O complexo de vira-latas e a esperteza da classe dominante
por RPV
"Antigamente cometíamos um erro: tentávamos fazer uma revolução material. A verdadeira revolução é a cultural." José Mujica
Uma maneira de demonstrar desprezo pelas ideias é dizer que algo é "só teoria". Ou seja, não tem valor. Não serve para nada. Mas sendo "só teoria", por que tantos tombaram, ou quase, por conta de suas ideias?
Sócrates foi obrigado a tomar veneno. Jesus, crucificado. Galileu negou-as, para manter-se vivo.
Tem algo errado aí. Para entender, apelemos à dialética.
Resumidamente. Duas sentenças parcialmente falsas que, combinadas, podem produzir uma terceira verdadeira. Por exemplo:
1) Ideia é intangível.
2) Ideia é tangível.
3) Ideia é crível.
Essa síntese traz à lembrança o Xadrez do esperto e do sabido. Esse, só diferencia ideia vazia de artigo científico. O esperto relaciona ambos e descobre que uma ideia se materializa a partir de sua coerência e da fé de quem a construiu - a ponto de não temer arriscar a própria vida para colocá-la à prova. Para entender melhor isso, vejamos mais uma síntese:
1) O ser humano é previsível.
2) O ser humano é imprevisível.
3) O ser humano é disciplinável.
Nesse caso, o sabido só diferencia ação desesperada de ato deliberado. O esperto relaciona ideia coerente com ação impensada, e percebe que o ordenamento social se sustenta na fé – uma ideia que todos acreditam (e a seguem) sem pensar.
Por tudo isso, o esperto conduz. O sabido é conduzido. E o esperto condutor sabe que o perigo das ideias não está na crítica à ordem vigente, mas nas heresias. Uma ideia com tamanha força que é capaz de ameaçar a fé vigente, a ponto de colocar outra em seu lugar e, assim, forjar um novo ordenamento social. Mas qual é a ordem social vigente no Brasil?
Sabichão. A pergunta não é essa.
A pergunta é: qual é a fé que sustenta o (desigual) ordenamento social vigente no Brasil?
A fé que sustenta essa ordem é expressa no: manda quem pode, obedece quem tem juízo. E o povão, que tem juízo, baixa a cabeça e obedece. O "doutor", o "patrão", a "polícia", o "juiz". Enfim, o sujeito numa posição social "naturalmente" superior.
Essa é a fé que institui a desigualdade no ordenamento social brasileiro.
E qual é a maior heresia - a maior ameaça a essa ordem?
A autoestima do povo. Uma ideia capaz de fazer o povão acreditar que pode andar de cabeça erguida. Que pode assumir "posição de mando". Que é igual ao "doutor", ao "patrão", ao "rico"; enfim, que é igual ao "branco de classe média".
Esse orgulho de ser brasileiro, de sermos iguais, rico ou pobre, preto ou branco, analfabeto ou doutor, civil ou militar, homem ou mulher, gay ou hetero; representa a maior ameaça a ordem social vigente. Ou seja, representa o fim da obediência inconsciente a uma posição social "naturalmente" superior.
Contra essa "heresia cidadã", que ironicamente exprime o credo da modernidade mercantil-capitalista instituída pelo Estado Democrático de Direito, se debate a esperta elite brasileira. Que não se peja em lançar mão do poder do aparelho judiciário do Estado – último bastião da (desigual) ordem social em vigor.
E aí, enquanto os espertos combatem a autoestima do povo brasileiro, os sabidos lutam "contra a corrupção".
Como?
Maculando a imagem do maior e mais capacitado defensor do brio do povo brasileiro.
Luis Inácio LULA da Silva.
A elite, espertamente, faz hoje o que fez no passado com Getúlio, JK, Jango e Brizola. E fará com quem tiver capacidade e coragem para expressar às virtudes Brasil, a ponto desse discurso abalar a fé do povo na sua "natural" inferioridade social.
Essa lógica do combate ao discurso altivo (populista,sic) é igualmente válida para fora do Brasil. Pois, nossa subalternidade perante o mundo desenvolvido é o preço (externo) que pagamos para manter os privilégios da elite brasileira. Dado que, nos vermos iguais perante o mundo é o mesmo que admitirmos sermos iguais enquanto brasileiros. Um sacrilégio contra nossa fé na desigualdade social.
Assim, enquanto os sabidos se orgulham mundo afora de seu "combate à corrupção", os espertos mantêm viva nossa fé de vira-latas – do Brasil perante o mundo, e de seus "mestiços pobres" (e os representantes do povo) perante sua "elite branca".
Excelente artigo. Parabéns!
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