Prisão patriotismo
É deliciosa a sensação de irmandade que nos acolhe quando estamos em nossa terra, cercadas de iguais, praticando nossos costumes, ouvindo nossa língua, nosso sotaque.
É reconfortante fazermos parte de um estado-nação que nos reconhece como pessoas cidadãs, que garante nossos direitos humanos fundamentais, que nos fornece um passaporte aceito por outras nações.
Infelizmente, essa nossa sensação de comunidade, que não é menos real, concreta e verdadeira por ter sido imaginada, fabricada, construída, muitas vezes nos leva a odiar ou desprezar as outras pessoas que não nasceram no nosso chão, que têm outros costumes, outras línguas, outros sotaques.
Então, se amamos exaltadamente essas abstrações políticas imaginárias, com seus simbolozinhos e musiquinhas; se nos dispomos a matar e morrer por elas; se engolimos acriticamente o discurso nacionalista-excludente do “ame-o ou deixe-o”, então, sim, o patriotismo pode ser uma prisão.
O patriotismo das leoninas
Como pessoas humanas, nossa tendência é sempre naturalizar o mundo que recebemos. As coisas são assim porque sempre foram assim porque sempre serão assim.
Para nós, é tão normal esse mundo onde as pessoas se dividem e se identificam com base no pedaço de chão onde nasceram que mal conseguimos perceber o quanto esse sistema é arbitrário e convencionado.
Por que não criarmos outras irmandades?
Se existem duas pessoas competindo, o natural, o normal, o esperado, o óbvio, é que eu torça pela pessoa brasileira.
Mas por que me identificar com linhas arbitrárias traçadas no chão e com as pessoas que compartilham comigo o acidente histórico e fortuito de ter nascido no espaço compreendido dentro dessas linhas?
Por que não traçar outras linhas arbitrárias para definir nossas lealdades?
Ao invés de traçar linhas arbitrárias no espaço, por que não traçar, digamos, linhas arbitrárias no tempo?
Por que não torcer para a pessoa que é aquariana como eu?
Por que não torcer pelas pessoas que têm o mesmo gênero? A mesma cor? A mesma profissão? A mesma classe social? O mesmo tipo sanguíneo?
Por que todas essas opções nos soam tão estranhas, insólitas, injustificadas, mas torcer pela pessoa que nasceu no mesmo país que nós, por outro lado, nos parece tão autoevidentemente natural?
Será mesmo que quaisquer duas mulheres, quaisquer dois metalúrgicos, quaisquer dois leoninos não têm mais em comum entre si do que, digamos, um amapaense branco rico e uma gaúcha canhota faxineira, uma sergipana capricorniana recém-nascida e um mato-grossense loiro mudo?
Por que o fato de terem nascido no mesmo estado-nação parece compensar e superar todas as outras diferenças?
Quem foi que nos convenceu que, apesar de suas inúmeras, óbvias, gritantes diferenças étnicas, linguísticas, religiosas, etc, que uma paranaense e uma baiana têm mais coisas em comum do que diferenças?
Os gaúchos dos pampas argentinos e riograndenses, apesar de, na prática, fazerem parte de uma mesma nação, de terem os mesmos hábitos, costumes, estilos de vida, etnias, etc, ficaram séculos se matando ferozmente, alegremente, seguindo as ordens de metrópoles com as quais não tinham nada em comum, que pelo contrário desprezavam, derramando seu sangue para defender seus compatriotas da Terra do Fogo e da Amazônia, que nem conheciam e com quem não tinham nada em comum.
Que força é essa capaz de fazer esses homens ignorarem sua óbvia irmandade e se prontificarem a abrir mão de suas vidas em nome de uma outra irmandade, mais etérea e mais abstrata?
“Esses gringos burros que acham que falamos espanhol!”
Um dos sintomas do patriotismo arrogante brasileiro é a nossa irritação irrefreável diante de qualquer ignorância estrangeira sobre nós.
Muitas das pessoas leitoras com certeza já ficaram indignadas com “gringos burros” que achavam que no Brasil se falava espanhol ou que nossa capital era o Rio de Janeiro ou Buenos Aires.
Mas quantas dessas pessoas leitoras indignadas sabem qual é a capital da Mongólia ou que língua falam na Nigéria?
Para não ir tão longe, quantas sabem qual é a capital do Suriname ou que língua falam na Guiana?
Para ficamos somente na nossa própria abstração política, quantas sabem qual é a capital de Roraima, Tocantins, Sergipe?
Algumas pessoas leitoras talvez até saibam a resposta para essas perguntas, mas isso não quer dizer que:
- outras pessoas tenham obrigação de saber, ou que;
- essas pessoas-que-sabem, por mérito de seus “conhecimentos superiores”, tenham adquirido assim o direito de hostilizar quem não sabe.
Poucas atitudes são mais narcisistas do que essa constante naturalização do nosso conhecimento: considerar óbvio e obrigatório que todas as pessoas têm que saber aquilo que sabemos, ao mesmo tempo em que achamos que ninguém tem obrigação de saber aquilo que não sabemos.
Pois é óbvio que todos têm que saber a língua falada no México (afinal, até eu sei!) mas é igualmente óbvio que ninguém tem obrigação de saber a língua falada na Guiana (afinal, nem eu sei!).
A maioria das pessoas brasileiras, entretanto, não sabe responder essas perguntas. Não sabem a capital da Guiana Francesa nem o idioma oficial do Congo.
Ficam, inclusive, ainda mais indignadas quando chamo a atenção para esse fato: retrucam que não é a mesma coisa. Que não dá pra comparar o Brasil com a Indonésia ou com a Costa Rica. Que Roraima é um estado desimportante. Que ninguém tem obrigação de saber essas coisas.
Ou seja, suas respostas indignadas expõem e exemplificam justamente o lado mais mesquinho do nosso narcisismo patriótico arrogante.
Pois o que torna o patriotismo uma prisão é justamente incutir em nós essa certeza absoluta e peremptória que o Brasil é intrinsecamente mais importante que a Mongólia ou que a Jamaica. Que as pessoas do mundo têm que saber a língua falada no Brasil (ou senão são BURRAS) mas que, francamente, ninguém têm obrigação de saber a língua falada na Malásia.
Nosso país não importa, e nem nós
Poucas coisas são mais importantes do que encararmos de frente nossa suprema desimportância.
Somos desimportantes enquanto pessoas individuais, primatas mamíferas de vidas curtas, uma entre sete bilhões. Somos desimportantes enquanto pessoas nacionais, cidadãs de um estado nacional recentíssimo e periférico. Somos desimportantes até como planeta, um entre bilhões e bilhões, orbitando uma estrela mediana e medíocre.
Dá para qualquer pessoa passar a vida inteira sem jamais pensar no Brasil e isso não faria dela uma pessoa inferior, inculta, ignorante.
De fato, grande parte das pessoas humanas mais incríveis, generosas, inteligentes, que já existiram nos últimos duzentos anos jamais dedicaram mais do que poucos minutos, ou mesmo segundos, para reconhecer o fato de que, em algum lugar, existia uma nação chamada Brasil. Não saberiam que língua falamos, ou qual é a nossa capital. E daí?
Sejamos sinceras: quantas de nós, pessoas leitoras brasileiras, já dedicamos muito tempo para pensar sobre a Romênia, ou sobre o Zaire, ou sobre Honduras?
Amar o Brasil faz tão pouco sentido quanto odiá-lo
Quando publiquei uma primeira versão desse texto, quase dez anos atrás, muitas pessoas leitoras perceberam nele uma crítica ao Brasil e correram para concordar:
“É isso aí. O Bananão é mesmo uma bosta. É por isso que essa merda não vai pra frente. Foda-se o Brasil mesmo! etc.”
Mas meu texto não está fazendo nenhuma afirmação qualitativa sobre o Brasil. Não ataca, nem defende. O Brasil não é pior nem melhor que outros Estados-Nações.
Nesse texto sobre patriotismo, os exemplos são brasileiros somente porque o público-alvo é brasileiro.
Odiar o Brasil por seus muitos defeitos faz tão pouco sentido quanto amá-lo por suas muitas qualidades.
O Brasil, essa entidade abstrata incorpórea inanimada, não tem como perceber nem retribuir nossos ó-tão humanos sentimentos, sejam eles de lealdade ou de desprezo, de gratidão ou de raiva.
Orgulho de ser brasileiro
Eu respeito e valorizo o Brasil.
O Brasil é o estado nacional que garante os meus direitos humanos básicos. Foi o Brasil que me deu as estradas, a segurança pública, a paz social, a estabilidade institucional, a saúde pública, a água potável, etc etc, que permitiram que eu me desenvolvesse como pessoa humana. Mais especificamente, foi o Brasil que pagou pela excelente educação superior que obtive na universidade pública onde estudei.
Nada disso quer dizer que eu vá amar, ou mesmo me orgulhar, dessa abstração política abstrata inumana incorpórea chamada Brasil.
Em troca de tudo o que ele me ofereceu e ainda oferece, o Brasil me exige ou pede algumas obrigações, como ser reservista das Forças Armadas, ser mesário, pagar impostos, obedecer leis – obrigações que eu, em larga medida e de acordo com a minha consciência, cumpro.
Mas, gostando eu ou não do Brasil, sendo eu grato ou não ao Brasil, essa não é uma relação afetiva: é uma relação contratual (o tal Contrato Social), regulamentada pela Constituição da República.
Meu amor eu reservo para seres animados.
* * *
O patriotismo é uma forma de apropriação indevida.
A ginasta treinou a vida inteira desde a infância. Fez todo tipo de sacrifício. Não se divertiu. Castigou seu corpo. Enfrentou todos os entraves institucionais em seu caminho. Então, coroou todos esses esforços conquistando a medalha de ouro nos jogos olímpicos.
E tudo para que, no dia seguinte, milhões de pessoas que nunca lhe ajudaram em nada, que nunca nem lhe levaram uma aguinha durante os treinos, possam dizer:
“Levamos o ouro na ginástica olímpica!”
Levamos? Nós? Nós quem?
* * *
Um dos meus escritores favoritos, judeu norte-americano, conta a seguinte história.
Ele estava conversando com um amigo, também judeu, que disse, em tom de orgulho e confidência:
“Sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da humanidade mas ganhamos dezenas por cento dos prêmios Nobel? Não é de se orgulhar?”
O escritor pensou um pouco e respondeu:
“E você sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da população dos Estados Unidos mas somos quarenta por cento dos estelionatários?”
O amigo ficou chocado:
“Sério?”
“Sério. Chega a dar vergonha de ser judeu, né?”
Mas o amigo foi veemente:
“Claro que não, ué! Eu nunca cometi estelionato, por que teria vergonha?”
“Bem, esse número eu acabei de inventar agora, mas aqueles prêmios Nobel também não foi você que ganhou. Por que tem orgulho deles?”
* * *
Eu não tenho orgulho de ser destro. De ter 1,80 de altura. De ser aquariano. De ter olhos e cabelos castanhos.
Por que teria orgulho de ser brasileiro?
Ser brasileiro, assim como ser destro, não é mérito meu, não é nada que eu fiz.
É uma circunstância fortuita totalmente fora do meu controle.
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Ter orgulho de nossas afiliações coletivas é tão comum e normatizado que nunca nem pensamos a respeito. Vivemos cercados de pessoas que têm orgulho de ser brasileiras, católicas, cariocas, flamenguistas, mangueirenses.
É normal e aceitável um torcedor brasileiro qualquer falar que somos fodas no futebol, que vamos arrasar todos os outros times, que ninguém joga bola como nós, etc.
Afinal, quem nunca?
Por outro lado, um astro de futebol (uma dessas pessoas que está de fato em campo trabalhando duro para ganhar as partidas) que diga qualquer coisa que demonstre auto-consciência de o quão foda ele é vai enfrentar uma ojeriza generalizada. Será chamado de arrogante, vaidoso, soberbo.
O pecado supremo do vaidoso é justamente quebrar o pacto de silêncio que sustenta nossa auto-estima coletiva.
Para viabilizar nossas vidas, tantas vezes chatas e vazias, precisamos de conquistas coletivas das quais possamos nos apropriar.
Ou, em outras palavras, “ganhamos o penta!”
O que poderia ser mais intolerável do que sermos rudemente lembrados, e, pra piorar, por uma pessoa mais rica, mais famosa, mais sarada, mais bonita, que, na verdade, foi ELA que ganhou o penta, não nós?
É claro que vamos odiar esse babaca.
O patriotismo é uma comunidade imaginada
Somos uma espécie em busca de padrões.
Talvez nossa maior habilidade enquanto espécie seja olhar para o mundo a nossa volta, buscar padrões e, em cima deles, criar narrativas.
Desde a pré-história, já levantávamos os olhos para o céu, víamos um punhado de pontos de luz e logo já criávamos a constelação de escorpião ou de touro, cada uma decorada com longas eelaboradas historinhas de morte e traição, que terminavam sempre com os deuses transformando alguém em estrela.
Hoje em dia, o jornalismo esportivo durante a Copa do Mundo é pura literatura, onde longas e épicas narrativas nacionais se entrecruzam ao infinito.
A seleção de Mordor não ganha da Latvéria desde 1963! O maior jejum na história das Copas foi de Oz, que ficou sem ganhar um jogo entre as Copas de 1133 e 1345!! Hoje é dia da revanche: vai ser a oportunidade de Avalon se vingar das duas derrotas que sofreu nas mãos da Ciméria, em 1928 e 1969!!! Sempre que Asgard enfrenta Westeros em um dia par, ela perde: será que o padrão vai se repetir hoje também, Galvão?! Etc, etc.
Nada contra o futebol e nada contra essas narrativas épicas, que não são menos reais e eletrizantes por serem imaginadas.
Afinal, não fossem essas narrativas simbólicas, que nos colocam dentro de uma tradição centenária de dramas emocionantes e inacreditáveis reviravoltas, uma partida de futebol seria apenas uma hora e meia de milionários brincando de bola para nos distrair do fato de que nunca, nunca teremos o estilo de vida privilegiado que eles têm.
Mas existe uma diferença.
Acompanhamos a novela, e odiamos a vilã, e amamos a mocinha, ou vice-versa, e aqueles fatos que nunca aconteceram com pessoas que nunca existiram realmente nos fazem sentir emoções fortes e verdadeiras, choramos, gargalhamos, odiamos.
Depois que desligamos a TV, porém, por mais que tenhamos nos emocionado profundamente, sabemos que nada daquilo era verdade, e que nem a obra e nem nossas emoções deixaram de ter valor por causa disso.
O problema do patriotismo é que, por mais que saibamos da sua ficcionalidade inerente, temos muita dificuldade em desligá-lo.
* * *
Nosso chão é mais concreto que nossa nação
A palavra país veio do italiano paese. No original, não quer dizer somente país ou pátria. Mio paesetambém quer dizer minha vila, minha cidade, meu bairro. Onde quer que eu me sinta em casa.
Uma norte-americana morando no Rio uma vez me contou que ficou no ponto por horas esperando o ônibus parar e nada. Até que percebeu que, aqui no Brasil, você precisa chamar o ônibus, senão ele não para no ponto.
Ser uma pessoa estrangeira é isso: perder horas da sua vida por desconhecer uma regrinha boba. Algo que nunca aconteceria no seu paese.
Mio paese é onde sei todas as regras, onde eu sei me virar. Pombo de cidade grande não morre atropelado.
No meu passaporte, legalmente, sou brasileiro, mas seria muita presunção minha me pensar brasileiro. Não conheço o Brasil. Não sei como as coisas funcionam no Amapá. Não imagino como seja a realidade do Acre. Sou carioca, e olhe lá. A cidade é grande e tem bairros com costumes e realidades que eu também desconheço.
Não vou dizer que amo esse chão. Chão não se ama. Chão é chão. Pedra, terra.
Mas sinto, de maneira profunda e real e concreta, que esse chão é meu.
A geografia nos ensina que o o chão, ou seja, o espaço, não é simplesmente um espaço, mas também é produto, condição e meio das relações humanas. De um modo bem real, eu SOU essas ruas, essas praias, essas montanhas, essas lagoas. Minha vida e minha subjetividade foram moldadas pelo aterro do Flamengo, pela favela do Vidigal, pela lagoa de Marapendi.
O mundo é cheio de problemas: assisto Juno e fico comovido com toda a questão da gravidez infantil, aborto e adoção, mas assisto Tropa de Elite e o filme ME aponta um dedo direto na cara: esse é o problema da minha época, da minha terra, da minha geração.
Na loteria da História, foi essa batata quente que me coube.
O bônus é meu, o ônus também.
Ninguém olha para baixo
Não quero inocentar a metrópole: se o noticiário brasileiro finge que o Equador e a Nigéria não existem, o noticiário europeu e norte-americano também.
O pecado de não olhar quase nunca para baixo (ou seja, de quem consideramos, do alto de nossos preconceitos, que está abaixo de nós) é um dos mais disseminados do mundo.
Somente olhamos, e consumimos a cultura, e imitamos as tendências, e nos interessamos pelas últimas notícias, de quem percebemos como nossos iguais, ou de quem respeitamos e tememos como nossos pretensos superiores.
A diferença é que o Brasil se considera acima do Equador e da Nigéria.
Já os Estados Unidos e a Europa, por seu lado, colocam Brasil, Equador e Nigéria no mesmo saco.
Para o arrogante patriotismo brasileiro, é justamente essa a maior humilhação.
O Brasil, visto de fora
Morei em Nova Orleans por seis anos. Trabalhei no Departamento de Espanhol & Português considerado o segundo mais produtivo do país. A biblioteca da minha universidade tinha o segundo maior acervo latino-americano dos Estados Unidos.
Nas minhas aulas, ensinadas em português, pessoas alunas norte-americanas (mas não somente) liam, no original, autores como José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, entre outros. (E também uma das mais importantes autoras brasileiras de todos os tempos, tão esquecida entre nós, que completaria cem anos em 2014, Carolina Maria de Jesus.)
Apaixonados pela língua e pela cultura brasileira, minhas pessoas alunas não eram somente estudantes de literatura voltadas para uma carreira acadêmica. Em minha sala de aula, havia médicas estudando doenças tropicais, advogadas se especializando em direito internacional, empreendedoras querendo fazer negócios com o Brasil, ativistas buscando trabalhos em ONGs brasileiras.
Minhas pessoas alunas viam o Brasil como uma economia pujante e uma cultura exuberante. Achavam que o Brasil iria longe e queriam fazer parte disso. Consideravam que, no futuro, onde quer que estivessem, falar português e entender o Brasil iria lhes trazer oportunidades pessoais e profissionais.
Antes de sair do Brasil, eu não via nada disso. No exterior, aos poucos, comecei a perceber.
Na universidade norte-americana, eu estudava e trabalhava ao lado de colegas de todos os países da América Latina. Por falta de oportunidades em seus países, iam ficando, ficando e, quando percebiam, tinham feito a vida e a carreira nos Estados Unidos.
Um dos colegas era um homossexual salvadorenho com uma tese brilhante sobre o discurso machista e as imagens fálicas nas eleições latino-americanas. Ele gostaria muito de voltar para El Salvador – mas pra fazer o quê? Nos EUA, ele em breve seria um professor universitário merecidamente bem pago. Em El Salvador, além de sofrer forte preconceito, suas perspectivas profissionais eram minúsculas – e ainda menores por sua orientação sexual.
Apesar de estudar a América Latina e morrer de saudades de seus países, muitas das minhas colegas latino-americanas tinham simplesmente se resignado de que a única maneira de terem vidas dignas como acadêmicas era morando nos Estados Unidos.
Enquanto isso, no Brasil, foram criados 110 novos campi de universidades federais em 27 estados brasileiros somente entre 2003 e 2009 – isso pra não falar da explosão de universidades particulares que, apesar de não terem pesquisa de primeira, oferecem centenas de milhares de empregos para professores e professoras universitárias.
Percebi então que eu, pessoa brasileira, tinha escolhas.
Como tantas colegas, eu poderia fazer a escolha perfeitamente válida de ficar nos Estados Unidos e construir ali uma carreira.
Mas, ao contrário da maioria delas, eu tinha a escolha de voltar para um país com um campo universitário amplo, livre e bem-pago, onde poderia desenvolver as mesmas pesquisas que desenvolveria nos Estados Unidos, onde também poderia construir uma carreira próspera.
E eu tinha essa escolha, ao contrário do meu colega salvadorenho, não por mérito meu ou demérito dele, mas porque éramos ambos herdeiros de milênios e milênios de decisões acumuladas de nossas pessoas antepassadas, que nos trouxeram a esse momento histórico no qual a cidadania brasileira, de fato, oferece uma gama de escolhas que a cidadania salvadorenha não oferece.
Para bem ou para mal, essas abstrações políticas imaginadas que nos dão passaportes e garantem nossos direitos constitucionais também nos limitam e nos possibilitam de diversas maneiras diferentes.
O Brasil, onde não se humilha ninguém
Faz alguns anos, a Espanha começou a deportar pessoas brasileiras, causando um certo alarde na nossa imprensa.
Uma jogadora de vôlei, mesmo tendo sido convidada por um clube espanhol, não pôde entrar no país e ainda foi humilhada pela imigração. Depois de voltar, desabafou:
“Não quero mais sair do Brasil. Aqui, pelo menos, eu não sou humilhada da forma que fui lá na Espanha.”
Entendo como ela se sente. Quando morei fora, também fui humilhado diversas vezes.
* * *
Humilhação é quando temos que ouvir calados
Nova Iorque, imigração do JFK.
Estou com o sobretudo em um braço, a mochila no outro, coisas penduradas por todo corpo.
Quando o oficial da Imigração pede meus papéis, eu estico a mão até ele, documentos dobrados entre os dedos, mas sem desgrudar o antebraço do meu corpo, pra não cair tudo.
Ele faz que vai pegar o papel: quando eu solto, ele tira a mão. Os documentos deslizam vagarosamente até o chão e ele diz:
“Can’t you even unfold it, you lazy sac of shit?”“Não consegue nem desdobrar o papel, seu saco de merda preguiçoso?”
Lentamente, eu deposito todas as minhas coisas no chão, me abaixo, pego o papel, desembrulho e dou pra ele.
Não foi nem a primeira nem a última vez em que fui humilhado entrando nos Estados Unidos.
* * *
Engoli calado.
Engolir calado dói.
Talvez essa seja a essência da humilhação: quando me xingam, seja um leitor babaca nos comentários ou um mendigo bêbado na rua, eu posso escolher responder ou não – geralmente, não respondo.
Mas é uma escolha.
Quando um oficial da imigração me humilha e não posso responder, aquilo é cancerígeno.
Quando nossa pátria nos humilha, fugir pra onde?
A pessoa brasileira que tem condições financeiras de ser humilhada no exterior costuma ser aquela que nunca é humilhada no Brasil.
Na minha terra, sou dotô, sou sinhozinho. Até nas duras, me tratam com respeito. Do Galeão afora, entretanto, sou só mais um, com cara de latino nas Américas e de árabe na Europa. Não sabem como sou especial, que sou único, que tenho pai rico, que faço doutorado, que escrevo romances, esses estrangeiros ignorantes!
Entretanto, reagir à vergonha voltando correndo para um Brasil idealizado onde não se humilha ninguém é pura ilusão.
Quando me humilham no exterior, tento me colocar no lugar daquelas pessoas brasileiras que são humilhadas todos os dias, em seu próprio país, em todos os seus encontros com o Estado, e não apenas durante as viagens que escolhem fazer.
Quando o oficial da imigração norte-americana me humilha, eu posso fugir de volta para o Brasil.
Quando um policial militar humilha um cidadão brasileiro, carioca, negro, na favela onde mora, ele vai fugir para onde?
Quando uma mulher brasileira é sexualmente assediada e depois desacreditada pela polícia ao tentar dar queixa, ela vai fugir para onde?
Verás que um filho teu não foge à luta
No ano em que completei dezoito anos, prestei o juramento à bandeira, ali no primeiro distrito naval, às margens da baía de Guanabara.
No mesmo grupo, havia vários jovens negros, magros, aparentemente favelados. Na hora de jurar que protegeriam a nação mesmo com a própria vida, mais de metade deles simplesmente riu e pulou esse trecho. O sargento ficou possesso, esbravejou, exigiu respeito. Finalmente, os meninos falaram lá as tais palavrinhas mágicas que os militares tanto queriam ouvir e pudemos todos ir embora.
Eu fui direto para o Galeão, onde a família estava me esperando para passarmos o mês esquiando na Áustria. No caminho, me lembro de pensar coisas como “que falta de respeito”, “é por isso que o Brasil não vai pra frente”, etc.
Demorei muito para entender que o Estado tinha significados diferentes para mim e para aqueles meninos. Mais importante, que o Estado se comportava de forma diferente comigo e com aqueles meninos.
Que as forças de proteção e repressão do Estado tinham sido criadas justamente para proteger a mim e reprimir a eles. Sempre.
(Existe um teste simples para saber se você é privilegiado. Digamos que está num bar, começa uma confusão e, de repente, soa a sirene da polícia, você: 1) fica aliviado, pois está salvo e tudo vai se resolver; ou 2) fica tenso, segura a identidade entre os dedos e evita movimentos bruscos?)
Falta de respeito não era aqueles jovens brasileiros se negarem a morrer pelo Brasil.
Falta de respeito era o Brasil, depois de dezoito anos tratando-os como pivetes e bandidos, ainda ter o descaramento de pedir que morressem por ele.
Nossa pátria é onde não nos humilham
No Brasil, eu, homem, branco, hétero, cis, classe média, sou uma das poucas pessoas verdadeiramente tratadas como cidadãs.
Enquanto isso, vivo cercado de pessoas mulheres, negras, trans, pobres, homossexuais, sem-teto, portadoras de deficiência, etc, parte de um enorme exército de cidadãs de segunda classe, desfrutando de ainda menos direitos do que eu desfrutava como imigrante latino nos Estados Unidos.
A questão, portanto, não é ser patriota ou antipatriota, estar em nossa terra ou em outra terra.
A questão é outra: se não somos respeitadas como pessoas e como cidadãs, de que adianta estar em nossa pátria? Aliás, para que serve essa pátria? A quem essa pátria serve?
Nossa pátria é onde nos respeitam.
Só uma pátria que nos respeita tem o direito de nos pedir para arriscar a vida por ela.
Talvez fosse o caso de derrubar tudo
Minha ex-mulher nasceu em uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população de rua em nossas calçadas.
Para minha imensa surpresa de carioca, a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas. Para ela, era como se uma única criança dormindo ao relento já fosse uma enorme tragédia. (E é!)
Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todas as cariocas já trazem do berço.
É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror.
Mas, se precisamos ser insensíveis para funcionar em sociedade, talvez essa sociedade é que não devesse funcionar.
Talvez fosse o caso de derrubar e fazer outra.
Para que serve essa pátria? Para quem serve essa pátria?
Hoje, economistas admitem que o salário mínimo é desumano e indigno, mas argumentam, com resignação, que o país iria à falência se pagasse um salário mínimo humano e digno.
Ontem, cafeicultores admitiam que a escravidão era desumana e indigna, mas argumentavam, com resignação, que o país iria à falência se as lavouras fossem plantadas por pessoas assalariadas.
Seja na época colonial ou no governo Lula, o consenso entre as pessoas brasileiras que vivem em condições humanas e dignas é sempre o mesmo: o Brasil só pode existir enquanto entidade política viável se mantiver grande parte das outras pessoas brasileiras em condições desumanas e indignas.
Mas é viável uma entidade política que não consegue nem mesmo garantir condições humanas e dignas para a maioria de sua população?
Nesse caso, existir para quê? Existir para quem?
Ao ver a bandeira brasileira servindo de proteção a navios negreiros, bradou Castro Alves:
Antes tivesse sido destruída na batalha do que servindo a um povo de mortalha.
Patriotismo e história
O mundo em que vivemos não é o único que poderia ter sido.
A História tende a apagar a própria História: de tanto ser repetida e estudada pelas novas gerações, ela se transforma em predestinação e nos apresenta o mundo de forma naturalizada, como se tudo tivesse acontecido exatamente como tinha de acontecer.
O castigo pela derrota é a exclusão retroativa da existência. Quem esteve a um triz da vitória total desaparece como se nunca houvesse nem mesmo competido.
Os “laterais possíveis” desaparecem.
Mas o mundo foi construído para ser do jeito que é hoje. Ele poderia facilmente ter sido construído de maneira diferente.
E pode, ainda hoje, ser desconstruído e reconstruído.
Para isso, entretanto, precisamos conhecer as pessoas coadjuvantes, as derrotadas, as esquecidas da História.
Os grupos jacobinos que não conseguiram tomar o poder durante a Revolução Francesa. Osgrupos anarquistas que não conseguiram fazer frente aos bolcheviques. As rebeliões regionais que não conseguiram separar o Brasil durante a Regência. Os franceses protestantes que não conseguiram fazer da Baía de Guanabara um novo lar para exercerem sua religião.
Talvez suas causas fossem até erradas. Talvez estivessem mesmo na contramão da História. Com certeza, fracassaram de forma espetacular em seus objetivos.
Mas vale a pena falar nelas nem que apenas para sempre lembrar que nada estava predestinado.
O patriotismo é o culto aos vencedores
A História, disciplina criada para validar e dar arcabouço ideológico aos jovens Estados Nacionais do século XIX, já nasceu do lado dos vencedores. Não existe patriotismo possível sem uma História Nacional renovando-o e naturalizando-o de geração em geração.
Os atuais grupos dominantes são herdeiros dos antigos conquistadores. O discurso patriótico que canta as vitórias nacionais passadas sempre beneficia os atuais poderosos.
Todos os vencedores, de todos os tempos, participam da mesma procissão triunfante, na qual os dominantes de hoje pisam e passam por cima das massas derrotadas, confirmando, ilustrando e validando sua superioridade, e trazendo nas mãos seu botim de guerra: a cultura. Os pretensos tesouros culturais da humanidade.
Por isso, não pode existir nenhuma obra de arte que não seja ao mesmo tempo um inventário e um testamento de barbárie. Que não esteja ensopada de sangue. Que não seja cúmplice dos poderosos.
O desafio é utilizar nossa boa, velha e ensanguentada História Nacional para promover um novo tipo de patriotismo, um patriotismo que subverta e quebre a continuidade histórica da narrativa dos vencedores, que recupere as tradições revolucionárias dos vencidos, que exponha a mentira da naturalização do mundo, que nos convide a todas a recriar esse mundo de acordo com desejos e aspirações mais igualitários e mais humanos.
O Davi, de Michelângelo, não é inocente dos crimes dos financistas florentinos. Dom Casmurro não é inocente dos crimes da escravidão. Nós não somos inocentes do Amarildo.
A pátria é uma desmemória coletiva
A essência de uma pátria é a memória coletiva de suas integrantes.
Uma das principais diferenças entre pessoas uruguaias e brasileiras é que todas as uruguaias sabem quem foi Artigas (feroz inimigo do Brasil, maior herói nacional, “Jefe de los Orientales”, “Protector de los Pueblos Libres”, etc) e aqui, quase ninguém. Por outro lado, aqui sabemos quem foi Tiradentes e lá, não.
(Um exemplo: a batalha de Tacuarembó, em 1820, foi a última e mais decisiva do conflito que chamamos de Guerra contra Artigas — um nome interessantemente personalista, como se o Brasil estivesse lutando só contra um homem e não contra o desejo de independência de todo um povo. A derrota dos uruguaios em Tacuarembó sepultou seu sonho de autonomia por dez anos, selou o domínio luso-brasileiro do país e foi a última batalha de Artigas, que se retirou para o Paraguai e nunca mais voltou para a sua terra.
O comandante português que derrotou decisivamente o maior herói uruguaio foi José Maria Rita de Castelo Branco, Conde da Figueira. Mas, do ponto de vista luso-brasileiro, essa batalha é tão insignificante que a página da Wikipédia em português dedicada a ele nem mesmo menciona sua vitória.)
Talvez ainda mais importante, a essência de uma pátria é a desmemória coletiva do seu povo, um gesto ativo de esquecimento de um saber compartilhado.
As pessoas uruguaias são as que esqueceram a guerra civil fratricida que passou para a História com o sugestivo nome de Guerra Grande, entre 1836 e 1852, deixando o país enfraquecido e destruído (e, aliás, novamente dominado pelo Brasil) enquanto as brasileiras são as que esqueceram que o seu país matou quase todos os homens adultos do Paraguai e ocupou o país por onze anos, um período no qual, entre muitas coisas, foi legalizada a poligamia. (Não é por acaso que, sobre os crimes do Brasil no Paraguai, só consegui encontrar fontes em espanhol.)
Ignorar é bem diferente de esquecer.
Ignorar é não possuir um conhecimento, e muitas vezes reflete apenas as prioridades do nosso olhar. A pessoa brasileira média ignora a história da Nigéria simplesmente porque nunca voltou os olhos para ela, nunca a considerou digna de interesse.
O Brasil esteve profundamente envolvido na Guerra Grande uruguaia e pode-se argumentar que foi inclusive o seu maior vencedor e beneficiário. Mas ela já se perdeu completamente no nosso imaginário nacional. Não é nem mencionada nas salas de aula e nos livros didáticos. A pessoa brasileira média não esqueceu essa Guerra: ela nunca soube que ela existiu.
Já esquecer presume um conhecimento prévio que foi ativamente esquecido, colocado de lado, enterrado.
A escravidão, o massacre das pessoas indígenas e a Guerra do Paraguai, para citar apenas três exemplos, são coisas que praticamente qualquer pessoa brasileira sabe, nem que apenas esfumadamente.
Sabemos que nossos antepassados brancos mataram quase todas as nossas antepassadas indígenas. Sabemos que nossos antepassados brancos escravizaram quase todas as nossas antepassadas negras. Sabemos que nosso país ganhou uma guerra contra o Paraguai e que fizemos coisas terríveis por lá.
Às vezes, não sabemos mais nenhum outro detalhe. Mas sabemos o suficiente para saber que precisamos ativamente esquecer o que sabemos todos os dias.
Sempre que uma pessoa brasileira branca cruza com uma pessoa negra na rua, ou vai opinar contra as cotas raciais, ela precisa esquecer ativamente a escravidão.
Sempre que uma pessoa brasileira urbana lê uma matéria jornalística sobre Belo Monte, ela precisa ativamente esquecer o massacre dos indígenas.
Sempre que falamos no caráter pacífico do povo brasileiro, precisamos ativamente esquecer a Guerra do Paraguai.
E não só essa guerra, aliás, mas todos os outros massacres e violências dos quais já tomamos conhecimento, de Canudos a Pinheirinho, enfiando-os todos em um hiperlotado porão de horrores da memória nacional, sempre torcendo para o porão não explodir em nossa cara.
O homem que nunca esquecia nada, Funes, o Memorioso (por acaso, uruguaio), nos ensina que para lembrar todos os detalhes de um dia é preciso perder um outro dia inteiro recordando-o. Um custo alto demais.
A questão, portanto, é outra: como a História é a arte de esquecer algumas coisas e lembrar outras, então o que queremos lembrar e o que queremos esquecer?
Qual é o nosso patriotismo?
Por um patriotismo das vítimas, das derrotadas, das esquecidas
É fácil celebrar os vencedores da História do Brasil, os homens poderosos que construíram o país onde vivemos hoje.
Mas por que não celebrar suas vítimas? Por que não celebrar quem foi morta, atropelada, deixada de lado na estrada pelo projeto de Brasil que acabou vencendo?
Por que não celebrar quem era monarquista durante república e republicana durante a monarquia?
O anarquismo foi derrotado na Revolução Russa, na Guerra Civil Espanhola, na Hungria, nas barricadas de Paris, em maio de 1968. Apesar disso, talvez por saber que as derrotas ensinam mais do que as vitórias, são elas que as pessoas anarquistas comemoram, são essas histórias que as inspiram.
Talvez essas pessoas, mortas e derrotadas há tanto tempo, ainda tenham lições valiosas a ensinar às anti-consumistas da sociedade de consumo, ou às militantes trans da sociedade cis.
Durante a década mais movimentada e mais esquecida de nossa História, entre os reinados de Pedro I e II, a falta de um governante central com legitimidade inquestionável fez explodirem diversos conflitos regionais antes recalcados. O Brasil, como hoje o conhecemos, quase se desfez.
Só no Pará, a repressão à Cabanagem fez 20 mil vítimas. (Para efeitos de comparação, a população de Belém no início da rebelião era de 12 mil.)
Talvez vivêssemos hoje em diversas repúblicas sul-americanas lusófonas. Teria sido melhor? Teria sido pior? Quem sabe. Depende para quem. Sempre depende pra quem.
Mas os vencedores — como sempre fazem, como sempre esteve predestinado que aconteceria — venceram. Seu legado (nosso legado) é esse Brasil uno, grande e poderoso que derramaram tanto sangue para construir em nosso nome.
Graças a esses vencedores, durante todo o século XIX, desfrutamos de poder militar suficiente para roubarmos território de todas as repúblicas vizinhas. Algumas vezes, usamos de força bruta. Em outras, usamos intimidação e diplomacia para ratificar os territórios que os bandeirantes já haviam roubado por meio de força bruta nos séculos anteriores.
Hoje, o Brasil tem mais que o dobro do tamanho que deveria ter de acordo com o Tratado de Tordesilhas. (Por trás de todo território, há sempre no mínimo um ato fundacional de violência.)
Quem sabe, se não fossem por esses bandeirantes, por esses militares, por esses diplomatas, por todos esses vencedores que exploraram, mataram, roubaram em meu nome, eu não teria a variedade de opções profissionais que meu colega salvadorenho não tem.
Quem sabe.
Mas sou ingrato.
Não quero celebrar quem construiu esse país pujante que tantas escolhas me deu. Meu patriotismo não é o patriotismo de Borba Gato, do Duque de Caxias, do Visconde do Rio Branco.
Quero celebrar as vítimas desse projeto nacional. Quero celebrar quem morreu em meu nome.
Meu patriotismo é o patriotismo de Eduardo Angelim, de Zumbi dos Palmares, de Amarildo da Rocinha. Dos bolivianos do Acre e dos paraguaios do Guairá. Dos parakanã de Belo Monte e dostamoios da Guanabara.
Minha pátria é a pátria dos cabanos e dos canudenses, dos quilombolas e dos favelados.
Antes de terminar, algumas notas e uma tragédia
Quem conta a história sobre judeus e prêmios Nobel é Isaac Asimov. Citei de cabeça. Não consegui encontrar a fonte de jeito nenhum. Se alguém souber, me avise.
A história do juramento à bandeira é de Allan Cutrim. O exemplo dos anarquistas é de Moxie Marlinspike, sugerido por Lucas Teixeira. A geógrafa Clara Machline me levantou pontos interessantes sobre a nossa relação com nosso espaço. A referência à Carl Sagan foi sugestão de Daniel Koch; à Funes, o Memorioso, de Sônia Ferreira. Obrigado ao Maurício Trida pela históriadas prostitutas de Niteroi.
A citação sobre a desmemória coletiva das nações é do historiador francês Ernst Renan e está mencionada no primeiro e, depois, desenvolvida no décimo capítulo de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson, o melhor livro que conheço sobre nacionalismo e patriotismo. Muitas das ideias desse meu texto vêm de Anderson, apesar de ele ter uma visão bem mais positiva desses fenômenos do que eu.
A observação sobre “os laterais possíveis” da História está em “Violência Simbólica e Lutas Políticas“, nas Meditações Pascalianas, de Pierre Bourdieu.
O chamado para recuperar os perdedores da História está na introdução do maravilhoso A Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson.
Finalmente, as ideias da seção “O patriotismo é o culto aos vencedores” são de Walter Benjamin, nas suas “Teses sobre o conceito de história“.
Aliás, a morte de Benjamin, judeu alemão e escritor brilhante, é um fecho bem apropriado para a Prisão Patriotismo.
Com a ascensão do nazismo, todas as pessoas judias alemãs tiveram sua cidadania revogada: seu próprio país se voltou contra elas. Se Benjamin não podia ser cidadão nem de sua própria pátria, então, de onde?
Tentando chegar ao Novo Mundo, ele sai de Paris na véspera da ocupação e foge para a Espanha, então sob o comando do ditador fascista Franco. Na fronteira, as autoridades espanholas negam passagem ao grupo. Para Benjamin, aquilo significava repatriamento à Alemanha — mas como ser repatriado ao país que se negava a ser sua pátria?
Desesperado, longe de casa, sem poder seguir adiante, sem ter para onde voltar, sozinho em quarto de hotel em um país estrangeiro, Benjamin comete suicídio.
No dia seguinte, as autoridades franquistas autorizaram o grupo a passar.
Sua lápide, na cidade de Portbou, na costa da Catalunha, cita sua famosa frase:
“Não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.”
Uma nota pessoal: eu nunca estou acima de nada que critico
Entre os países que mencionei no texto, estavam o Congo e o Zaire.
Na verdade, como fui saber depois, existem dois Congos: a República Democrática do Congo (cujo nome anterior era Zaire) e a República do Congo (também chamada de Congo-Brazzaville ou Congo-Brazavile).
Mas eu, do alto da minha arrogância patriótica brasileira, salpiquei esses países no meu texto como quem espalha cebolinha no macarrão, como se fossem cidades em Westeros ou na Terra-Média, apenas uns nomes sem existência concreta.
Afinal, Honduras ou Nicarágua, esse Congo ou aquele Congo, que diferença faz, não?
Quem me chamou atenção para esse ponto foi Elisa Maia, coordenadora do Programa de Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G), do Governo Federal, que diariamente lida com estudantes do mundo inteiro, e de ambos os Congos, que desejam estudar no nosso país, graças às condições educacionais que oferecemos.
Muito obrigado, Elisa.
* * *
Quando escrevo denunciando um tipo de comportamento, quando escrevo sobre ser prisioneiro do padrão de beleza da mídia, sobre narcisismo e autocentramento, sobre patriotismo e preconceito, não estou nunca escrevendo de cima para baixo, como um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado falando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.
Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.
O único dedo que aponto é para mim mesmo. Sempre.
Se a carapuça que escrevi para mim também servir em vocês, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?
Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso.
Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.
Mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.
* * *
O encontro “As Prisões”
Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido. São elas:
verdade // dinheiro // trabalho // privilégio // sexismo // racismo // monogamia // religião // patriotismo // escolhas // respeito // certezas // os outros // medo // ambição // felicidade // narcisismo
Agora, estou promovendo o encontro “As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.
O encontro “As Prisões” é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 13 horas.
O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)
Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.
Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
As próximas são no Rio de Janeiro e em São Paulo, em julho de 2014. Depois, todas as capitais do nordeste, em agosto e setembro. E sul e centro-oeste, em outubro e novembro em maio de 2014.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.
Ao longo de 2014, todas As Prisões serão publicadas primeiro no PapodeHomem. Confira as que já foram publicadas.
Aviso sobre linguagem e gênero
Meus textos buscam usar uma linguagem de gênero sempre neutra. Todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. Se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. Por favor, avisem e vou corrigir. Para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.
ALEX CASTRO
alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // se gostou, venha aos meus encontros (os próximos são no RJ e SP em julho) ou receba meus novos textos por email.
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