Uma das notícias mais curiosas da semana passada relatava o desconforto de alguns auxiliares próximos a Dilma com seu comportamento. Segundo publicado, estão preocupados com o “excesso de seriedade” da presidenta.
Chefe de governo
Na avaliação deles, Dilma gastaria todo seu tempo em tarefas de governo: reuniões, despachos, cobranças, providências e coisas do gênero. Não contente em ler cada documento, anota detalhes e solicita esclarecimentos.
Tamanha disposição já estaria impressionando os integrantes do núcleo duro do governo, que melhor a conhecem. Para eles, ela é um caso de “obstinação pela gestão”. Mas não é apenas quem tem mais intimidade com Dilma que acha isso. Os governadores que com ela estiveram nestes primeiros dois meses de governo pensam de forma parecida. Eles confirmariam o diagnóstico, achando que gerenciar é “a praia da presidenta”, aquilo que ela faz com gosto.
O engraçado é que isso é tratado como se constituísse um problema, uma patologia estranha. Como se não fosse natural que ela encarasse assim suas responsabilidades administrativas. Como se o correto fosse que as delegasse e cuidasse apenas das “altas matérias de Estado”.
Nas democracias modernas, existe uma diferença entre chefia do Estado e chefia do governo, a primeira envolvendo funções eminentemente simbólicas e de representação, e a segunda atividades propriamente administrativas. No parlamentarismo, seja monárquico ou republicano, a distinção é tão nítida que elas são desempenhadas por pessoas separadas; no presidencialismo, ao contrário, é menos clara. Quem chefia o Estado também chefia o governo.
No parlamentarismo monárquico atual, reis e rainhas foram de tal forma perdendo prerrogativas governamentais que se tornaram figuras quase que somente decorativas, ao ponto que passou a ser comum dizer que alguém “manda menos que a rainha da Inglaterra”. Nas repúblicas parlamentaristas, acontece coisa semelhante: as pessoas sequer sabem o nome do presidente e só conhecem o primeiro-ministro (salvo em exceções, como a França, onde o inverso é verdade).
No presidencialismo brasileiro, a regra é outra, mas nem sempre ela prevalece na prática. Aqui, desde a Proclamação da República (descontado o breve interregno parlamentarista no início dos anos 1960), o presidente enfeixou as duas funções. Isso no plano formal, pois, na vida real, nossos presidentes sempre se esmeraram na chefia do Estado e se dedicaram com menos entusiasmo ao trabalho pedestre de administrar o dia a dia.
A liturgia do cargo, como dizia Sarney, sempre os atraiu. Ricos ou pobres, instruídos ou não, foram cativados pelo glamour da vida em palácio (daí a dificuldade de readaptação que todos, em graus diferentes, experimentaram ao sair de lá).
Em razão disso, foi comum em nossa experiência a figura do primeiro-ministro de fato, que assumia a tarefa de governar no cotidiano enquanto o titular cuidava de outras coisas. Os tivemos na República de 1945, no ciclo militar e nos governos pós-redemocratização. A própria Dilma foi quase isso para Lula.
No governo dela, a balança parece pender para o outro lado. Se seus antecessores se encantaram com a pompa de chefiar o Estado, ela prefere administrar. O que eles faziam às vezes, ela faz (com prazer) a toda hora. E, se eles não delegavam a representação, ela não transfere o poder de governar.
Estará nossa cultura política preparada para essa mudança? Conseguiremos nos acostumar com uma presidenta “obstinada pelo governo”, depois de mais de um século de presidentes que nunca raciocinaram dessa forma?
Parece que os brasileiros querem experimentar a novidade, pois foi isso que Dilma prometeu em sua campanha e foi nisso que votou a maioria.
Aliás, ela não é única governante com esse perfil na safra atual. Já em 2008, muitos prefeitos com características semelhantes foram eleitos. Dentre os governadores atuais, pelo menos um de peso se parece com ela nesse aspecto.
A vitória folgada que Antonio Anastasia teve em Minas é outro indício de que é grande a proporção de eleitores que admite votar em políticos não-convencionais para cargos importantes.
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