Aquela aurora
Em São Paulo acabam de fundar um partido que se declara nem de esquerda, nem de direita nem de centro. Um partido de nada, a favor de tudo, ou exclusivamente a favor de si mesmo.
Tudo bem. "Esquerda" e "direita" são termos obsoletos e "centro" hoje é sinônimo de PMDB, ou de uma nevoa ideológica.
O novo partido paulista não vem preencher um vácuo, vem institucionalizar o vácuo. Seu nome evoca o passado, quando o Getúlio, para não dizerem que o Brasil não era uma democracia, inventou dois partidos opostos, o PTB e o PSD. Justiça seja feita: o novo partido surge representando nada, mas com saudade de um tempo em que as siglas, mesmo falsas, significavam alguma coisa.
Bom mesmo era o século 19, quando tudo isso começou. Como no texto do Paulo Mendes Campos que fala das primeiras do Gênese, com "o mundo ainda úmido da criação", se poderia descrever com o mesmo encanto aquele outro inicio. Quando a História, por assim dizer, entrou na história e tudo recebia seus nomes verdadeiros. Uma segunda Criação. Hegel ainda quente, Marx lançando suas ideias explosivas como granadas, o passado e o futuro sendo redefinidos com rigor científico e a modernidade tecnológica e a modernidade social (ou, simplificando, a máquina a vapor e a nova consciência proletária) prestes a se fundir para transformar o mundo. "Bliss it was in that dawn to be alive", êxtase era estar vivo naquela aurora, escreveu o poeta Wordsworth sobre a Revolução Francesa.
A esquerda poderia dizer o mesmo do século 19. Naquela aurora não havia dúvida sobre a inevitabilidade histórica do socialismo.
Mas êxtase também espera a direita numa volta idílica ao século 19. Foi o século de reação à Revolução, da restauração conservadora na Europa depois do terremoto republicano e do nascente capitalismo industrial sem remorso. Os que hoje propõem a "flexibilização" dos direitos dos trabalhadores conquistados em anos de luta (como os que os ingleses defendiam nas ruas de Londres, há dias) babariam com o que veriam no velho século: homens, mulheres e crianças trabalhando 15 horas por dia, sem qualquer amparo, e sem qualquer encargo legal ou moral, fora os magros salários, para seus empregadores. A perfeição. Antes que a pregação socialista a estragasse.
Século 19, terra de sonhos. Tanto para a esquerda quanto para a direita, antes que tudo virasse um mingau só.
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