A raiz da crise

Por Jorge Nascimento Rodrigues

Qual a origem da atual crise financeira, é provavelmente a interrogação mais repetida pelo que se designa por ‘Main Street’, o cidadão da rua americano.

O dedo foi apontado aos instrumentos financeiros «tóxicos» que nasceram como cogumelos desde que uma Lei de 1933 (conhecida por Glass-Steagall Act ou Banking Act) foi revogada pelo Congresso americano, então de maioria republicana, e pelo Presidente Clinton em 1999. Esta lei pós-«crash» de 1929 pretendia proteger a banca americana dos excessos das operações puramente financeiras.

Um dos expoentes dos grupos de pressão a favor da eliminação dessa cautela que vinha desde o «crash» de 1929 foi o senador Phil Gramm, do Texas, actual conselheiro económico do candidato à presidência americana John McCain. Os lóbis da Wall Street investiram, na altura, 300 milhões de dólares nesta operação política.

Esta revogação abriu as portas à ‘revolução financeira’ propagandeada por Alan Greenspan, o então presidente da Reserva Federal. À sombra dessa e de outras ‘desregulações’ multiplicaram-se os especialistas na Wall Street em instrumentos «tóxicos». Alguns chamam a este novo tecido financeiro um sistema bancário sombra, onde polulam entidades não-bancárias (como casas de corretores, instituições não bancárias de hipotecas, SIV, «hedge funds», «money market funds» e firmas de «private equity») e bancos de investimento.

Tudo indica que essa “revolução” greenspaniana tenha gerado a maior «bolha» de sempre em activos alavancados (por vezes 50 e e 60 vezes!) e em crédito. Coisa jamais vista desde que os holandeses refinaram e institucionalizaram o mercado de futuros nas primeiras décadas de 1600.

Muitos políticos e analistas acusam, agora, esses ‘criativos’ de crime. Muitos dos críticos de hoje tiveram as mãos enfiadas nos bancos de investimento, nas casas consultoras, nos grupos de especialistas ou no usufruto das «bolhas» que, entretanto, fizeram a riqueza e esplendor da América durante trinta anos.

O sistema «tóxico»

«O problema é muito mais profundo e vem detrás», diz-nos (em entrevista, que pode encontrar em língua inglesa aqui) a consultora de investimentos Catherine Austin Fitts, que se tornou numa «ex-insider» maldita. Catherine trabalhou vários anos numa firma da nata da Wall Street entre 1978 e 1989 e foi secretária do comissário do Departamento federal para as questões da Habitação (conhecido pelo acrónimo HUD) durante 18 meses em 1989-1990, ao fim dos quais foi demitida sumariamente.

Ela percebeu como “funcionava a coisa” quer na Wall Street como em Washington DC. Apercebeu-se rapidamente no HUD do mecanismo «tóxico» em torno do que viria a ficar famoso como o escândalo do S&L – Savings and Loans, que levaria à falência de 747 instituições entre 1985 e 1995, a um total de 1600 instituições envolvidas em problemas financeiros e a um custo para os contribuintes americanos no montante de 160 mil milhões de dólares. Apelidaram-na altura de “Senhora da Limpeza”.

E como funcionava a coisa? Criou-se um verdadeiro sistema alimentado por uma rede de instituições que passaram a viver dessa “criatividade financeira” que veio dos anos 1980 e do próprio crime financeiro de alto colarinho-branco organizado. O sistema cresceu e consolidou-se porque beneficiou toda uma cultura americana de viver a débito e de enriquecer com rendas nos instrumentos «tóxicos», nas bolsas ou na exportação de capitais. Os gloriosos trinta anos de esplendor económico da América com três «bolhas» sucessivas (dos anos 1980, depois das «dot-com» e finalmente do crédito hipotecário) alimentaram-se dessa criatividade.

Catherine chama a este movimento de fundo, silencioso, não transparente, à revelia do controlo democrático dos cidadãos, de “verdadeiro golpe de estado financeiro”. Como ela nos diz em entrevista, o processo levou à “reengenharia global da governação”, colocando-a fora do controlo das famílias, do cidadão, das comunidades e mesmo de governos soberanos, centralizando-a numa rede (num «network», na expressão inglesa mais popularizada) de alta finança cuja osmose com os políticos profissionais e os burocratas é cada vez mais conhecida. A esse «network» alguns já chamaram de “sistema financeiro sombra”.

Esse “golpe de estado” do período dos trinta gloriosos anos permitiu, inclusive, segundo Catherine, a expansão de investimentos directos e indirectos americanos em todo o mundo, particularmente na Ásia e nos emergentes, “alavancando um dólar então valorizado comprando activos desvalorizados em países arrasados por crises”.

O modelo bancário de guerra

Ora, como diz Catherine, todos os sistemas complexos têm um limite e acabam por implodir. As implosões dão origem a «crashes» cíclicos devastadores e às consequências que se sucedem. Não basta, por isso, mexer na regulação – é indispensável dinamitar o sistema «rentier» que se formou, como lhe chamavam os economistas políticos franceses de há séculos atrás. Catherine vai ao ponto de apelidar este sistema de “modelo bancário de guerra”, que é suportado pelo atual poder de projecção global dos Estados Unidos.

Poder de projecção que tem levado a coligação dos principais detentores de reservas mundiais e credores da América – Japão (que detém 6.000 mil milhões de títulos do governo americano), China, Estados do Golfo e Brasil – a aceitar a suserania financeira americana, acarretando algumas perdas para manter os atuais equilíbrios geopolíticos mundiais. Catherine ironiza: funciona como que um sistema de “páreas”, uma taxa paga ao poder suserano. Alguns sinais recentes começam a deixar o alerta de que os credores começam a estar cansados – esta semana o guru japonês Kenichi Ohmae apelava a que os Estados Unidos dessem prioridade a uma coligação com os donos das reservas; e um ex-primeiro ministro da Tailândia propunha no Financial Times a criação de um título asiático baseado nos dólares «offshore» das imensas reservas de “dólares externos”, como ele lhe chamou.

Catherine apela, por isso, à vigilância democrática dos cidadãos americanos, pois os pacotes de emergência de muitos milhares de milhões, suportados pelos contribuintes (que, de uma forma, ou de outra, terão de pagar a factura deste intervencionismo seja através de impostos, de inflação, do colapso do dólar, do desemprego ou da perda de bens imobiliários), são geridos pelo tal «network» e destinam-se a limpar a sujidade, mas a deixar o mesmo sistema «rentista» a funcionar.

Movimento de concentração em marcha?

E, provavelmente, irão permitir um movimento de consolidação jamais visto em vários sectores económicos, com a «mão visível» do Governo por detrás, incluindo participações temporárias do Estado nas instituições intervencionadas. Alguns analistas designam este período (transitório) que temos pela frente de “capitalismo de regulação” ou “capitalismo colete de salvação” (life-jacket capitalism). “O pacote de salvação ataca um sintoma de curto prazo, para impedir deslindar-se as raízes do problema”, frisa a conselheira de investimentos que dirige a Solari.

Uma das pistas é desenvolvida por F. William Engdahl no seu próximo livro Power of Money: The Rise and Decline of the American Century. O pânico bolsista associado ao clima negro propagado pelos «media» e a um sentimento de desastre no cidadão da rua parece ser o momento oportuno para a «mão visível» dos Governos aumentar a concentração de poder financeiro. Tema a que voltaremos noutra altura.

Um comentário:

  1. Entre as muitas explicações para a crise, a que mais gostei foi a dada pelo jornalista português JP Coutinho, que escreve na Folha. Como o autor, aqui, também parece ser português, vai lá: “a crise financeira é um produto directo de uma crise mais prosaica, que os Estados Unidos exportaram. A crise do juízo. Ou, se preferirem, a ilusão de que é possível comprar o mundo com dinheiro que não existe. Quando a torneira começou a secar, descobriu-se que andava toda a gente a viver do que não tinha”. O exemplo mais cabal dessa perda do juízo ocorreu na Islândia: tanto se disse que lá era o paraíso que eles acharam que podiam viver como deuses. Hoje vivem o pânico dos endividados.

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