Episódios de crise na aviação civil recebem tratamentos distintos, conforme a ocasião. É instigante. Anos atrás, a cobiça da TAM levou o caos aos aeroportos nas festas natalinas e o mundo político-jornalístico desabou. Agora, um grave desarranjo nos serviços prestados pela Gol passa quase batido, coisa menor, rotineira. O que mudou?
Talvez tenham mudado, além da época do ano, as circunstâncias políticas. A antiga turma da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) foi removida e a atual parece bem blindada. Tampouco persiste o ambiente de “tudo se relaciona”, no qual um acidente aéreo causado por falha humana guardava inevitáveis conexões com o overbooking — e ambos com qualquer outra coisa que conviesse. Lembram do “grooving”, a explicação “Viúva Porcina”? A que foi sem nunca ter sido?
Os tempos são mesmo outros, também porque o governo anda muito forte. Antes as autoridades eram execradas mesmo quando não culpadas. Agora, a situação agravou-se. O sistema da aviação civil continua muito ruim, mas a turma do setor repousa tranquila na cálida e crônica incompetência para entregar o combinado. Sem que o governo ou o Congresso chiem.
Depois da crise com os voos da Gol no fim de semana, a chefe da Anac veio a público revelar: ela própria voaria pela empresa nos dias seguintes, para testar as providências adotadas. Mas cuidou, naturalmente, de dizer que trechos percorreria, e quando.
Algo como o crítico gastronômico avisar com antecedência ao restaurante que avaliará e os pratos que vai pedir. A Anac não é apenas uma fonte inesgotável de transtornos. É também uma usina de humor. Ainda que o usuário não tenha motivos para rir.
Que se dane o usuário. O governo Luiz Inácio Lula da Silva não parece estar nem aí, pois mesmo se todo mundo que pega avião resolvesse votar contra o PT não resultaria em impacto eleitoral relevante. As coisas vão sendo roladas com a barriga, à espera talvez de que as pressões do cronograma da Copa 2014 e da Olimpíada 2016 façam a montanha mover-se em direção ao profeta. Como se sabe, a fé move montanhas.
E há ainda os mecanismos anestésicos. A grita contra a bagunça nos aeroportos vai ficando incômoda? É fácil, recorra-se de tempos em tempos à fórmula mágica “abrir o capital da Infraero”, um nome bonito para a privatização. Sempre funciona. A turma do PT não vai mesmo se autocriticar. E a turma da oposição encantar-se-á com a visão “moderna”, e com o PT ter adotado teses que antes criticava. A oposição adora isso. O PT diverte-se praticando o poder. A oposição prefere outra diversão: mostrar que é intelectualmente superior. Aqui caberia um “supostamente”, mas deixaria a frase excessivamente longa e dois advérbios colados é demais. Um só já é ruim.
E sua excelência, o consumidor? Este continua pagando altas tarifas por um serviço de qualidade duvidosa. Ainda bem que na era do Twitter os prejudicados podem ao menos tornar público o protesto, com mais estridência e para um público maior. Mesmo que não resolva nada, ao menos ajuda a desopilar o fígado e, quem sabe?, a diminuir os riscos de doenças associadas ao estresse.
Este desenho institucional da aviação civil brasileira é inteirinho do PT, cujo governo inclusive fez nascer a Anac. Uma parte do plano ainda não se consumou, por sorte: a proposta de deixar o controle do tráfego aéreo nacional sob forte influência de um sindicato nacional de controladores de voo, civis. A Força Aérea Brasileira (FAB) continua cuidando da nossa segurança no ar. Ainda bem. Vamos ver quanto tempo resistirá.
Tenho defendido um ponto de vista: assim como há coisas que só existem no Brasil, têm outras que aqui simplesmente não funcionam. Uma são as agências reguladoras. Na teoria, elas deveriam regular os mercados. Na prática, são capturadas pelos interesses que deveriam constranger. Mereceriam ser alvo de um bom programa nacional de desburocratização.
No mundo ideal, as agências seriam esferas públicas para além da política. Na prática, acrescentou-se apenas um guichê aos que já não funcionavam. Ou funcionavam, conforme o ângulo de visão.
O Brasil é mesmo um país de muitas Porcinas.
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