Mãe

(Crônica dedicada ao Dia das Mães,
embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)

Now I Lay Me Down to Sleep Postcard
O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.
Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.
Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — "que vestido horroroso o da Marieta neste coquetel" — "que presente de casamento vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa" — e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:
— Cadê Joãozinho?
O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.
— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo menos na volta!
O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:
— O menino tem OITO anos, Maria!
— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como esse!
E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu filhinho.
— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.
Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia.
Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito interessado — "mas a Niquinha com o coronel? não é possível!" — quando a Mãe se ergueu de repente:
— E o Joãozinho?
Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — "deve estar por aí", a Mãe gradativamente nervosa — "mas por aí, onde?" — o amigo otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.
— Joãozinho!
O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.
— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.
A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. "Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!" O garoto, com cara de bobo, e assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: "Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?".
— Acho que entrou… ou então foi-se embora.
De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu um grito para as ondas e espumas — "Joãozinho!".
Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados — "Joãozinho !" — ela mesma não tinha mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — "Joãozinho !" — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!
O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:
— Mãe é chaaata…


Maio, 1953
Rubem Braga é considerado o melhor cronista brasileiro de todos os tempos.
Texto extraído do livro "A Cidade e a Roça", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1964, pág. 57.
FONTE: 
Releituras

Mãe

(Crônica dedicada ao Dia das Mães,
embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)

Now I Lay Me Down to Sleep Postcard
O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.
Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.
Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — "que vestido horroroso o da Marieta neste coquetel" — "que presente de casamento vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa" — e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:
— Cadê Joãozinho?
O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.
— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo menos na volta!
O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:
— O menino tem OITO anos, Maria!
— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como esse!
E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu filhinho.
— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.
Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia.
Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito interessado — "mas a Niquinha com o coronel? não é possível!" — quando a Mãe se ergueu de repente:
— E o Joãozinho?
Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — "deve estar por aí", a Mãe gradativamente nervosa — "mas por aí, onde?" — o amigo otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.
— Joãozinho!
O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.
— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.
A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. "Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!" O garoto, com cara de bobo, e assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: "Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?".
— Acho que entrou… ou então foi-se embora.
De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu um grito para as ondas e espumas — "Joãozinho!".
Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados — "Joãozinho !" — ela mesma não tinha mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — "Joãozinho !" — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!
O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:
— Mãe é chaaata…


Maio, 1953
Rubem Braga é considerado o melhor cronista brasileiro de todos os tempos.
Texto extraído do livro "A Cidade e a Roça", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1964, pág. 57.
FONTE: 
Releituras

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Murais
No Grand Palais, o espaço de arte de maior prestígio em Paris, foi inaugurada a exposição dos dois murais, “Guerra e paz”, que Candido Portinari fez para o interior do prédio das Nações Unidas, em Nova York.
Antes de serem doados à ONU, em 1956, os grandes painéis foram exibidos no Brasil, e agora chegam a Paris no início da fase internacional de um projeto de exposição, fora da área restrita do foyer da ONU, que começou com outra turnê pelo Brasil e terminará com sua volta a Nova York em 2015.
A obra de Portinari está magnificamente apresentada no Grand Palais, junto com estudos preparatórios para os murais e outros trabalhos do artista, e a solenidade teve a presença do filho de Portinari — que morou durante muito tempo em Paris —, do embaixador do Brasil na França, José Mauricio Bustani; da Marta Suplicy; de outros responsáveis pelo projeto, e de dezenas de brasileiros e simpatizantes orgulhosos.
Ninguém mencionou que Portinari não pôde comparecer à inauguração dos seus murais na ONU, em 1956, porque era comunista e os americanos não o deixaram entrar no país. Eu me lembrei da história do mural que Nelson Rockefeller encomendou ao mexicano Diego Rivera para o saguão de entrada do Rockefeller Center, em Nova York. O mural deveria retratar o avanço da Humanidade através do trabalho e do progresso científico.

"Guerra e Paz" de Candido Portinari é exposto no Grand Palais, em Paris

Rivera foi o escolhido porque era um dos pintores favoritos da mãe de Nelson Rockefeller, que, obviamente, não informara ao filho quais eram as convicções políticas do mexicano. Pode-se imaginar a cara do Nelson ao ver, no mural pronto, o Lenin de mãos dadas com trabalhadores, simbolizando a união que emanciparia o proletariado mundial da opressão capitalista.
Rockefeller pagou ao Rivera, mas mandou pôr abaixo o mural. Não adiantou a oferta do pintor de incluir Abraham Lincoln como emancipador, talvez ao lado de Lenin. O mural foi destruído. Antes da sua destruição, Rivera pediu que o fotografassem. E o reproduziu no México, acrescentando alguns detalhes que não estavam na primeira versão. Com Marx e Trotsky, além de Lenin. E — para completar a vingança — o pai de Nelson, John D. Rockefeller, um notório abstêmio, foi retratado como um bêbado, simbolizando a dissolução moral dos ricos.
Nelson Rockefeller não desistiu do seu mural. Contratou um tal de José Maria Sert para pintá-lo. O mural continua lá, na entrada do Rockefeller Center. A sua figura principal é Abraham Lincoln.

Sua benção Mãe, Ocimar Barbosa


A origem do “Dia das Mães”, data do início do Século XX, por meio de um drama vivido por Anna Jarvis, uma jovem dos Estados Unidos que perdeu sua mãe e entrou em estado de depressão. Suas amigas, para consolar a jovem, resolveram então promover uma grande festa onde seriam homenageadas todas as mães, vivas e mortas. Com isso, a festa se espalhou pelo país e foi instituída nos Estados Unidos pelo presidente Woodrow Wilson no dia 9 de Maio.
A festa em homenagem às mães se propagou rapidamente por todo o mundo, sendo festejada sempre no mês de maio. Em Portugal, o “Dia das Mães” é festejado no primeiro domingo do mês e no Brasil é comemorada no segundo domingo.

Mãe tem uma profissão por natureza: é sábia! Em torno dela, o clã molda seus valores espirituais e humanos. Dela, fez-se o prisma sagrado da família de onde dividem-se os feixes de luz para o universo, afinal, todas os corações de mães do mundo, unidos, fazem suportáveis as dores e agruras da vida terrena.
Quando Deus disse “Que se faça a Luz!”, provavelmente fez nascer a Mãe de Si mesmo. E o incriado então compreendeu a naturalidade e a beleza do ato do nascimento. Vendo-se como Criatura, sorriu com certeza ao ver diante de si que o próprio Universo desenvolve-se pelo encontro dos astros em explosões de luz. Até as estrelas são mães.

Mãe é protagonista e não figurante. A novela que sua vida desenvolve tem capítulos às vezes de fatos dramáticos, outras de exultante euforia. Sofre em silêncio perante os atos de incompreensão, mas sua compaixão é humana, seu perdão é divino, seu coração é transcendente.

Seja ela mãe idosa que já sente a contagem regressiva do fechar de cortinas do seu script no palco da existência; seja ela a jovem mãe, muitas vezes menina profanada e tolhida de viver uma infância como todas as demais, quando passa a ter nos braços não a boneca que embala sua inocência, mas um novo ser saído de seu ventre, e que a torna santa.

A mãe de numerosa prole, a mãe que enfrenta a cruel indiferença dos poderes constituídos, que busca água nos açudes, que reza pela colheita, e planta pela sobrevivência de seus pequenos rebentos. Que chora quando os filhos pedem mas a panela está vazia .

Mãe que é avó e são chamadas “mães duas vezes”. Infinitas são as ocasiões em que estão próximas dos netos, participando ativamente de sua educação. Por outras vezes, assumem diretamente, no lugar da filha ausente ou falecida, acolhendo os netinhos como seus filhos. Que coração é esse que suporta tanta dor e ainda consegue bater em favor da vida de outros?

Mãe nobre, que exerce com sabedoria a criação de seus filhos e ainda encontra um tempo para, em seus atos sublimes de filantropia e amor materno-universal, ajudar outras mães menos favorecidas pela sorte.

Mães negras, índias, brancas, orientais, mãe adotiva, de todas as religiões, de todas as cores e luzes, de todos os universos, de todos os sonhos, de todos as experiências, de todas as necessidades, de todas as missões, de todos os filhos, mãe de todos os dias.

Claro, pois assim como em todas as manhãs temos o Sol nascendo no Leste, todos os 365 dias do ano são “Dias das Mães”.

Peçamos sua Benção! Sempre!
Mãe…São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o céu tem três letras
E nelas cabe o infinito
Para louvar a nossa mãe,
Todo bem que se disser
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do CÉU
E apenas menor que Deus!
(Mário Quintana)

Filhos desnaturados

Mãezorra

Crônica da Mãe, Carolina Vilaça

Manual de instrução
  • Mãe é um produto da melhor qualidade fabricado pelas indústrias “Padecendo no paraíso” , com baterias de longa duração, aguentam qualquer rojão. 
  • Os que detêm esse produto são chamados “filhos”. Porém, por ser de material muito especial e realizar atividades únicas, insubstituíveis do papel de “mãe”, não pode ser escolhida ou trocada pelos filhos. 
  • Mas isso não é problema, pois sempre dão o tamanho certo de “mãe” para os filhos, constituindo assim o que chamamos de família, juntamente com o pai, que é o responsável único pela escolha da “mãe”. 
  • Se ela for avariada ou estiver com algum defeito de fabricação, não adianta pedir pra consertar na garantia. Você vai ter que aprender a conviver com o defeito. 
  • E tem mais, não tem prazo de validade! O que significa que terá que aguentar todo o amor e carinho que ela tem pra dar eternamente… 
  • E não vale vender a “mãe”! Porque mãe já só tem uma, e se for de segunda mão ninguém aguenta!!! 

Justiça do Vislumbre

o verme
Alegação do verme contra José Dirceu naquilo que os dicionários definem como "visão incompleta" dos fatos

por Paulo Moreira Leite na IstoÉ

Após meses de subterfúgios, silêncios, protelações e outras iniciativas que lhe permitiram  ganhar tempo, inclusive um surrealista pedido de monitoramento de ligações telefônicas do Planalto, o presidente do STF Joaquim Barbosa fez aquilo que – alguém duvida? -- sempre quis fazer.
Negou a José Dirceu o direito de deixar o presídio para trabalhar.
Um dia antes de anunciar a decisão, Barbosa revogou o direito ao trabalho externo de outros dois prisioneiros da AP 470 que o exerciam por autorização da Vara de Execuções Penais.
A coreografia paralela tem sua utilidade.
Ninguém pode, com ela, acusar o presidente do STF de perseguir um prisioneiro em particular.
Também serve como alerta para os demais prisioneiros da AP 470 que podem – ainda – trabalhar fora.
Os cuidados com a qualidade do teatro não escondem o principal: José Dirceu é um perseguido político e, cada movimento que Joaquim Barbosa fizer para esconder este fato só revela com mais clareza a injustiça que está sendo cometida.
O presidente do STF negou o direito de Dirceu sair para trabalhar a partir de dois argumentos questionáveis.
O primeiro é alegar que a lei prevê que uma pessoa só pode cumprir o regime semi aberto depois de cumprir um sexto da pena. Isso é verdade. Mas a legislação diz também que o trabalho deve ser feito em colônias "agrícolas ou industriais", que não existem na Papuda, o presídio para Dirceu foi enviado pelo próprio Joaquim Barbosa, quando estava condenado ao regime semi aberto.
Nessa situação, "o trabalho externo é admissível." Tanto é assim que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – ultima instância do Judiciário antes do Supremo -- autoriza o trabalho nessas condições.
O outro argumento é que Barbosa "vislumbra" uma ação entre amigos no emprego oferecido a Dirceu pelo advogado José Grossi, um dos mais conceituados do país. Então é assim.
Quando o presidente do STF "vislumbra" uma coisa, não precisa provar nem demonstrar. Basta "vislumbrar",  isto é, ter uma "visão incompleta, imprecisa", uma "compreensão parcial" de um fato, como diz o Houaiss, para chegar a suas conclusões e produzir uma decisão que envolve a liberdade e o direitos de uma pessoa?
Vislumbre, esclarece Houaiss, é sinonimo de 'luz fraca."
Repare: não se acusa Dirceu de nenhuma falta disciplinar no presídio. Nenhum ato condenável, que poderia justificar a suspensão de um direito. Joaquim chega a alegar que Grossi nem sempre estará no escritório, o que pode dificultar o controle da atividade do prisioneiro.
Por esse raciocínio, é difícil imaginar que um prisioneiro sem diploma universitário possa vir a trabalhar de operário numa multinacional de 10 000 empregados cuja direção fica na Alemanha, concorda? Seja como for, o local foi examinado e aprovado previamente pelas autoridades responsáveis.
O debate, aqui, não envolve a culpa ou a inocência de Dirceu na AP 470.  Nem sobre o caráter político do julgamento. Sabemos que enquanto Dirceu e os outros foram colocados atrás das grades, o ex-ministro Pimenta da Veiga, fundador do PSDB, que embolsou R$ 300 000 de Marcos Valério, nada sofreu. Dirceu não embolsou 1 centavo.  Nenhuma prova dos autos indica que qualquer dirigente do PT, condenado na Ap 470, tenha colocado a  mão em tamanha quantia. Todos eles têm explicações melhores e mais sustentadas do que o ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso. Mas Pimenta está livre. Já  montou candidatura para disputar o governo de Minas Gerais.
Mas a questão neste exato momento é outra.
Não é difícil perceber que uma sentença por vislumbre produz um vislumbre de Justiça.
Isso porque nenhuma pessoa – mesmo um prisioneiro – pode ser destituída de direitos humanos elementares. O fato do STF ter considerado Dirceu culpado por corrupção ativa – e inocente do crime de quadrilha – não lhe retira nenhum outro direito além da perda da liberdade.
Mesmo submetido a uma disciplina rigorosa, os direitos de Dirceu e de todos prisioneiros do Estado estão resguardados pelos mesmos princípios que protegem o cidadão comum.
Desde 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, diz-se no artigo nono que "Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado".
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, afirma-se que:
"Art. XI. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."
Já na atual Constituição da República Federativa do Brasil, preserva-se o mesmo princípio:

"Art. 5 º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;"
O que se define, aqui, são princípios básicos da Justiça, válidos em qualquer circunstância. Por isso um prisioneiro não pode ser humilhado, nem extorquido nem torturado. Isso é justiça.
Política é outra coisa. Admite-se que seja feita por vislumbre desde que, como lembrou um dos pais da sociologia, a verdade política inclui o direito à mentira.
Diz a Folha de S. Paulo, hoje:
"O caso de Dirceu só chegou às mãos de Barbosa porque a Folha revelou que o ex-ministro teria utilizado um celular dentro da prisão e ele virou alvo de investigação."
É de chorar. A Folha "revelou" o que?
A conversa de celular entre o prisioneiro José Dirceu e um secretário do governo da Bahia é um caso típico de jornalismo declaratório e, nesse sentido, muito semelhante a Escola Base, aquele falso escândalo de 1994. Muito se falou e nada se demonstrou. Vislumbre verbal?
Em 1994, um delegado de polícia assoprou para repórteres que havia a suspeita de que crianças de uma escola de São Paulo sofriam abuso sexual por parte de diretores e professores. Nada se provou nem se demonstrou. Mas o delegado falou, os jornais reproduziram suas palavras e o escândalo se formou. Os donos da escola foram massacrados e reduzidos a miséria humana e material. Vinte anos depois, duas vítimas tiveram direito a R$ 100 000 de indenização cada uma.
Em 2014, a Folha revelou que um secretário do governo da Bahia disse a seus repórteres  que havia conversado pelo celular com  Dirceu. Era uma notícia – sem dúvida. Mas, quando se tentou encontrar fatos por trás das declarações, nada apareceu. O próprio secretario se desdisse. Nem precisava: a conta de seu telefone celular não registra nada que possa indicar uma conversa com Dirceu, ainda mais na Papuda.
A investigação da direção do presídio nada demonstrou. Na falta de provas, partiu-se para o vislumbre total.
Em  vez de procurar  vestígios sobre a conversa entre duas pessoas, tentou-se monitorar as ligações telefônicas entre a Papuda e o Planalto.
O curioso é que isso foi feito discretamente, sem chamar a atenção. Só se descobriu o que estava ocorrendo quando os advogados de Dirceu resolveram conferir os locais que deveriam ser monitorados. Foi assim que se constatou que estava em jogo, aí, o respeito a divisão de poderes e outras garantias constitucionais, que preservam a Presidência da República e mesmo o direito de milhares de cidadãos que poderiam ter suas ligações violadas. Diante do vexame, a pressão contra Dirceu depois da "revelação" chegou ao fim da linha.
Sem novos argumentos ou alegações, Joaquim Barbosa decidiu negar o pedido de trabalho externo. Empregou argumentos que poderia ter levantado 24 horas depois que os advogados protocolaram o pedido em nome de Dirceu. Não precisava ter esperado que o Ministério Público aprovasse o direito de Dirceu. Nem que a área psico-social desse seu acordo.
Fez isso três dias depois que o procurador geral da república Rodrigo Janot emitiu um parecer onde disse – sem apresentar nenhum fato novo – haver "indicativos claros" de privilégios e regalias para os prisioneiros da AP 470. Sim. "Indicativos."
O mesmo Janot fez campanha para ser nomeado PGR por Dilma colocando-se como crítico do antecessor, Roberto Gurgel, que lançou a teoria do domínio do fato no julgamento. Estava indicando o que mesmo?
Deu para vislumbrar?