Crônica de A. Capibaribe Neto


Os últimos fantasmas

Estava ali, fazendo as malas dos fantasmas aos quais me apegara com unhas e dentes para que não fossem embora. Ou que fossem, como no filme Gosht, logo que conseguissem pelo menos fazer o que não haviam feito por mais de dez anos enquanto matéria, enquanto corpo, enquanto voz. Ruim é descobrir que por detrás de muitas culpas assumidas havia razões para os erros cometidos e exageradamente confessados. Finalmente, os fantasmas estavam prontos para seguir em direção à luz da porta de saída definitiva e ganhar seus merecidos descansos e paz eterna. Estava tudo pronto. Havia calma e serenidade na penumbra do quarto. Fotografias e bilhetes estavam rasgados, passados na máquina de picotar e já devidamente embalados e colocados nas mochilas dos fantasmas. Eram três: arrependimento, saudades e lembranças. 

Quem dirigia a carruagem que os conduziria a luz era uma mulher nua, chamada Verdade, mas que atendia também pelo nome de Realidade. 

Arrependimentos precisam de uma culpa; saudade de um nome que valha a pena e lembranças são as que deveríamos carregar pelo resto da vida. 

A Verdade precisa checar as mochilas. 

Ninguém viaja até à luz assim, de qualquer jeito. "Abram as mochilas!"E como ninguém discute com a autoridade da Verdade, assim foi feito. Nenhum item deixou de ser verificado. E os fantasmas ali, sem dizer nada. Alguns arrependimentos podiam embarcar. Eram verdadeiros, havia uma razão de ser neles porque faziam parte de tudo aquilo que uma pessoa faz numa fração de segundo e se arrepende pelo resto da vida, como atender a um pedido ridículo, feito pelo amor de Deus para um imbecil cair em tentação. Depois, quando chega o recibo das consequências, a dívida que nunca deveria ter sido contraída é apresentada numa conta quase impossível de pagar. Outros arrependimentos, já empacotados e prontos para seguir em direção à luz, não. "Arrependimento do quê? Neste item aqui?"- perguntou em tom debochativo a Verdade. "Deixa de ser bobo, seu tolo. No circo da vida muitas vezes é preciso que um olho seja a paga do olho arrancado e o dente quebrado que arranque o dente de quem o quebrou e preencha o lugar vazio na outra boca. Você estão pelo conjunto da obra..."- complementou a Verdade. 

Toda culpa tem seu tamanho. Não se pode aumentar o tamanho dela para mostrar um arrependimento maior. Também ele precisa ter seu tamanho exato e sem exagero na humildade com que seja vestido. 

Quanto às saudades, a Verdade disse que só se sente saudade de uma coisa que mereça ser guardada dentro do peito e do lado esquerdo. Saudades precisam de nome, sobrenome, origem, data de nascimento, filiação. Não se pode sentir saudade de um sentimento misturado, um sentimento que nasceu confuso, uma história que se manteve torta nem um desfecho cheio de dúvidas. Se uma saudade não está clara, não pode embarcar. E várias saudades desceram. Ficou uma, com a roupa da Lamentação pelo tempo perdido. "Ei, desça você também. Ninguém pode seguir para a luz com a maquiagem do interesse e as bijuterias da conveniência..."- falou com ar pesado a Verdade. E aí, foi a vez de checar as lembranças... 

A Verdade ali, sem deixar passar nada. "Hummm, essas são lembranças boas... Bem antigas, mas boas. Lembranças do começo quando se chamavam Paixão. Boas, boas. Pra sacola, podem se acomodar. Lembranças dos primeiros beijos, das primeiras entregas... Irresponsáveis, mas sinceras. Podem se acomodar também. É, as lembranças pode ir. As boas são em maior número que as ruins e a gente pode dar um jeito. Com os arrependimentos não condesso  Com as saudades muito menos. Não quero ouvir choro de lamentação pelo que não merece ser eternizado"- concluiu a Verdade e assumiu a boleia da carruagem negra. Dois cavalos de pelos reluzentes, saindo fogo pelas ventas se agitaram ao primeiro estalar do chicote de fios de ouro. Um tinha os pelos quase negros de tão castanho que eram, como seus olhos. O outro, pelos dourados e olhos verdes. Uma verdadeira multidão cercava o embarque dos fantasmas, e dentre os presentes, uma figura que nunca perdoa: 

A Vingança! Procurando esconder-se dentro do capuz onde esperou tantos anos, ria seu risinho de satisfação comendo seu bocado frio. Os fantasmas foram embora arrastando suas correntes, a multidão se dispersou, a Vingança aliviada se aquietou. Agora estava tudo quites. Aqui se fez aqui se pagou. As derradeiras luzes do lusco-fusco engoliram a carruagem e nunca mais se escutou dentro do castelo o choro do homem que criou fantasmas de coisas que nunca deveriam ter existido e os alimentou de ilusões até a chegada da Verdade, quando tiveram de ir embora. Para sempre. Agora, sim, para sempre, deixando um lugar modesto para uma paz necessária ao que muitas vezes precisou apenas de um abraço para sobreviver do outro lado de uma despedida. 

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