– Tom, precisamos de pautas mais quentes. Cadê o furo?
Era o editor do caderno de cultura, fazendo o que todo chefe tem que fazer: cobrar do repórter matérias exclusivas, de grande repercussão, chamadas de "furo" no jargão jornalístico.
– Pode deixar.
Essa cobrança era sempre feita na reunião de pauta. E nada é mais chato na profissão de jornalista do que participar de reunião de pauta. Por duas razões:
1) Elas não costumam demorar menos do que seis horas. Deveria ser o contrário, mas não existe bicho mais prolixo que jornalista. No Estadão, tinha uma decana da crítica de artes que falava mais do que o Fidel em assembleia da ONU. Isso numa época em que não existia candy crush e nudes para a gente se distrair. Enfim, um tortura, uma viagem às profundezas do tédio que espero nunca mais fazer.
2) Eu nunca tinha pauta para sugerir. Adotava sempre a mesma estratégia. Me sentava à mesa na direção oposta à do chefe, de frente pra ele. Assim, independentemente do repórter que ele escolhesse pra começar a reunião, do seu lado esquerdo ou direito, sempre ganhava um tempo para pensar em alguma coisa. Quase sempre eu inventava alguma pauta na hora – depois dava um jeito. Uma vez, sem pauta nenhuma, inventei que tinha conseguido uma entrevista exclusiva com o Sílvio Santos. Fui aplaudido de pé pelos repórteres – e pelo chefe. O problema é que esse meu chefe, que havia trabalhado comigo justamente no Estadão, já conhecia minha tática.
– Tom, nem vem que não tem. Sugeriu uma entrevista na reunião, tem que fazer! Fiquei aflito. Tinha acabado de ser contratado. Precisava de um furo para me livrar da fama de repórter malandro. Tive "sorte": logo na primeira semana recebo um e-mail de um pesquisador baiano:
"Prezado Tom Cardoso, sou fulano de tal, pesquisador da UFBA, com mestrado não sei onde. Tenho, em minhas mãos, poemas inéditos do Torquato Neto. Interessa?"
É claro que interessava. Não se lia nada inédito de Torquato, jornalista e poeta, parceiro de Caetano e Gilberto Gil, amigo de fé de Glauber Rocha, um dos grandes nomes da contracultura (o tropicalismo não seria gestado sem ele), desde o seu suicídio, em 1972.
Enfim, seria um furo. Pedi para o pesquisador me mandar os poemas por e-mail. Ele mandou. Li e achei estranho. Não pareciam escritos por Torquato. Pedi o telefone do pesquisador e liguei pra ele.
– Olá. Recebi os poemas.
– Lindos, não?
– Sim, mas o estilo é diferente.
– Pode ser. Os poetas estão sempre em transformação.
Liguei para alguns jornalistas baianos. Eles conheciam o cara, que era, de fato, um pesquisador, e um profundo conhecedor da obra de Torquato. Fiquei mais aliviado e fui todo confiante pra reunião de pauta.
Me sentei ao lado do chefe e abri a reunião:
– Consegui poemas inéditos do Torquato Neto.
– Sensacional, Tom. Vamos soltar logo isso. Capa de amanhã, ok?
– Beleza, saio daqui e escrevo.
O caderno fechava ao meio-dia do dia seguinte. A vinte minutos do fechamento, já com matéria escrita, editada, paginada, a caminho da gráfica, eu liguei para o pesquisador.
– Opa, a matéria sai amanhã.
– Que legal! O Torquato vai gostar.
– Como assim gostar? Ele morreu, pô.
– Sim, morreu. Mas eu vou falar com ele.
– Tá doido. Papo de maluco. Se ele morreu como você vai falar com ele?
– Eu sou médium, Tom.
– Ahã? Como você conseguiu os poemas inéditos?
– Foram psicografados por mim.
Desliguei e fui correndo falar com o meu chefe:
– A matéria de capa tem que cair.
– Como assim, Tom? Os poemas não são inéditos?
– São, mas vieram do além.
Corremos os dois para a escada que dava acesso à gráfica. Cheguei lá e vi a revisora chorando lendo um dos poemas. Mandamos colocar um anúncio da Gillette na capa. Não fui demitido, mas quase fui fazer companhia pro Torquato.
Pinçado do Face de Tom T. Cardoso
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