Dois golpes de Estado. Os dois maiores presidentes da história republicana brasileira alijados da política institucional. O primeiro em uma cela na fria Curitiba, o segundo em uma estância em São Borja.
Estamos em 1945, e com a iminente vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, não existiam mais condições políticas para a continuidade de um regime totalitário no Brasil. O Estado Novo estava com os dias contados. Os ventos da democracia liberal, representada pelos Estados Unidos, sopravam na América latina, e Getúlio Vargas tinha plena consciência disso.
Porém, assim como hoje, os liberais da época, representados principalmente pela União Democrática Nacional (UDN), eram democratas na medida em que esse sistema não afetasse os interesses da classe dominante[1]. O problema era combinar com os “russos”, ou seja, era a vontade popular. Getúlio, o homem dos direitos sociais, da indústria de base, do nacional-desenvolvimentismo, continuava querido pelo povo, mesmo após oito anos de ditadura (1937-1945).
Vargas se compromete com a redemocratização, e em maio de 1945 é lançado o “queremismo”, movimento que reivindicava o adiamento das eleições presidenciais e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Com a confirmação das eleições, defendia o lançamento da candidatura de Getúlio a presidência. O partido comunista brasileiro, que havia acabado de sair da clandestinidade, aderiu à campanha, defendendo a “Constituinte com Getúlio” e obtendo ampla adesão entre os trabalhadores urbanos das grandes capitais[2].
O exército brasileiro, após a participação na segunda guerra, vinha sofrendo crescente influencia estadunidense, e os militares resolvem exorcizar de vez a figura do presidente, o retirando da chefia do executivo através de um golpe de estado, em 29 de outubro de 1945. Sem condições políticas para se lançar a corrida presidencial, Getúlio é eleito senador por São Paulo e Rio Grande do Sul, e deputado federal por seis estados diferentes (na época a legislação eleitoral permitia).
Acossado por todos os lados (militares, parlamento, imprensa), a vida política na capital federal se torna inviável para o novo senador, que opta por passar longos períodos em uma estância de sua família em São Borja, na fronteira com a Argentina, a 594 quilômetros de Porto Alegre.
“Foram vários os pedidos de licença apresentados pelo ex-presidente, períodos em que permaneceu sempre em São Borja. Ao longo de todo o seu mandato, Vargas ocupou a cadeira de senador intermitentemente por apenas dois anos. Quando se encontrava em plena campanha eleitoral para a presidência da República, justificou as sucessivas licenças afirmando que o ambiente criado ao seu redor no Senado tornara impossível sua permanência; sua residência encontrava-se vigiada, os telefones censurados, e os amigos perseguidos” [3].
Sua principal fonte de informações no Rio de Janeiro era a filha, Alzira Vargas, com quem se correspondia diariamente. São Borja passa a receber uma procissão de políticos e jornalistas. Getúlio deixa a semi-aposentadoria e prepara a sua volta através do voto popular, apostando na impopularidade do projeto liberal da UDN[4], sendo eleito presidente em 1950:
“Pouco a pouco, a pequena cidade gaúcha de São Borja transformou-se em passagem obrigatória para os políticos que iam à procura de Vargas, em busca de conselho ou ansiosos por seu apoio eleitoral. E foi da mesma São Borja, assim como de Itu ou Santos Reis, as estâncias da família, que Vargas se manteve permanentemente informado, principalmente através da correspondência mantida com filha, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, sua melhor e mais segura informante dos acontecimentos políticos do país. Foi principalmente por intermédio desta correspondência que Vargas definiu os passos futuros, elaborou pronunciamentos, corrigiu estratégias, disposto sempre a manter um progressivo retraimento até conseguir reajustar a situação, e assim manter o controle sobre o partido e suas ações. Mesmo que esta progressão pudesse chegar à retirada da atividade política e à renúncia do mandato. Era um risco que sabia estar correndo”[5].
Avançamos até 2016. A presidenta Dilma Rousseff é deposta por um golpe parlamentar. O “problema” é que o maior líder popular da história do Brasil estava vivo. Física e politicamente, apesar do massacre midiático que só teve precedentes na história brasileira justamente com Getúlio, no segundo período de sua presidência (1951-1954).
Era preciso neutralizar esse potencial político, coisa que nem o Jornal Nacional e suas 18 horas de ataques no período de doze meses havia conseguido. É quando entra em cena a República de Curitiba, que assim como a República do Galeão, em 1954[6], passa por cima de todas as garantias constitucionais para decretar a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 05 de abril de 2018 e o impede de concorrer às eleições presidenciais daquele ano.
Neste processo todo, não bastava prender Lula, era preciso calar a sua voz, e a força-tarefa da Lava Jato, como revelaram as recentes reportagens do The Intercept, se empenhou para impedi-lo de dar entrevistas, com medo de seu potencial de transferência de votos para o candidato Fernando Haddad, demonstrando não ter o mínimo compromisso com o princípio constitucional da liberdade de expressão[7].
Na cela de 15 metros quadrados, nesse um ano e meio de prisão, ele vem recebendo visitas de personalidades de destaque de vida política, cultural e religiosa do Brasil e do mundo. Leonardo Boff, Pepe Mujica, Noam Chomsky, Adolfo Esquivel, Baltazar Garzón, Dilma Rousseff, Celso Amorim, Fernando Haddad, Bresser Pereira, Jean-Luc Mélenchon, Alberto Fernandez, Chico Buarque, dentre outros.
Lula assim como Getúlio, está preparando a sua volta. Como futuro candidato à presidência, como um simples militante, isso ainda não se sabe. O que se percebe nas suas entrevistas é a grande preocupação com os ataques aos direitos sociais e a perda da soberania nacional expressa na profunda submissão do governo Bolsonaro aos interesses estadunidenses.
Por hora, o que a história nos ensina é que nem o exílio, o isolamento, é capaz de anular a influência de lideranças como Getúlio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva, e que o Brasil continua na encruzilhada: se conformar em ocupar uma posição periférica no capitalismo mundial ou apostar em um projeto de desenvolvimento autônomo e soberano.
“E aquilo que a nossa pastora disse, e eu tenho dito em todo discurso, não adianta tentar me impedir de andar por este país, porque têm milhões e milhões de Boulos, de Manuelas, de Dilmas Rousseffs neste país para andar por mim.Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem como prendê-las” (discurso de Lula antes da prisão, no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo).
por Rafael Molina - formado em Direito, membro do coletivo estadual dos Direitos Humanos do estado de São Paulo e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD
Nenhum comentário:
Postar um comentário