A vida e o seu tempo, por João Paulo Cunha

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Ele trabalhava muito. Usava uma bota preta de bico duro que pesava toneladas pela graxa que ia grudando em sua sola ao andar pelo chão irregular da fábrica. Ia para casa com a mesma bota. Levava em seus passos a expectativa de sentar no sofá que enfeitava a sua sala e esticar as pernas para o filho ajudar a tirar a bota que cheirava óleo. O menino ficava tão feliz ajudando o pai que nem precisava dum abraço. O descanso dos pés do pai aliviava sua alma.


O menino não entendia direito porque o pai que trabalhava tanto, que sujava a roupa, que machucava as mãos, que tinha rugas sem ter idade, ganhava tão pouco. Não entendia porque a casa que eles moravam não era do pai. Por que o pai não tinha carro e muito menos um final de semana para a família? Descobriu depois que o pai não tinha nada daquilo para o dono da fábrica ter à vontade!

Resistiu a repetir o pai. Mas as condições fizeram-no calçar a bota. Fez um trecho do caminho com o pai, mas descobriu depois de algum tempo que sua vida era lutar. E assim foi desenvolvendo um gosto esquisito:  gostava de Jesus e de seu projeto de justiça, se comprazia na companhia de livros, da boa música e de bons companheiros. Perambulou fazendo muitos serviços e juntando gente. Um dia ele próprio descalçou a bota.

O menino aprendeu a dizer não! Cresceu, virou homem e quando pensou em falar com o pai sobre as durezas da vida (que o pai conhecia tanto) já não havia mais tempo. O pai partiu. Foi cedo demais e levou seu silêncio!

Um dia, quando não podia ser fraco, pensou no pai. E num sonho relâmpago o velho sorrindo apareceu para dizer: "Em frente meu filho. Deus só dá o peso pra quem consegue carregar”. A sabedoria do pai era grande, mas ele falava tão pouco.

Hoje o menino vive de lembranças e desafios. Às vezes na contraordem. Continua gostando de juntar pessoas, de ouvir histórias, de tomar uns tragos e ver os movimentos de quem procura um mundo melhor.

Descobriu com o tempo que velhos companheiros são pedras preciosas que você deve carregar pelo resto da vida e sempre terão o brilho do dia que lutaram juntos. Às vezes por dias, meses, anos e todas essas horas cabem num copo de cerveja tomada com prazer. Contudo, descobriu que a verdade e a solidariedade são linhas tênues entre o coração e o dinheiro. O coração dele continua aumentando.... Fez amigos e alguns poucos inimigos. Por esses, sabia que não seria traído.

Outro dia, sozinho num canto que ninguém podia ver, chorou. Pensou em desistir. Mas não dava mais tempo: sua vida já não era mais sua!

 JOÃO PAULO CUNHA



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