Fastio democrático


O atual fastio político – com atores medíocres como Macron, Macri, May, Trump, Trudeau, Bolsonaro ou Orban poluindo o palco – põe em xeque, afinal, o rascunho de democracia que vem sendo imposto ao Ocidente há dois séculos como projeção de algo real na parede da caverna concebida por Platão: um regime fundado na escolha racional pelos cidadãos entre partidos com projetos de governo definidos e conflitantes; a eleição periódica de parlamentos que legislam e executivos que aplicam as leis, sob a vigilância de judiciários que pairam, sustentados no ar pelo consenso e pela liturgia.
Isso soa falso, do começo ao fim. Primeiro porque, como se prova desde a experiência do iluminismo (ou a Revolução Francesa), a decisão dos cidadãos é emocional e momentânea; as técnicas que permitem determiná-la avançaram notavelmente ao longo do século XX. Nenhuma eleição expressa, hoje, escolha racional entre projetos, mas adesão a vórtices de amor e ódio cercando buracos negros.
Também os tais “projetos definidos” reduzem-se a nuances da mesmice política, porque o diferente, em todas essas “democracias”, é excluído, vilipendiado,
xingado, quando não segregado em guetos ou enfiado em masmorras. Quando há vários partidos dissidentes, como na França, cuida-se para que briguem entre si, de modo a não incomodar; quando partidos em número limitado formam frentes amplas, como na Inglaterra ou nos Estados Unidos, zela-se para que os grupos que de fato discordem da ordem reinante – apelidada, às vezes, de “política de Estado” ou “de segurança nacional” – sejam minoritários.
A eleição para os parlamentos obedece, em geral, à dinâmica de tribos e comunidades que escolhem os candidatos e a mecanismos publicitários concebidos originalmente para vender salsichas e sabão em pó: a composição dominante de plenários combina chefetes locais, potentados ou líderes de gangues com políticos profissionais patrocinados por poderosos interesses financeiros – formando, por exemplo, bancadas do boi, da bala, dos bancos ou das drogas.
Inovação recente tem sido incentivar campanhas em favor de minorias comportamentais ou étnicas e teses transcendentes, desvinculando-as da relação entre capital e trabalho – ou entre impérios e vassalos – que é a única com poder de explicar os grandes conflitos políticos. Perdem, dentre as tais minorias, as que não conseguem se organizar, como as dos velhos, crianças ou mentalmente diferenciados.
De modo geral, chefes de governo escolhidos e substituídos em mandatos curtos são lembrados em listagens cronológicas que os escolares decoram: percursos marcantes na História das nações têm-se associado a duráveis lideranças, desde o apogeu da Atenas democrática, sob a ditadura de Péricles. Assim, em tempos recentes, Roosevelt e Stalin, Getúlio e Perón, Lula e Chávez, Adenauer e De Gaulle, Putin, Dien e Xi.
Prova-se que o cidadão médio, educado para ganhar a vida no exercício de uma profissão e acreditar em verdades prontas (da igreja, da escola, da mídia), é incapaz de discernir entre afirmações verdadeiras e falsas quando alheias a sua prática, e de localizar seu próprio interesse no jogo político. Com a promoção contínua do individualismo, a segmentação por várias formas de censura e a pregação das incompatibilidades, esgarça-se a coesão social e marginaliza-se a vocação para a solidariedade.
O confronto com tal estado de coisas envolve o fortalecimento do total sobre o parcial – do público sobre o privado, do social sobre o individual – que abre, então, espaço à livre iniciativa não-monopolista e criativa. A democracia passa a ser, não obra da opinião desinformada e eventual das pessoas, mas a realização de projetos coletivos de paz, progresso e bem-estar, permanentemente discutidos e auditados com o desenvolvimento de mecanismos de análise (qualitativos, quantitativos), acompanhamento e gestão.
Numa sociedade que pretenda tal democracia, a educação e a informação pública deverão buscar a construção de conhecimento (não só o adestramento profissional e a acomodação ao já instituído), a experimentação será contínua e a discussão constante, o que implica ampla liberdade, mas controle emocional e ético dos discursos Ela terá, com o tempo, a aparência de anarquia, ainda que organizada no essencial, e estará sempre em risco de ser assaltada por inimigos ferozes, como aconteceu, há cinco séculos, com algumas das civilizações vítimas da expansão europeia.
A crise da democracia, por Nilson Lage
Publicado originalmente no Tijolaço
Vida que segue

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