A vez da última vez

A gente nunca sabe quando é a última vez de verdade. Seja do que for. Como aquela "última vez" que vem na extremidade de uma insatisfação ou na ameaça que traveste um pedido magoado: "seja a última vez que você faça isso comigo...!" Um dia, quando menos se espera, esse tipo de última vez foi a última mesmo, e aí, não tem mais jeito, foi como a última gota d'água que fez o copo da paciência transbordar. Existe a "última vez" que, com as promessas oportunas no reconhecimento dos erros que se comete, vão doer bem fundo dentro de um coração apaixonado. Existe sempre uma "última vez" disso, daquilo ou para aquilo, mas a maioria nunca é levada a sério. Uma das piores "última vez" é aquela com que assumimos um compromisso silencioso dentro de um quarto transformado em caverna, o esconderijo para todos os nossos medos e onde guardamos todas as malas cheias do nosso passado. Geralmente, nunca nos lembramos do primeiro beijo, do primeiro abraço, mas seguramente nunca nos esquecemos da última vez que estivemos na outra ponta de uma despedida com a qual não concordamos e que não houve jeito ou milagre de ainda ter uma promessa de "ultima vez" de ter feito isso ou aquilo. Que bebo, que chego tarde, que grito, que esbravejo, que minto, que engano, que abro a minha porta, a minha janela, que me exponho, que conto meus segredos, que exponho as minhas entranhas, que falo dos meus medos, dos meus desesperos, ou confesso meus absurdos, principalmente quando eles nem precisavam ser confessados assim, mesmo que tenha sido dentro de um desabafo que deveria ter sido só nosso... Na realidade, sempre existe uma última vez escondida e nem sabemos quando ela acontecerá. Ela é traiçoeira, não avisa, mas está sempre lá, à espreita e somos uma presa fácil no ir e no vir, bem na alça da mira de uma flecha certeira, ou, pior, uma bala perdida. Existe a "última vez" que ilustra, dramaticamente, uma história que se conta quando o "ir" já prenunciava o nunca mais voltar. A última vez que vimos, que abraçamos, que brindamos, que rimos juntos, que viajamos, que nos encontramos, que... Tanta coisa! Tanta coisa! Li, nem lembro onde, uma frase que me fez refletir: "o fim da intimidade compulsória com o ritual da despedida..."- que encerra a conscientização da finitude que recusamos aceitar, mas sem jeito de adiar.


Fala-se por aí de um tal de "baixo astral". É preciso explicar melhor o que isso quer dizer, porque por mais baixas que estejam as estrelas elas estão sempre no alto, bem alto, para onde sempre voltamos nossos olhares piegas, nossos pedidos, nossos sonhos. Melhor foi por a culpa nas estrelas. Eu acho que as estrelas sempre têm razão. E como! Quando foi mesmo a última vez que você olhou para cima, para essas estrelas, para a luz, para o céu escuro? Ou céu claro, puro, bem anil ou cheio das cores únicas e mágicas de um nascer ou por do sol? Quando foi a última vez que você deixou rastros alegres ou tristes sobre a areia úmida de uma beira de praia? E quando foi que deixou esses rastros em caminhadas sem pressa, testemunhas de uma parada aqui e ali para um abraço? Não lembro quando foi a primeira vez que fiz isso sobre as dunas de um porto só de nome quando ainda se podia curtir uma noite de luz cheia, mas lembro da última vez que abri um envelope com um lenço que um dia cheirou a Trussardi! O perfume dela, do rosto, escorrendo pelo corpo sem compromisso com qualquer pudor, com qualquer medo. "Vida", estava escrito. Era vida, sim, uma vida que parecia eterna. Foi, nada! Aconteceu a "última vez" e a vida continuou, mas deixando rastros em direções opostas, enquanto envelhecíamos separadamente. Quando tudo chegar perto do fim, quando chegar "a vez da última vez" quero ver o filme passando, nem que seja bem depressa, e só eu saberei qual será o rosto que carregarei comigo pelo resto da eternidade...

by A. Capibaribe Neto