Crônica dominical

A revolução das baratas

No dia em que a barata Gene viu sua mãe ser brutalmente assassinada por um chinelo, decidiu que era hora da revolução começar

Havia décadas que as baratas pensavam em realizar um grande levante. Estavam cansadas do ódio peculiar que os seres humanos sentiam por elas, figurando como o inseto mais repulsivo do planeta Terra. Injustiçadas, odiadas, temidas. Mal podiam surgir em um ambiente, e o pânico se instalava por completo. Fêmeas e machos subindo aos gritos em cadeiras. Mas sempre havia 2 ou 3 algozes, psicopatas, empunhando chinelos e listas telefônicas, olhos vermelhos injetados, a boca espumando, ansiosos pela carnificina. E se as baratas não fossem rápidas o suficiente, jazeriam mortas, as patas para cima. Seu poderoso casco de quitina não seria forte o bastante para lhes salvar a vida.
E Gene era a líder da revolução baratística. Tinha uma inteligência incrível, uma memória invejável e uma estratégica mente militar. O assassinato da mãe diante dos seus olhos, alguns meses antes, fizera despertar o que lhe faltava para liderar a revolução: o ódio. O plano estava parcialmente definido, mas era preciso esperar o momento certo. Sua melhor amiga, Salete, sempre se postava como a temerosa:
– Mas estamos realmente prontas?
– Nunca antes estivemos tão prontas. – A voz de Gene trepidava com sua raiva incontida. – Em breve, teremos nossa vingança. Os humanos pagarão cada gota de hemolinfa derramada.
– Não sei, não. Tem coisa errada, Gene. Os números não batem.
– Como assim? Salete mostrou um esboço.
– Em nosso último censo militar, ficou constatado que somos 85 baratas para cada humano. Agora, pense comigo: a maioria dos humanos não tem mais do que dois ou três filhotes. E muitas das fêmeas deles nem se reproduzem. Mas nossas fêmeas, em apenas 150 dias, chegam botar 320 ovos. A proporção não bate, Gene. Deveríamos ser milhares ou milhões de baratas para cada humano. Onde estão as outras?
– Você não sabe onde elas estão?
– Não.
– Estão mortas, Salete – arrematou, séria. – A diferença na sua estatística é o número de irmãs assassinadas injustamente. Sentenciadas à morte por chineladas e sufocamento venenoso, enquanto os algozes gritam “nojenta”, “maldita”, “desgraçada”. Houve um silêncio entre as duas amigas. A verdade calou qualquer argumento.
Revolução das baratasNaquele mesmo dia, uma notícia se espalhou entre as baratas. Ninguém sabe como, mas as baratas tomaram conhecimento de que, no próximo mês, os humanos em todo o planeta dormiriam durante uma hora, simultaneamente. Era a oportunidade que Gene tanto esperava. Salete desconfiou:
– Como assim?
– É a nossa chance, Salete.
– Por que os humanos vão dormir todos ao mesmo tempo?
– Você deveria estar me perguntando sobre nossa estratégia de ataque.
– É só que me parece estranho.
– Faremos um ataque simultâneo, em todo o mundo. Atacaremos os humanos enquanto estiverem dormindo.
– Vamos comê-los?
– Não, minha querida. Pelo menos, não enquanto estiverem vivos. Isso os acordaria.
– Então, o que vamos fazer?
– Vamos sufocá-los.
– Como?
– Vamos entrar em suas bocas, e invadir suas vias respiratórias.
– Mas…
– Um ataque em massa. Dezenas de baratas saltando sobre a boca de cada humano. Eles não terão chance de qualquer reação.
– Isso significa que…?
– Sim. Algumas terão de se sacrificar. Mas seus nomes ficarão registrados na história. Figurarão na literatura como as baratas que conquistaram a liberdade para suas filhas e irmãs.
O plano estava traçado. Gene enviou baratas mensageiras para que avisassem cada um dos exércitos alocados em despensas, esgotos, sótãos, porões, e até nas matas. As baratas em todo o planeta precisavam saber. Todas elas deveriam sair dos seus esconderijos e lutar pela liberdade. A história propagada pelos humanos de que, para cada barata avistada existem mil escondidas, mudaria. Naquela noite, os humanos veriam todas elas, mas desta vez, seriam elas a ter os olhos injetados, e a boca espumando de ódio. E exatamente um mês depois, a guerra teve início.
Gene saiu pelo ralo do banheiro seguida por seu posto avançado de 249 baratas. Era meia-noite. Encaminharam-se lentamente para os quartos dos humanos, ansiosas pelo ataque final. Em questão de menos de uma hora, a raça humana estaria extinta da face da Terra. Chinelos e inseticidas nunca mais seriam produzidos.
Gene ainda salivava de ódio, quando ouviu um estranho zumbido. Ergueu lentamente a cabeça. Logo acima, parcialmente camuflada pela escuridão, viu uma figura familiar: o general Tod, uma vespa-joia. Ele estava a frente do que pareciam 3 ou 4 centenas de vespas e marimbondos.
O coração de Gene saltou-lhe à boca. Seu cérebro começou a juntar as peças e tudo se encaixou. Salete tinha razão. O sono coletivo dos humanos não podia ser verdade. O boato havia sido um embuste criado pelas vespas, as maiores inimigas das baratas, depois dos humanos. Em um relance, Gene já podia ver seus corpos sendo arrastados para buracos e servindo de alimento para larvas de vespas.
Gene virou-se para seu exército e, quase sem voz, gritou:
– É uma cilada… Fujaaaaam!
Mas era tarde demais. Ao grito de comando do General Tod e dos outros milhares de generais vespas de emboscada em todo o mundo, o ataque histórico das vespas contras as baratas começou. Vários anos depois, os jornais ainda noticiariam o misterioso desaparecimento de todas as baratas do planeta terra. A culpa, para todos os efeitos, recairia sobre o aquecimento global.
de Juliano Martins
Vida que segue

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