Democracia e Verdade, por André Singer

no Folha de São Paulo

A maior conquista brasileira no século 20 foi ter-se tornado, aos trancos e barrancos, uma democracia plena. De resto, continuamos a ser país de modernização truncada e desigualdade degradante, ainda que mitigada pela redução da pobreza nos últimos anos. Por isso, o relatório da Comissão Nacional da Verdade chega em boa hora, uma vez que se voltam a ouvir vozes a favor da ditadura por aqui.

Pesquisas recentes do Datafolha e do Ibope (Folha, 8/12, e "O Estado de S. Paulo", 7/12) obtiveram números diferentes a respeito do apreço pelo regime democrático entre nós. O primeiro instituto detectou nível razoável (66%) de adesão à democracia, e o segundo encontrou proporção bem menor (46%). Os resultados apontam para avaliações diferentes sobre a legitimidade de que goza a democracia na sociedade.

Cabe observar que levantamentos comparativos realizados pelo Latinobarômetro desde 1995 indicam que o apoio à democracia no Brasil costuma ser dos mais baixos da América Latina. Ao mesmo tempo, esses "surveys" anuais tendem a detectar maior suporte local a regimes autoritários. Em torno de 20% do nosso eleitorado sente-se atraído por soluções ditatoriais, razão suficiente para que nos preocupemos com a cultura política.

Pequeno depoimento recente de uma webdesigner de Goiás, 22 anos, ilustra tal tendência ("O Estado de S. Paulo", 7/12). Ela acredita que a última eleição presidencial foi fraudada e que seria conveniente um governo militar "de no máximo 90 dias" para evitar que o Brasil vire "uma nova Venezuela". Talvez a jovem simplesmente não saiba que quando do golpe de 1964, muitos, inclusive JK, esperavam que os militares garantissem as eleições de 1965 e entregassem o poder aos civis em 1966, o que só aconteceu em 1985!

Enquanto os militares estiverem livres do vírus golpista, o risco de haver interrupção da democracia é pequeno. Daí a importância de as Forças Armadas reconhecerem os erros cometidos, como propõe o relatório da comissão.

Instituições –e isso vale para os partidos– firme e explicitamente comprometidas com a democracia resolvem uma parte do problema.

Outra forma de reforçar a resistência à tentação autoritária é o cultivo da memória. As dolorosas conclusões da comissão instaurada pela Presidência da República, no que talvez seja o maior legado do primeiro governo Dilma, ajudam a esclarecer o que de fato se passou. Seria importante que as escolas utilizassem esse material na forma de uma educação para a democracia.

É preciso afastar o fantasma, hoje longínquo, do golpismo e preservar a única conquista insofismável que o século passado nos legou.




André Singer é cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
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