pessoal/sexual, então não adianta bloquear a importância das opiniões externas.
No entanto, existe a possibilidade de você se relacionar com as pessoas a partir dessa vulnerabilidade, sem esforços falsos, sem cinismo e sem se surpreender que a reação das pessoas será negativa. Você não as condena pessoalmente, porque elas não conseguem ter uma escolha consciente em não ter uma primeira impressão ruim. Se elas pudessem escolher, iriam preferir não se importar com sua aparência, mas elas se importam.
O esforço de quebrar essa barreira que o deixa invisível vem de como você se comporta diante de si mesmo. Ao deixar o assunto velado você não dá a chance da pessoa lidar com o próprio mal-estar. Ao passo que quando o assunto é aberto a pessoa recebe uma chance de ultrapassar e atravessar isso com você.
Isso só acontecerá se puder fazer esse movimento junto e não se opondo aos outros. As pessoas não compreendem sua feiúra, e como tudo o que não compreendem, elas atacam.

O que fazer, então?

Você tem diante de si um desafio trabalhoso. Ser gentil e amável são características que você não precisa perder ou exagerar, são atributos legítimos e agradáveis, mas é possível que falte vigor para sua personalidade.
Nick Vujicic, que nasceu sem os braços e as pernas tem feito um percurso não usual ao usar sua limitação como fator motivacional e de autofortalecimento. Recentemente casou e teve um filho, mas você não precisa ser um palestrante motivacional para lidar com suas dificuldades.
Uma alternativa seria entrar em isolamento catatônico, partindo do pressuposto que uma vida isolada é possível, sem amores românticos. Ou realizar um esforço gradual e crescente para dialogar com uma sociedade que tão cedo não vai alterar suas exigências estéticas.
No segundo caso, talvez você precise lidar com o fato de que não será alvo imediato de desejo e não pode garantir que em algum momento seja. Nessa aceitação mais tranquila e sem ressentimento pode ser que sua ansiedade por agradar ou ser desejado diminua, trazendo maturidade e uma crescente autonomia de sua autoestima.
A feiura pode ser inicialmente perturbadora, mas não o torna inevitavelmente repugnante, como se sente agora. Paradoxalmente, esse mar de pessoas exigentes que habitam a Terra são as mesmas que estão perdidas em suas vidas pela mesma busca de aceitação que você, Z.
O mundo aprecia pessoas como Nick e Lizzie que, mesmo com suas limitações, sentem que são pessoas dignas e merecedoras de amor, simplesmente porque oferecem uma presença estável e vivaz mesmo tendo recebido quase nada dos outros. E, por isso, elas se tornam um farol que representa esperança de que podemos ser menos preconceituosos.
É admirável ver alguém que poderia se afundar num mar de autocomiseração não fazê-lo. Ninguém gostaria de trocar de lugar com essa pessoa, mas ela passa a ser admirável e essa bem querência abre caminho para um amor humano, ainda que não sexual. Nessa fresta existem pessoas que também se esforçam diariamente para superar suas barreiras. Algumas são feias, outras se sentem feias e, nessa identificação, surgem boas relações e possíveis romances. Isso forçará sua própria barreira com a feiura dos outros a diminuir.
Não existe uma rota garantida, mas se conseguir respirar fundo e prosseguir nos seus esforços, você terá mais chances para aceitar aquilo que não está no seu controle, ao invés de se acanhar diante do olhar reprovador dos outros. Nunca é o fim, enquanto você não desiste.
* * *
Nota:  A coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas), mas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não me condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.
A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão livre, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.
Antes de enviar sua pergunta olhe as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa e se mesmo assim achar que ela beneficiará outras pessoas envie para id@papodehomem.com.br
Frederico Mattos


Sonhador nato, psicólogo provocador, autor do livro "Mães que amam demais". Adora contar e ouvir histórias de vida. Nas demais horas cultiva a felicidade, lava pratos, faz muay thai, oferece treinamentos de maturidade emocional no Treino Sobre a Vida escreve no blog Sobre a vida. No twitter é@fredmattos.

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