Guerras santas

Há um traço comum em certas situações complicadas vividas pelo governo nos últimos dias. O método é recorrente. A cada tema o governo convoca os especialistas que possam legitimar os propósitos palacianos, para estabelecer qual é o lado "do bem".

O contraditório? Só intramuros.

O Planalto vem tratando o debate do Código Florestal como um assunto exclusivo dos especialistas em meio ambiente. Dos da agricultura ninguém ouviu falar. 

Já o kit contra a homofobia nas escolas foi encomendado pelo MEC a uma organização não governamental especializada e militante. O resto da sociedade? Que aguarde com resignação o veredicto dos burocratas ministeriais e dos sábios escolhidos a dedo.

No Código o governo foi derrotado na Câmara e busca a desforra no Senado. E o MEC precisou recuar momentaneamente do kit, pois a coisa começava a trazer problemas políticos num cenário em que o Planalto precisa reduzir o número e o tamanho das encrencas, não aumentar.

Quando quis se envolver mais na disputa em torno do Código o governo correu a cercar-se de uma turma só. Tomou as dores de um lado só. Como se o assunto fosse monopólio de um partido só. 

E no kit o MEC recusou-se a pelo menos ouvir bancadas de representação religiosa que pediram para opinar sobre o assunto. Como se o Congresso Nacional fosse um estorvo, por eventualmente incluir gente que pensa diferente.

Em cada tema define-se a priori um lado completamente certo, e os demais estão todos completamente errados. Por definição. Nada têm a contribuir. 

Definida a separação, o passo seguinte é buscar reunir o máximo de forças aritméticas para fazer prevalecer o ponto de vista oficial, sem mediações. 

Ou com mediações apenas na dose necessária para atingir massa crítica suficiente e esmagar os adversários.

É um corolário do que se viu na campanha eleitoral, no debate sobre o aborto. Para um certo pensamento, quem é a favor da descriminalização do aborto tem o direito -o dever até- de usar a bandeira como arma na luta política, mas quem é contra não tem. 

A militância a favor é virtuosa por definição. A contra é o atraso, também por definição. E deveria calar-se, para que o mal não contamine a pureza do bem.

Mas talvez o melhor exemplo seja mesmo o ambiental. É um nicho ideal para o comportamento maniqueísta.

Alguns se apresentam como portadores de toda a verdade. Contestar as ideias deles é, a priori, um crime de lesa-humanidade. 

Pouco a pouco a coisa vai adquirindo ares de religião, inclusive com uma hierarquia eclesiástica, difusa porém coesa e centralizada. Nem que apenas pela missão de criminalizar o pensamento diferente.

E aí "fazer o debate" toma contornos de cruzada moral contra os infiéis. No máximo, diante de impasses na correlação de forças, aceitam-se tréguas táticas, pausas para tomar fôlego e reabrir mais adiante a guerra santa.

Como em toda guerra, papel especial cabe à propaganda. "Devastação" passou a designar todo episódio em que a vegetação natural é removida. Mas onde e como a humanidade teria desenvolvido a agricultura, a civilização, sem remover vegetações nativas? 

Aritmeticamente, "devastação" zero corresponde a zero de agricultura. Fica então a dúvida. Como civilizar sem desmatar?

Diante da emergência da Ásia, da África e da América Latina alguém precisa explicar como alimentar toda essa gente sem produzir mais comida. Muito mais comida.

Uma solução seria buscar só incrementos de produtividade, em vez de ampliar a área plantada. É uma tese discutível, diante da demanda potencial, mas vá lá.

Só que aqui a coisa se complica. Pois as inovações tecnológicas para melhorar a produtividade também enfrentam resistência da militância ambiental. Em especial a engenharia genética.

Os fatos? Pouco importam. 

O Brasil desperdiçou anos numa guerra civil entre os pró e os contra transgênicos, técnica apresentada pelo ambientalismo como a senha para o inferno, a chave da porta do apocalipse.

No fim eles foram liberados com critérios. E os resultados são bem bons. Só que disso ninguém fala.

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