Noite de horror


Impressionante! Impressionante, não: medonho. Aterrador.
Mesmo assim, Marquito Rosalvo – o Mascavo – trancou-se na sala de seu apartamento para assistir Piranha pela terceira vez. Nada o incomodaria. A mulher já se recolhera, junto com a pequena Rosicler – ambas mergulhadas em sono profundo.

Abastecido por generosa dose de uísque, ajeitou-se confortavelmente na poltrona, regulou a intensidade da luz, esfregou as mãos e disparou o dvd. A tela tingia-se de vermelho, eMascavo se contorcia, emitindo um ou outro gemido ao imaginar a dor de cada mordida. Anestesiava-se então com um gole da bebida, aliviado por estar a salvo em terra firme, a bordo de uma poltrona imune a qualquer tipo de catástrofe cinematográfica. Em seguida, como se fosse uma piranha voyeur, enchia-se de coragem e retomava com o olhar a devastação de cada cena do filme. Antevia com arrepios a surpresa dos banhistas, logo transformada em pânico pelo ataque do cardume.

Exceto pelo grito de uma sirene, a cidade já silenciara. Mascavo associava o ataque dos peixes à quantidade de ambulâncias mobilizadas para o atendimento às vítimas daquela tragédia. Logo surgiu um vozerio que, a princípio distante, foi crescendo até tomar a atenção do cinéfilo dedicado. Água, piranhas, vítimas, gritos – tudo afinal desapareceria ao som de violentos golpes na porta do apartamento de cima.

Acionada a pausa, Mascavo aproximou-se da janela. Viu dezenas de pessoas apontando para a parte de trás do prédio. Um clarão intermitente as tingia da cor de sangue, exatamente como as vítimas no filme. Pressentindo que algo de muito grave acontecia, o pobre Mascavo acabou tomado pelo medo, que prontamente bambeou-lhe as pernas.

A caminho da área que dava para a parte de trás do edifício, o cinéfilo viu-se envolvido por espessa nuvem de fumaça assim que abriu a porta da cozinha. Como se esquecera das mamadeiras de Rosicler em panela com água fervente sobre o fogão? A água secara e o calor do fogo, além de dissolver as mamadeiras, transformara a panelinha em escultura retorcida e negra, da qual só era possível reconhecer o cabo.

Mascavo desligou o gás no momento em que acionaram a campainha uma, duas, três vezes. Era um oficial do Corpo de Bombeiros, fazendo-se acompanhar pelo síndico. Ambos avançaram cozinha adentro, indiferentes aos apelos do dono da casa em favor do sono da mulher e da filha.

Ao alívio geral pelo não acontecimento de uma tragédia, juntou-se o constrangimento do vizinho do quinto andar que, sem saber a origem de toda aquela fumaça (e na ausência dos proprietários), derrubara a marretadas a porta do apartamento de baixo. Solidários, os moradores ajudariam, em mutirão, a improvisar um reparo no local para aquela noite.

O amanhecer de verão encontraria Marquito Rosalvo na rua, em busca de novas mamadeiras para Rosicler.

Antes que a fome, como piranha, se abatesse sobre a criança.

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