Lula, um homem mimado, por Sérgio Saraiva


Montanaro


A manchete da Folha de São Paulo de 30 de janeiro de 2015 é mais um daqueles marcos da escandalização jornalística: ”Nota fiscal de barco reforça elo de Lula com sítio em São Paulo”.
Trata-se de um pequeno bote de alumínio a remo, no valor de 4 mil reais, com nota fiscal identificando a compradora – Marisa Letícia Lula da Silva. Presente da esposa ao marido que gosta de pescar.
Que algo tão prosaico esteja em manchete de primeira página, só se explica pelo nível atual de escandalização e falta de senso de ridículo da nossa imprensa.
Sem dúvida, tanto que, em editorial, a própria Folha relativiza sua manchete: ”Mimos incômodos”. E, mais do que relativizar, a Folha ri de si mesma na charge do genial ”Montanaro”.
Apenas “mimos incômodos”.
E, no entanto, esse substantivo composto, “mimos incômodos”, fez me pensar em quantas vezes poderia associa-lo ao que sei de memória em relação a Lula.
Conheci Lula no ABC paulista em 1978. Para quem não é de São Paulo, o ABC é composto pelas cidades industriais que cercam a capital – cidades com nomes de santos – André, Bernardo e Caetano.
Ele fazia campanha em portas de fábricas distribuindo “santinhos”. Era candidato a senador.
O que sabia dele?
Era um homem de esquerda em plena ditadura. Era jovem, 47 anos, mas precocemente aposentado desde os 38 anos. Estrito senso, trabalhara um ano apenas até a aposentadoria. Entenda-se que fora aposentado compulsoriamente pela ditadura. A aposentadoria como forma de punição. Houve os que foram “suicidados”.
Não era um homem rico. Vinha de uma família de classe média. Fora aposentado em um cargo de classe média, teria, portanto, rendimentos de classe média. A sua declaração de bens à justiça eleitoral comprovava isso: um apartamento de classe média em um bairro de classe média e um sítio em uma cidade pequena – Ibiúna – próxima à capital.
Na próxima vez em que vou saber das posses de Lula, ele já é presidente.
Passou-se 16 anos, e Lula, agora, possui uma fazenda de criação de gado em Buritis MG. A aposentadoria e o salário de presidente, por certo, não eram suficientes para alavancá-lo da condição de classe-média à condição de latifundiário. Principalmente levando-se em conta que, em função de um relacionamento extraconjugal, Lula deveria despender, pelo menos, 30% de sua renda em uma pensão alimentícia. Pensão essa, paga em euros, já que o filho, a essa altura, morava na Europa. A mãe do menino tinha um bom emprego, era funcionária da Rede Globo, mas não creio que dispensasse a pensão. Havia, contudo, uma explicação para o aumento de patrimônio do presidente. A fazenda fora comprada em sociedade com um amigo de muitos anos, empresário da construção civil e coordenador de sua campanha política. Eu não sabia qual era a parte do presidente na tal fazenda, poderia ser mínima – simbólica apenas da amizade entre os dois companheiros de lutas.
Aliás, em relação a fazendas, há um caso curioso envolvendo Lula. A propriedade de outra fazenda, essa, em Osasco-SP. O curioso deriva de que Osasco é uma cidade industrial sem área rural. Os registros da propriedade até existem, mas, de tão insólito, parece até aquela história da ficha falsa de Dilma.
Bons amigos nunca faltaram a Lula. São conhecidos os empréstimos de imóveis que obtém deles. Um apartamento em Paris – França, pertencente a outro amigo, rico fazendeiro de Minas Gerais, era tão de Lula que foi necessário esclarecer em nota à imprensa que Lula não o era o proprietário. Poderia parecer ocultação de patrimônio.
Lula é também um homem de sorte. Ainda presidente, logo após a compra da fazenda, a construtora Camargo Correia, hoje com seu presidente condenado na Lava Jato, comprou uma fazenda ao lado da de Lula e lá construiu uma pista de pouso para aeronaves que também serviria o presidente e sua família.
Outros bons negócios estão presentes na vida do presidente Lula. Logo após deixar a presidência, trocou o apartamento classe-média por um muito maior – 450 m². Um banqueiro, envolvido no caso do trensalão paulista, que deu em nada, vendeu-lhe a preço bom o novo apartamento. Banqueiros não são dados a gentilezas, mas trata-se de Lula.
Bons amigos e bons negócios, Lula é um homem feliz. Feliz e irônico: “vida de rico, em geral, é muito chata“, declarou certa vez.
Reconhecimento também jamais faltou a Lula.
Ainda presidente, no Palácio da Alvorada, Lula passou o chapéu entre o empresariado e recomeçou sua vida pós-presidência com um patrimônio, à época, de R$ 7 milhões – uns R$ 15 milhões hoje, se corrigidos pela inflação, para seu Instituto. Houve muitas doações posteriores. Empresas como a Odebrecht e Camargo Correia, mas também empresas públicas como a SABESP, nunca foram-lhe mesquinhas. As duas primeiras, envolvidas na Lava Jato, a terceira, responsabilizada por falta de investimentos públicos que agravaram a crise de abastecimento de água de São Paulo,mas sempre a mesma generosidade com Lula.
E agora essa história de um barquinho de alumínio, associada à reforma de sítio de sócio do filho.
Soaria ridículo, não fosse o grau de escandalização atual ao qual a imprensa se permite. Pois, como ressalta a Folha de São Paulo: “dadas as dimensões milionárias dos escândalos em curso nas operações Lava Jato e Zelotes, é até possível que, na cultura que predomina no relacionamento entre empreiteiras e os mais altos nomes do Executivo, benesses como essas sejam vistas mesmo como meros mimos, agrados, iniciativas de relações públicas”.
Isso para não falar do silêncio com que Lula é brindado por essa mesma imprensa em relação ao seu histórico de outros mimos incômodos. Diria eu.
PS1: não comentarei o artigo de Igor Gielow sobre a reforma do tal sítio. Um texto altamente depreciativo ao ex-presidente Lula. Mas que se protege atrás de expressões, tais como, segundo testemunhas ouvidas pela Folha” ou “suposto objeto de propina”, ou ainda, “se comprovadas”,“se não for inocente” e “pode, no limite…”E, “no limite”, o que não pode, não é mesmo? Acaba como se Igor “quisesse acreditar” que “a extinção do PT é algo já em curso”. Trata-se antes de um desejo tornado público. E desejos podem ser objetos da psicologia, ou mesmo da psiquiatria, mas não cabem na crítica jornalística.

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